Você está na versão anterior do website do ISA

Atenção

Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.

Os desafios da regularização ambiental depois do CAR

Na 4ª e última reportagem do ISA sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR), pesquisadores e técnicos explicam os principais desafios para a regularização ambiental, etapa posterior ao cadastro
Printer-friendly version

A etapa de inscrição dos imóveis rurais no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) representa apenas uma fração dos desafios das políticas estabelecidas pelo atual Código Florestal (Lei nº 12.651/2012). A inscrição serve para compor a base de dados que será utilizada nas estratégias de regularização ambiental. É com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) que o produtor pode identificar as Áreas de Preservação Permanente (APPs), Reservas Legais (RLs) e áreas de uso restrito dentro de seu imóvel e, caso exista necessidade de restauração florestal, pode aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA).

O que é o Cadastro Ambiental Rural?

O CAR é um instrumento instituído pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012) com o objetivo de criar um registro de todos os imóveis rurais no país, integrando as informações ambientais das propriedades em uma base de dados para viabilizar a regularização ambiental e garantir o controle, monitoramento e combate ao desmatamento no Brasil.

No CAR, é feito o registro dos dados sobre as áreas desmatadas, de Reserva Legal (RL), Preservação Permanente (APPs), áreas de Uso Consolidado, de Uso Restrito e as que devem ser reflorestadas. Apesar de ter se tornado obrigatório para todo o país com o Código Floretal, o CAR já era utilizado antes de 2012 em estados da Amazônia Legal como parte das políticas de redução do desmatamento.

Para que seja possível dar início à regularização ambiental dos imóveis, cada estado precisa definir normas próprias para os PRAs. Espécies de vegetação nativa, clima e composição do solo, por exemplo, são alguns dos pontos que devem ser levados em conta na construção dos planos estaduais. Os Estados devem, também, analisar e validar os cadastros, avaliar os Projetos de Recuperação de Áreas Degradadas e Alteradas (Prada) e monitorar a regularização ambiental.

“A fase da regularização ambiental vai ser mais demorada e complexa e tem uma abrangência muito maior do que a fase feita até agora”, diz Gerd Sparovek, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP).

A fase de regularização ambiental é essencial para que o país atinja os objetivos de redução do desmatamento e recomposição dos biomas degradados, estabelecidos tanto na lei florestal quanto em acordos internacionais assumidos pelo Brasil, como o do Clima e da Biodiversidade. “Nenhuma dessas agendas é alcançável sem uma efetiva implementação dos PRAs”, diz Sparovek.

Alguns dos atuais desafios na implementação do CAR foram tratados nas três primeiras reportagens da série do ISA: reportagem 1, reportagem 2 e reportagem 3.

PRA declaratório

Levantamento do jornal O Globo mostra que, hoje, apenas 13 estados regulamentaram seus PRAs. Sem regras claras, os proprietários e possuidores rurais ficam à mercê da insegurança jurídica.

APP, RL, Áreas de Uso Restrito

Os produtores rurais têm de regularizar os passivos no interior das Áreas de Preservação Permanente (APP), Reserva Legal (RL) e áreas de uso restrito.

APP - Não podem ser utilizadas na exploração econômica e são destinadas à preservação do solo e dos cursos d’água.

RL - Área coberta por vegetação natural que pode ser explorada de forma sustentável, nos limites estabelecidos pelo bioma onde está o imóvel. Na Amazônia legal, os imóveis devem ter um total de 80% de RL nas áreas de floresta e 35% nas áreas de cerrado. Nos outros biomas, esse percentual é de 20%.

Área de uso restrito - Áreas de pantanais, planícies pantaneiras, áreas com inclinação entre 25º e 45º e áreas da zona costeira ocupadas por apicuns e salgados.

“Os estados têm que ter seus parâmetros técnicos para dizer o que vão levar em consideração no PRA. Têm que dizer quais são as metodologias que o proprietário pode usar, quais espécies o estado recomenda que se utilizem no bioma, quais as formas de fazer a recuperação, quais são as regras”, explica Gabriela Savian, engenheira agrônoma e consultora ambiental.

João Paulo Mastrangelo, secretário adjunto da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Acre (Sema-AC), diz que um dos principais desafios na construção do PRA no estado é justamente este: “Todos os atos e regras que a gente estabelecer para o programa, principalmente o conceito de uso econômico de áreas de passivo ambiental, a gente está se debatendo com o desafio de garantir segurança jurídica”.

O ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, sinalizou em uma audiência na Comissão de Agricultura e Pecuária da Câmara dos Deputados que o governo estaria desenvolvendo um modelo de PRA autodeclaratório. “Eu sou daqueles que esperam que as pessoas tenham responsabilidade e respondam por seus atos. Então, eu concordo com a sugestão de que o PRA possa ser uma iniciativa dos próprios produtores e nós vamos fiscalizar”, disse.

Em entrevista ao ISA, Bernardo Trovão, gerente executivo do CAR do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), explicou que esse modelo vai permitir aos proprietários apresentar suas propostas de regularização antes do CAR analisado. “Se ele concorda com o passivo, se quer aderir ao PRA, a gente possibilita que ele apresente a proposta de regularização. Se ela vai ser aprovada ou não, vai depender do órgão ambiental quando for analisar tanto o CAR como a proposta de regularização”, comenta.

A ideia atrai críticas da sociedade civil, apesar de não haver ainda clareza sobre como seria sua execução. João de Deus Medeiros, coordenador geral da Rede Mata Atlântica, considera ilegal a apresentação de uma proposta do governo federal para o PRA. O Código Florestal diz que o prazo para regulamentação dos PRAs, pela União e pelos estados, era de um ano a partir da aprovação da lei. A postura adotada pela União na época foi de apoio aos governos estaduais, sem a apresentação de uma proposta própria. “Acho que é uma tentativa desastrada de tentar tapar o buraco gerado por essa decisão equivocada”, diz Medeiros.

Regularização ambiental e PRA

Para alcançar a regularização ambiental, o produtor com passivos em seu imóvel pode optar por aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Para isso, apresenta o Projeto de Recuperação de Áreas Degradadas ou Alteradas (Prada). Se aprovado pelo órgão estadual, o detentor do imóvel assina um Termo de Compromisso (TC). A regularização pode ser feita via restauração, regeneração natural ou compensação dos passivos.

No caso da regularização de APPs, o Código Florestal permite a restauração com o plantio de espécies nativas; o plantio de nativas juntamente com a regeneração natural; e o plantio intercalado com metade de espécies nativas e metade de exóticas, para os imóveis pequenos.

Já no caso da regularização de RLs, os produtore rurais podem fazer a restauração com plantio de espécies nativas; intercalando nativas e exóticas; fazendo regeneração natural da área desmatada; e compensação. Este último método consiste, como o nome diz, em compensar o desmatamento, o que pode ser feito de diferentes maneiras: com a aquisição de Cotas de Reserva Ambiental (CRA); doação de área localizada dentro de unidade de conservação pendente de regularização fundiária; e servidão ambiental, quando o produtor renuncia à exploração dos recursos ambientais em seu imóvel, fora de APP e RL, e é beneficiado com incentivos tributários e facilidades na obtenção de recursos para investir nestas áreas, que podem ser usadas como reserva legal de terceiros.

Segundo a lei, todo produtor rural é obrigado a recuperar áreas desmatadas ilegalmente. A adesão ao PRA, no entanto, garante alguns benefícios, que incluem diminuição da área a ser recuperada em APP; possibilidade de compensação da RL em imóveis de outros produtores; restauração de RL com plantio intercalado de espécies nativas e exóticas; suspensão de processos administrativos e criminais; e manutenção das atividades agrossilvipastoris estabelecidas até 22 de julho de 2008. Além disso, os produtores podem ter acesso a crédito agrícola e se valer de programas governamentais de incentivo à produção e comercialização. A preocupação é que, com o PRA declaratório, os produtores em situação irregular acabem recebendo esses benefícios de maneira indevida.

Sem validação, não há regularização

O avanço da regularização ambiental depende da análise e validação dos dados incluídos no Sicar. Como o CAR é um procedimento autodeclaratório, sem a análise - responsabilidade dos órgãos estaduais de meio ambiente -, não é possível saber qual é a veracidade e exatidão das informações apresentadas e se há sobreposições com outros imóveis rurais e áreas protegidas.

Como mostrado na primeira reportagem da série do ISA sobre o CAR, a validação dos cadastros caminha a passos lentos. Em todo o país, apenas 4,5% dos cadastros foram analisados até julho de 2017. “O avanço em número e escala da análise vai depender muito de como cada estado vai se organizar. Os estados estão se organizando, mas é muito difícil dar uma perspectiva de quanto tempo vai levar para se analisar todos os cadastros”, afirma Trovão.

