Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
Mesmo sem ter sido ainda sancionadas pelo presidente da República, as Medidas Provisórias (MPs) 756/2016 e 758/2016 já estão estimulando novas invasões de florestas protegidas, na região da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), no sudoeste do Pará.
De acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão das Unidades de Conservação (UCs) federais, em meados de maio 50 famílias invadiram a Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim - modificada pela MP 756 - e, depois, seguiram para o Parque Nacional (Parna) do Rio Novo, ao lado da Flona. O Parna não permite ocupações e não foi alterado pelas MPs (entenda as diferenças entre UCs no final da reportagem).
“A gente já teve contato com os invasores e ele [o processo de invasão] tem relação com as MPs. Eles sinalizaram que estavam alterando os limites da unidade e que estavam ocupando áreas que não iam ser mais UC”, explica Paulo Carneiro, diretor de Criação e Manejo de Unidades de Conservação do ICMBio. Ele informou que o órgão está atuando para promover a retirada dos novos ocupantes.
Carneiro se diz preocupado com a abertura de outras frentes de ocupação no interior da floresta após a aprovação das medidas. “Historicamente, nessa região, essas frentes de ocupação novas são difíceis de controlar. A área é muito grande e a presença do Estado é pequena”, alerta.
As duas MPs foram enviadas ao Congresso, em dezembro, e aprovadas pelo Senado, há 12 dias, depois de passar por uma Comissão Mista e pela Câmara (saiba mais no final da reportagem). As medidas podem ser sancionadas ou vetadas, total ou parcialmente, pelo presidente Michel Temer a qualquer momento. O ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, recomendou o veto (leia mais).
As MPs abrem à exploração econômica, à grilagem, ao garimpo e ao desmatamento de quase 588 mil hectares de florestas protegidas no Pará. Elas convertem 101 mil hectares do Parna do Jamanxim e 486 mil hectares da Flona do Jamanxim em Áreas de Proteção Ambiental (APA), UC com grau mínimo de restrições ambientais, que permite a compra e venda de terras privadas, agricultura, pecuária e mineração em seu interior. O Parque Nacional de São Joaquim, em Santa Catarina, também perderá 10,4 mil hectares (veja tabela abaixo). A extensão desprotegida é maior que o Distrito Federal e, no Pará, concentra alguns dos maiores índices de desmatamento da Amazônia.
O assessor do ISA Juan Doblas explica que, no Pará, o desmatamento vai aumentar não só nos 588 mil hectares que perdem proteção, mas também nas terras cujo grau de proteção não foi alterado. “Elas vão ser ocupadas na esperança de ter uma nova onda de desproteção. A aprovação das MPs é um sinal verde para a ocupação ilegal”, completa.
De acordo com levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a Flona do Jamanxim foi a UC federal mais desmatada entre 2012 e 2015. Nesse período, perdeu 23,7 mil hectares de florestas.
Além disso, entre 2011 e 2013, enquanto os índices de desmatamento em toda a Amazônia Legal caíram, no entorno da BR-163 só aumentaram. “Essa tendência poderia ser explicada pela especulação fundiária associada à aceleração das obras de pavimentação e à chegada do Programa Terra Legal na região, ‘legalizando’ apropriações de terras públicas”, afirmam os autores da publicação Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste do Pará.
“Uma vez que você desprotege, estabelece uma corrida pela ocupação dessas áreas. Como essa ocupação é legitimada localmente? Mediante o desmatamento”, explica Doblas, autor do livro, junto com Maurício Torres e Daniela Alarcon.
A reportagem do ISA conversou com um morador da Reserva Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio, ao lado da APA Rio Branco, criada pela MP. Ele preferiu não se identificar e disse que sua comunidade está preocupada. O medo dos moradores é que recategorização das UCs aumente ainda mais as pressões de desmatadores e grileiros sobre toda a região, inclusive trechos perto da fronteira da Resex que contêm recursos importantes para os extrativistas, como a copaíba. Essa pressão já existe: ele relatou a presença de pelo menos duas serrarias em atividade no interior da Resex.
O argumento original do governo, para enviar as medidas ao Congresso foi a legalização de posses de boa fé no interior das UCs, realizadas antes da criação delas, e que, portanto, gerariam direito à terra.
Os posseiros legítimos ocupam, porém, uma extensão pequena, se comparada à dos os grileiros, dizem pesquisadores que atuam na região há vários anos ouvidos pelo ISA.
Estudo do ICMBio de 2009 mostra que, para garantir a regularização fundiária dos ocupantes da Flona do Jamanxim, seria necessária a recategorização de apenas 77 mil hectares. Desproteger uma extensão maior que essa seria seria inviável do ponto de vista social, econômico e ambiental, dizem os técnicos do órgão.
