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Isolados e desprotegidos

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Mesmo após provável massacre, governo prevê cortes e sistema de proteção aos isolados deve ruir em 2018
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Se neste ano, com orçamento estrangulado, o sistema de proteção da Funai aos povos indígenas isolados não pode prevenir o provável massacre do rio Jandiatuba, na Terra Indígena Vale do Javari (AM), a expectativa para o ano que vem é ainda pior.

Os servidores da Funai que atuam nas frentes e bases terão à disposição, em 2018, um orçamento 23% menor que o de 2017, o que não garante o funcionamento das 11 Frentes de Proteção Etnoambiental. Uma queda que pode levar o sistema ao colapso.

A estimativa do governo federal aponta um total de R$ 2,2 milhões para a proteção aos povos isolados em 2018, ante R$ 2,65 milhões em 2017. Para ter capacidade de manter operando precariamente as 19 bases ainda ativas, seriam necessários pelo menos R$ 3,5 milhões.

Ou seja, não há previsão de que as sete bases desativadas sejam reabertas, e se tornou inviável manter em funcionamento as que ainda existem. Um cenário desolador para povos indígenas com alto grau de vulnerabilidade.

Exemplo claro é a base de proteção do rio Jandiatuba, onde ocorreu o provável massacre. Ela foi criada em 2010 e fechada em 2014 por falta de verba. Se estivesse em operação, poderia ter coibido a ação e a expansão das balsas garimpeiras, em conjunto com a Polícia Federal, o Ibama, o Ministério Público Federal e organizações indígenas.

Operacionalidade próxima do zero




Neste ano, a capacidade de conduzir expedições regulares de localização e proteção foi reduzida a praticamente zero.

Para realizar 11 expedições de confirmação da localização de povos indígenas isolados, os servidores da Funai estimaram um custo mínimo necessário de R$ 276 mil, mas a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recente Contato (CGIIRC) dispõe de apenas R$ 18 mil, correspondentes a irrisórios 6,5% do requerido.

Já para realizar 14 expedições de monitoramento de povos isolados com referências confirmadas, o custo estimado foi de R$ 297 mil, mas apenas 25,9% (R$ 77 mil) foram liberados.

A situação das ações de localização, monitoramento e proteção só não é pior porque, desde 2014, a CGIIRC conta com um acordo de cooperação técnica com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), financiado pelo Fundo Amazônia (gerido pelo BNDES com recursos da cooperação internacional, majoritariamente do governo da Noruega).

Há ainda emendas parlamentares anuais da ordem de R$ 490 mil, propostas pelo deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ). Os recursos, porém, são incertos, demoram a ser liberados e são insuficientes para cobrir o rombo.

“Nós estamos em setembro e, apesar da emenda ter sido liberada, já não temos mais recursos para cobrir os custos das Frentes”, disse um funcionário da Funai que não quis se identificar.

"É muito grave. Voltamos ao patamar orçamentário de 2006, quando havia apenas seis frentes de proteção", disse Gilberto Azanha, antropólogo e conselheiro do CTI. "É grave porque tira a mobilidade da Funai. A excelência dos chefes de frente vai para o espaço nessas circunstâncias e fragiliza muito a proteção aos isolados. Isso, combinado à ânsia ruralista que o governo patrocina, é muito preocupante."

Orçamento abaixo do mínimo

Entre 2014 e 2016, a Funai teve uma queda 56% em seu orçamento e se viu obrigada a fechar sete das 26 Bases de Proteção Etnoambiental (BPEs) no interior de 17 Terras Indígenas com presença de isolados e/ou de recente contato, enquanto as demais vêm sendo mantidas à mingua.

A correlação entre as duas ocorrências demonstra a maneira como a pior crise orçamentária vivida pela Funai desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 impacta a de proteção aos isolados e recém contatados.



A série histórica do orçamento da Funai e da CGIIRC evidencia que o patamar atual põe a perder todas as conquistas obtidas com a reestruturação do órgão promovida em 2009, que elevou de seis para 12 (11 mais uma coordenação em Brasília) o número de frentes de proteção. Com a promulgação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Teto dos Gastos Públicos em 2016, a previsão oficial é que valores abaixo do mínimo sejam congelados pelos próximos 20 anos.