“A gente não pode enfraquecer nesse passo [análise e validação] porque é o que vai qualificar a informação para que o CAR seja uma base de dados para ser utilizada em diversas frentes”, aposta Savian.

A falta de análise dos cadastros também tem o potencial de agravar os conflitos no campo. Existem relatos de uso do CAR para legitimar a invasão e a ocupação irregular de terras. Brenda Brito, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), avalia que “o CAR sem validação não vai ser útil nem para regularização ambiental e nem para evitar conflitos fundiários”.

Quem concentra os maiores passivos?

Estudo de pesquisadores do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e da Esalq/USP mostra que 59% da área sem conformidade com a lei florestal está nas grandes propriedades. Levando em conta áreas entre quatro e 15 módulos fiscais, o índice sobe para 94%. Isso significa que os pequenos, a maior parte dos imóveis rurais no país, concentram apenas 6% do déficit. O módulo fiscal varia de município para município.

Para que o Código Florestal seja cumprido, 19 milhões de hectares de APPs e RLs devem ser recuperados ou compensados. Destes, oito milhões de hectares estão localizados em APPs e os outros 11 milhões, em RLs. Proporcionalmente, o bioma com os maiores déficits é a Mata Atlântica, seguido pelo Pampa e Cerrado.

O passivo para regularização dos imóveis é grande, mas era para ser maior. As chamadas anistias dizem respeito à diminuição das áreas a serem restauradas em APPs e RLs, à permissão de continuar com as estruturas e atividades agrossilvipastoris feitas até 22 de julho de 2008 e ao cancelamento das multas e penalidades até esta data.

O estudo mostra que a área total dispensada da necessidade de restauração, com as anistias, foi de 41 milhões de hectares. É uma área maior que a da Alemanha. Do total desprotegido, 36,5 milhões são de RL e os outros 4,5 milhões são de APP. Os autores do estudo escrevem que “apesar da área de APP anistiada ser 8 vezes menor que a de RL, ela merece atenção especial, pois suas funções ecológicas e de produção de serviços ambientais na paisagem [...] não podem ser compensados ou substituídos por nenhuma outra medida”.

Custo de recuperação alto

Pesquisadores e servidores dos órgãos de meio ambiente entrevistados pelo ISA concordam que o custo é um dos desafios da regularização ambiental.

Os estados têm a obrigação de apoiar a regularização ambiental dos pequenos produtores. Apesar de haver uma lacuna nas regras sobre a regularização dos territórios de comunidades indígenas e tradicionais, também cabe aos governos estaduais apoiar esses grupos. Isso é dificultado pelas atuais condições de grande parte das secretarias estaduais de Meio Ambiente por causa de cortes de gastos e restrição do quadro de servidores.

“É possível que o Estado, em algum momento, tenha possibilidade de política pública para isso, mas na atual conjuntura, em que a gente só está vendo retrocessos e recursos sendo retirados da agenda ambiental, inclusive apoios internacionais, não vejo isso acontecendo”, afirma Miriam Prochnow, conselheira da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi).

“A ideia é ter cooperações para implementar isso [o PRA], porque a gente nunca vai fazer sozinho. É uma coisa muito complexa. O desafio é ter esse arranjo, definir quem vai pagar pela recuperação, como vai ser feito, tentar simplificar”, diz Júlia Linhares, assessora técnica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Amazonas (Sema-AM). “Se a gente não tiver dinheiro e parcerias, eu tenho certeza que a gente não vai conseguir implementar o PRA”, completa.

Arquimedes Longo, coordenador de Monitoramento da Secretaria de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (Sedam-RO), relata que houve apoio da Agência de Cooperação Técnica Alemã (GIZ) para fazer o levantamento de parâmetros técnicos para implementar os PRAs no Estado.

No caso do Acre, Mastrangelo diz que o estado está buscando um modelo alternativo, de credenciamento de técnicos para formar uma rede de assistência técnica privada que possa ser acionada para auxiliar os pequenos agricultores. A estratégia está sendo financiada pelo Fundo Amazônia. “A gente está tentando construir esse modelo alternativo dada a sobrecarga que a assistência técnica pública já sofre em relação a suas outras atribuições”, explica.

Para os proprietários e posseiros de imóveis grandes e médios, o investimento na regularização tem de sair do próprio bolso.