Dois terços das ocupações teriam ocorrido após a criação da Flona do Jamanxim, em 2006. Pela lei, elas não deveriam ser regularizadas (veja aqui).
O ICMBio identificou a presença de 287 posses dentro da Flona. Haveria cerca de 770 pessoas na área, em 2010. No ano passado, a extensão ocupada irregularmente já era de 157 mil hectares.
O texto original das MPs enviadas por Temer ao Congresso já previa a recategorização de 305 mil hectares de UCs, extensão muito maior que a prevista pelo ICMBio. Emendas parlamentares foram incorporadas em uma Comissão Mista do Congresso, aumentando para 1,2 milhão de hectares a extensão desprotegida (veja tabela). Quando as MPs seguiram para votação no plenário da Câmara, a pressão de parlamentares e organizações ambientalistas fez com que parte do estrago fosse reduzido. Na sequência, as medidas foram aprovadas pelo plenário do Senado sem alterações.
“Foi reduzido o regime de proteção de áreas das unidades onde não existe histórico de ocupação. Do jeito que ela [MP 756] ficou hoje, é melhor a situação antiga”, completa Paulo Carneiro.
Como é possível perceber no mapa do desmatamento do trecho do Parna do Jamanxim convertido na APA Rio Branco, a região é quase 100% preservada. Portanto, não há justificativa para desproteger uma área tão grande.
A anistia irrestrita, via MPs, dada tanto aos ocupantes legítimos quanto aos grileiros é um prejuízo, inclusive, para os primeiros, adverte Maurício Torres, pesquisador com vários trabalhos sobre a região. “Os colonos deveriam ser atendidos sem essa desafetação. A desafetação prejudica esse grupo, porque a pressão de grileiros em cima deles vai piorar muito”, avalia.
A presença de ocupantes de boa fé não foi o único argumento do governo para justificar as MPs. Paulo Carneiro informa que os intensos conflitos desde a criação da Flona do Jamanxim, em 2006, nunca permitiram sua efetiva implementação. Há um ano, por exemplo, o sargento da Polícia Militar paraense João Luiz de Maria Pereira foi assassinado em uma emboscada de madeireiros durante operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) para combater a extração ilegal de madeira.
A recategorização de parte da Flona do Jamanxim em APA seria, de acordo com Carneiro, uma mudança de estratégia para resolver os conflitos fundiários na região, conseguir implementar a Flona e proteger a floresta.
Já o objetivo inicial da MP 758 era retirar um trecho de 862 hectares do Parna do Jamanxim para permitir a construção da ferrovia “Ferrogrão”, utilizada no transporte de commodities, principalmente soja, entre Pará e Mato Grosso. Além disso, a redação original da MP ampliava o Parna em 50 mil hectares. O Congresso descaracterizou o texto original, cancelando a ampliação e retirando uma área 120 vezes maior do Parna (veja tabela).
“O governo se rendeu ao crime organizado que ele não conseguia combater”, analisa Ciro Campos, do ISA.
Levantamento do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA encontrou 293 Cadastros Ambientais Rurais (CAR) incidentes sobre as APAs do Jamanxim e do Rio Branco, criadas nas áreas retiradas do Parna e da Flona do Jamanxim. A média de cada cadastro é de 1,7 mil hectares, o que equivale a quase 20 vezes a extensão média ocupada por posseiros na região, de acordo com Maurício Torres. O CAR é obrigatório para todos os produtores rurais, autodeclaratório e foi criado para a regularização ambiental das propriedades pelo Código Florestal de 2012.
O problema é que, nas categorias de UCs em questão, não podem existir imóveis particulares. Assim, o CAR tem sido usado na região como uma tentativa de comprovação da posse de áreas griladas. “Eu posso te assegurar que o CAR, nessa região, é hoje um dos principais instrumentos de grilagem. Na prática, é usado como ‘título fundiário’ para comercializar terras públicas”, assegura Maurício Torres.
Especialistas ouvidos pelo ISA avaliam que essas ações de ocupação e desmatamento ilegais são realizadas em esquema de “crime organizado”, em associação com figuras da elite econômica e política da região.
Antes do asfaltamento da BR-163, no distrito de Castelo de Sonhos, em Altamira, por exemplo, o alqueire de terrenos localizados perto da estrada, com 30% a 40% de área desmatada, custava em torno de R$ 2 mil. Quatro anos depois, em 2016, após o asfaltamento, valia no mínimo seis vezes mais, chegando até a R$ 15 mil. A informação consta do livro "Dono é quem desmata".
Outro grande vetor de pressão sobre as UCs é o garimpo, principalmente de ouro. Levantamento do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA, com base em dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), encontrou 127 processos para exploração minerária dentro das APAs do Jamanxim e do Rio Branco, criadas a partir da redefinição dos limites da Flona e do Parna do Jamanxim. Destes, dois incidem sobre a APA Rio Branco. Outros 85, sobre a APA Jamanxim. E os 40 restantes incidem tanto sobre a APA Jamanxim quanto sobre a Flona Jamanxim.
“A porção prevista para se converter na APA Rio Branco delimita a área cobiçada para expansão de garimpos de grande porte”, informa nota técnica do ISA. Segundo o documento, a atividade usa maquinário pesado e amplia exponencialmente contaminação da água e do solo, assoreamento, erosão, desmatamento. Além disso, também emprega grandes contingentes de trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Uma das alterações promovidas pelo Congresso na MP 756 inclui uma UC que sequer era citada em seu texto original: o Parna São Joaquim (SC). A área está na Mata Atlântica, que tem apenas 8,5% da cobertura original bem conservada, e protege a formação florestal mais ameaçada do país: a Floresta de Araucárias.
De acordo com Paulo Santi, chefe do Parna São Joaquim, há diversos atores interessados na redução dos limites. Entre eles, produtores rurais com propriedades dentro dos limites do Parna, aqueles que estão área desde sua criação, em 1961, quanto os que chegaram lá no ano passado. Além disso, há empreendimentos de energia eólica no sul da UC.
A prefeitura do município de Lauro Müller também tem interesse em uma área de aproximadamente dez mil hectares sobreposta ao parque para a construção de um museu. Em área sobreposta à planejada para o empreendimento, há quatro requerimentos para exploração de carvão (saiba mais).
Paulo Carneiro informa que a bancada de Santa Catarina no Congresso havia iniciado negociações com o governo federal para diminuir o parque. “Nós não conseguimos chegar a um consenso e a proposta que está ali [na MP] é intermediária. Ela gera perda”, diz. Ele considera que a inclusão da UC de Santa Catarina no texto da MP é “inaceitável e bastante prejudicial”.
É também no entorno da BR-163, próximo às UCs alteradas, que atuava Antônio José Junqueira Vilela Filho, o Jotinha, maior desmatador individual da Amazônia. Ele destruiu mais de 30 mil hectares de floresta e tem no currículo o maior valor em multas por desmatamento ilegal na Amazônia: R$ 119,8 milhões.
Boa parte da destruição promovida por Jotinha, preso em 2016 na Operação Rios Voadores da Polícia Federal, estava concentrado em área que, até 2003, compunha a Terra Indígena (TI) Baú. Habitada pelo povo Kayapó, a TI perdeu, por pressão de grupos locais ligados à agropecuária e à grilagem, ativos até hoje, 17,2% de sua área original de 1,85 milhão de hectares.
De acordo com Juan Doblas, o caso é um exemplo do que pode ocorrer com as áreas modificadas das UCs no Pará se as MPs não forem vetadas. Dados do Imazon indicam que, após a redução da área, as taxas anuais de desmatamento na porção desafetada da TI Baú aumentaram 129%.
Em todo o mundo, existem mais de 1400 denominações em uso para designar áreas protegidas. Entre elas, estão os Parques Nacionais (Parna), as Florestas Nacionais (Flona) e as Áreas de Proteção Ambiental (APA).
Parque Nacional. Os Parnas estão incluídos, pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), na categoria de UCs de Proteção Integral. Dentro dessas áreas, não pode haver exploração econômica dos recursos ou ocupação humana. São permitidas, no entanto, atividades de pesquisa, turismo e educação ambiental. Estas atividades devem estar sujeitas aos planos de manejo de cada Parna. Hoje, há 71 Parnas no Brasil (confira a lista).
Floresta Nacional. As Flonas estão enquadradas como UCs de Uso Sustentável no Snuc. Isso significa que podem ser realizadas atividades de exploração econômica dos recursos em seu interior, de forma sustentável. Entre as atividades permitidas estão manejo florestal, turismo, pesquisa e mineração no caso de concessões preexistentes à criação da própria Flona, com licença ambiental e em áreas previamente identificadas. Não é permitida a presença de imóveis particulares. A permanência de populações tradicionais que lá estivessem no momento da criação da UC também é permitida. As atividades desenvolvidas dependem de autorização em planos de manejo específicos. Hoje, existem 67 Flonas no país (veja a lista).
Área de Proteção Ambiental. As APAs, assim como as Flonas, são UCs de Uso Sustentável, de acordo com o Snuc. Esta é a categoria de UC menos restritiva do ponto de vista da proteção ambiental. Em seu interior, é permitida a compra e venda de imóveis particulares, o corte raso da vegetação, a pecuária, a mineração, e outras atividades previstas em seu plano de manejo. Também são permitidas a visitação e a pesquisa científica. Hoje, existem no país 34 APAs federais (veja a lista).