Investigações sobre massacre seguem sob sigilo

O Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a Funai mantêm sigilo sobre a investigação do provável massacre dos índios isolados conhecidos como “flecheiros” por pessoas ligadas à atividade garimpeira ilegal em agosto passado, no rio Jandiatuba.

Indícios que vieram a público, como artefatos pertencentes aos índios isolados e áudios de celular apreendidos com suspeitos que prestaram depoimento à PF, reforçam a denúncia feita pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e a necessidade de tomar medidas urgentes para reverter o quadro de abandono em que se encontra a Funai e a política de proteção aos povos isolados e de recente contato. (leia a entrevista de Sidney Possuelo ao portal Amazônia Real).

O crime teria ocorrido no mesmo contexto em que uma operação conjunta para reprimir as atividades garimpeiras ilegais no rio Jandiatuba, realizada pelo MPF, o Exército e o Ibama.

Em nota divulgada em 6 de setembro (saiba mais aqui), a procuradoria da República em Tabatinga relatou que sobrevoos permitiram a identificação de pelo menos 16 balsas de extração de ouro na região do Jandiatuba, cada uma delas avaliada em R$ 1 milhão. Na operação, quatro destas balsas foram destruídas e multas de mais de R$ 1 milhão foram aplicadas a seis garimpeiros.

Se as estimativas divulgadas pela Univaja de que mais de 20 “flecheiros” foram mortos estiverem corretas, este passa a ser, em termos numéricos, o maior massacre documentado de um povo indígena no Brasil desde 1993, quando 16 Yanomami foram assassinados em na aldeia de Haximu (TI Yanomami) por garimpeiros instalado na região durante a corrida do ouro iniciada em Roraima nos anos 1980 (saiba mais).

Ruralistas atacam operações

Apesar de não ter contribuído para evitar a trágico massacre, e mesmo tendo sido insuficiente para encerrar as atividades garimpeiras ilegais no interior e entorno da TI Vale do Javari, operações como a realizada entre agosto e setembro vêm sendo alvo de crescentes questionamentos por parte dos ruralistas.

Em meados agosto, o deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da bancada ruralista, apresentou uma proposta alteração de Lei de Crimes Ambientais (Lei N.º 9.605/98) que pretende proibir a inutilização ou destruição de equipamentos apreendidos durante ações de fiscalização ambiental. Se a alteração for aprovada, as forças policiais ficarão impedidas de efetivar uma das mais estratégicas medidas para frear a ação dos infratores, principalmente em áreas geograficamente afastadas.

A proposta do líder da bancada ruralista é uma resposta direta às operações de fiscalização realizadas pelo Ibama entre junho e julho na Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso e Altamira (PA), que resultaram na inativação de nove balsas de garimpo ilegal.

A Flona do Jamanxim é uma das quatro Unidades de Conservação situadas no raio de influência da BR-163 (Cuiabá-Santarém) que teve seus limites reduzidos por por medida provisória (nº 756) publicada pelo presidente Michel Temer (PMDB) em dezembro do ano passado e vetada seis meses depois pelo próprio presidente após protestos.

Condições precárias e saída de servidores

A falta de recursos também impulsiona a evasão maciça servidores da Funai. Em 2017, pouco mais de um terço dos 120 auxiliares de indigenismo aprovados em concurso público para atuar diretamente nas frentes e bases de proteção continuaram a exercer suas funções. Os demais saíram porque tiveram aprovados seus pedidos de transferência para cidades mais bem estruturadas, ou porque decidiram se desligar em definitivo da Funai.

A falta de regulamentação específica para a profissão de risco é uma das razões que contribuem significativamente para acirrar a debandada de funcionários das frentes e bases de proteção.

“Não tem escala de folga e serviço, nem adicionais de periculosidade, insalubridade, trabalho noturno ou fronteira, nada disso que existe no MPF, na Polícia Federal ou para os funcionários que trabalham embarcados nas plataformas da Petrobrás”, explicou um servidor que preferiu não se identificar. “Sem essas garantias e com falta de recursos, incentivos e capacitação fica muito difícil não desistir”, afirmou.

Leandro Mahalem e Roberto Almeida
ISA
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