“Os custos são suficientemente altos para justificar a contratação de advogados que possam questionar e postergar o máximo possível o cumprimento da obrigação”, avalia Raul da Silva Telles, da Secretaria de Meio Ambiente do Distrito Federal (Semarh-DF), no livro “Código Florestal Brasileiro: haverá futuro?”. Ele acrescenta que os efeitos da multas e demais penalidades mostraram-se insuficientes para avançar com a regularização.

Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, destaca que o custo de restauração florestal é maior nas áreas mais degradadas, onde em muitos casos a recuperação tem de ser feita com plantio intensivo de mudas e cercamento. “Mas a maior parte das áreas pode ser recuperada com regeneração via indução, em que o custo não é tão alto. Além disso, é possível pensar em iniciativas regionais que podem levar à redução dos custos”, acrescenta.

A campanha Y Ikatu Xingu é um bom exemplo desse tipo de iniciativa. Criada, em 2004, por uma rede de organizações - entre elas o ISA - e moradores da região do Território Indígena do Xingu, no nordeste do Mato Grosso, foi um esforço conjunto para recuperar as matas nas margens do Rio Xingu e, assim, garantir a qualidade da água. Os participantes da mobilização desenvolveram ou aprimoraram técnicas mais simples e baratas, que podem servir de exemplo para as estratégias elaboradas no âmbito dos PRAs, como o plantio direto mecanizado de sementes.

Com a campanha foram recuperados mais de 4 mil hectares em assentamentos, pequenas, médias e grandes propriedades de 24 municípios do Mato Grosso. A partir da campanha, foi criada a Rede de Sementes do Xingu, que continua a promover o desenvolvimento regional a partir da restauração florestal.

“A gente precisa urgentemente mostrar as experiências que estão dando certo e que permitem fazer a recuperação a menor preço”, diz Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu do ISA. Ao mesmo tempo, ele acrescenta que é necessário apoio da sociedade e do Estado para que a silvicultura de espécies nativas possa se desenvolver de uma maneira a fazer frente aos investimentos que já foram feitos nas outras culturas, como a da soja, por exemplo. “A gente tem que buscar alternativas mais baratas e que também dialoguem com a realidade local de cada região”, pontua Junqueira.

Incentivos podem auxiliar na execução da lei

Em função desse problema, o Código Florestal prevê a criação de incentivos econômicos para a restauração florestal. O Programa de Apoio e Incentivo à Conservação do Meio Ambiente e as Cotas de Reserva Ambiental (CRA) são os mais importantes desses instrumentos. Mesmo assim, apesar de constarem na lei, o governo federal ainda não estabeleceu as regras necessárias para eles começarem a ser executados.

“O maior desafio é convencer o proprietário de que aquilo que você está levando como recuperação seja algo que, pelo menos no médio prazo, vai dar um retorno financeiro”, diz Arquimedes Longo.

Apesar de a regularização ambiental ser uma obrigação legal, uma estratégia de incentivos pode ampliar a adesão dos produtores ao PRA.

Entre os benefícios do Programa de Apoio e Incentivo à Conservação do Meio Ambiente, há, por exemplo, a previsão de isenção tributária em imposto territorial e na aquisição de insumos e equipamentos para ações de recuperação, crédito a taxa de juros diferenciada, preferência de compra em programas de aquisição governamentais e pagamento por serviços ambientais.

As CRAs servem como uma forma de compensar uma área de RL desmatada de uma propriedade em outra - no mesmo bioma - que tenha vegetação preservada ou em processo de recuperação. Se um proprietário tiver uma RL desmatada, pode compensar esse passivo adquirindo uma CRA de outro proprietário que tenha uma área a mais de RL preservada. A área não é vendida, o proprietário com o passivo paga pelo serviço de conservação.

Redes de sementes: oportunidade com a restauração florestal

O PRA ainda não saiu do papel, mas deverá movimentar a cadeia da restauração, inclusive fomentando as Redes de Sementes, que vêm se destacando na recuperação dos biomas brasileiros. Essas redes vêm gerando uma nova economia, principalmente para os povos e comunidades que vivem em áreas rurais e no entorno de áreas protegidas, sendo uma importante alternativa para o uso sustentável dos recursos naturais.

A Rede de Sementes do Xingu é um exemplo marcante deste tipo de atividade. Desde a criação da Rede, em 2007, foram comercializadas 175 toneladas de sementes florestais de 200 espécies, gerando mais de R$ 2,5 milhões de renda e beneficiando 421 coletores. Esta atividade inclusive, tem sido uma oportunidade de trabalho para os jovens, contribuindo para eles permanecerem em suas comunidades.

Victor Pires
ISA
Imagens: