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Belo Monte coloca biodiversidade do Xingu em risco

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Cientistas alertam que a hidrelétrica pode ser responsável pelo desaparecimento de peixes endêmicos na Volta Grande do Xingu, no Pará. Ao menos 26 espécies estão ameaçadas
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Pesquisadores alertam que a hidrelétrica de Belo Monte pode ser responsável pelo desaparecimento de espécies de peixes na Volta Grande do Xingu, no Pará. O barramento definitivo do rio Xingu, em 2015, provocou uma redução da vazão da água e alteração no pulso das secas e cheias, trazendo impactos que podem ser irreversíveis em uma das regiões mais biodiversas do planeta. A constatação foi feita em artigo publicado na revista Biological Conservation. [Leia aqui artigo original em inglês e aqui a versão traduzida para o português].

Das 63 espécies endêmicas que são conhecidas na Bacia do rio Xingu, 26 só existem nas corredeiras da Volta Grande. São aproximadamente 100 quilômetros de rio com uma riqueza de plantas e animais incalculável, além de ser morada de centenas de famílias ribeirinhas e duas Terras Indígenas. “Cada trecho de corredeira, cada braço de rio é um ambiente único. Sem sombra de dúvidas é uma região única no mundo que tem que ser preservada”, comenta o biólogo Leandro Souza, um dos autores do estudo e pesquisador do Laboratório de Ictiologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Como o pulso de enchente e vazante será profundamente alterado, o nível da água não será suficiente para manter a nutrição da vegetação nas ilhas, nem para que a fauna aquática tenha acesso às áreas inundáveis, prejudicando sua reprodução e, por consequência, os modos de vida das populações que dependem do rio para viver.


Equilíbrio ameaçado

Tão importante quanto a diversidade de fauna e flora, são os sofisticados processos ecológicos que regulam e garantem a manutenção da vida na região. É esse delicado equilíbrio que está em jogo.

Segundo os pesquisadores, a diminuição do volume de água e a mudança na dinâmica da vazão vai remover um componente chave que mantém a heterogeneidade do sistema. “A redução de 80% atualmente esperada provavelmente resultará em fluxo insuficiente para a manutenção da diversidade aquática”, diz o estudo


Nas fendas das pedras nas corredeiras do Xingu vive um peixe ameaçado de extinção: o Acari Zebra (Hypancistrus zebra), conhecido como “Zebrinha”. Os Juruna, povo que vive na Terra Indígena Paquiçamba, são exímios mergulhadores e conseguem encontrar essa espécie a dezenas de metros no fundo do Xingu. Conhecedores do rio e suas dinâmicas, eles perceberam a diminuição do número de zebrinhas e se preocupam com o desaparecimento dessa espécie que só vive nas correntezas, habitat particularmente vulnerável às alterações hidrológicas.

O pacu, espécie de peixe mais consumida pelos Juruna, também está ameaçado. Ele se alimenta de frutos de caem na água durante o inverno, época de cheia do rio. Com a diminuição do volume de água e a mudança na dinâmica das vazantes, os frutos caem no seco, o que impossibilita a alimentação e a consequente reprodução da espécie. O exemplo do pacu ilustra um dos muitos processos ecológicos que estão em risco e que podem impactar a manutenção da biodiversidade aquática. A falta de sincronismo entre a vazão necessária mínima para alagar os locais de reprodução no momento certo e alimentação de espécies importantes para consumo humano das populações da Volta Grande poderá impactar a segurança alimentar de indígenas e ribeirinhos.


Tiro no escuro

A Norte Energia, empresa concessionária de Belo Monte, deve implementar o chamado "Hidrograma de Consenso Ecológico", nome que eles dão para o controle do volume de água que vai passar pela Volta Grande e o volume que será desviado para a produção de energia. Isso deve ocorrer a partir de 2019, ano em está prevista a finalização da instalação das 18 turbinas que correspondem à potência máxima da usina.

O Ibama estabeleceu um rigoroso plano de monitoramento dos impactos derivados da vazão residual prevista no Hidrograma, monitorando o que acontece com a fauna, flora, água e os impactos no modo de vida das populações que ali vivem. A proposta é determinar qual é o mínimo de água necessário para manter a vida na Volta Grande (manutenção dos processos ecológicos, ciclo de vida dos peixes e plantas, garantia de subsistência física e cultural dos povos indígenas e ribeirinhos que ali vivem), e, ao mesmo tempo, qual é a quantidade máxima de água que a empresa pode usar para movimentar as turbinas instaladas.

O que o Hidrograma de Consenso estabelece, no entanto, é muito aquém da vazão natural do rio e não leva em consideração questões relacionadas à sincronia do rio com a floresta que alimenta a fauna aquática e serve como refúgio para sua reprodução. “É um tiro no escuro”, alerta Souza.

Para ele, a diminuição do volume de água não pode ocorrer de forma tão abrupta: ‘“Não sabemos qual é a quantidade mínima de água para manter a biodiversidade da Volta Grande do Xingu, essa é a grande questão ecológica que ninguém sabe responder. Talvez o Hidrograma de certo, mas talvez não. Depois de anos de testes, podemos descobrir que alguma espécie não se adaptou, foi extinta. Vamos correr esse risco? O hidrograma teria que ser feito mais paulatinamente”.

Há cinco anos os Juruna realizam um monitoramento independente dos peixes e consumo alimentar na região. Em 2016, primeiro ano após o barramento definitivo do rio, eles registraram de perto as mudanças e comprovaram que tanto os peixes quanto a navegabilidade do Xingu foram impactados mesmo com o volume de água superior ao proposto pelo Hidrograma de Consenso. Naquele ano a vazão foi de aproximadamente 10 mil m3/s, já os índices propostos preveem vazões de 4 mil m3/s e 8 mil m3/s, alternadas ano a ano a partir de 2019.

“Os Juruna já comprovaram que o Hidrograma do jeito que foi definido pela Agência Nacional de Águas (ANA) o Ibama é insustentável. O início dos testes precisam ser cancelado e é urgente que os critérios para definição do Hidrograma sejam revistos com contribuições da academia, mas principalmente com a participação de indígenas e ribeirinhos que moram na região e conseguem descrever muito bem as mudanças que vem acontecendo desde 2015 com o desvio do Xingu”, aponta Biviany Rojas, advogada do ISA.

No artigo, os pesquisadores fazem coro aos Juruna e deixam claro que o Hidrograma de Consenso do jeito que está precisa ser revisto. O estudo propõe que a quantidade de água liberada seja de acordo com as porcentagens da vazão natural do rio, e não com base em valores pré estabelecidos. Esse método, segundo eles, “ajudaria a manter a dinâmica de fluxos por toda a região abaixo de Volta Grande e no médio Xingu. Além disso, sugerem que a cada dois anos seja liberada uma quantidade de água de 20 mil m3/s, mimetizando a dinâmica sazonal do auge dos períodos de cheia.

O estudo conclui que a manutenção da diversidade de espécies vai depender do volume de água que será liberado e das alterações no pulso do rio: “Está claro que a conservação da diversidade de peixes e do endemismo existentes na extensão pesquisada vai depender grandemente da gestão do trecho cujo fluxo será reduzido em Volta Grande”.

Monitoramento independente
A Associação Yudjá Mïratu da Volta Grande do Xingu, a Aymix, realiza o monitoramento independente da pesca desde 2013, em parceria com a UFPA e apoio do ISA. O estudo vem sendo feito por meio da coleta de dados mensais sobre as dinâmicas da pesca e o consumo alimentar das famílias da aldeia Mïratu. Esses dados são importantes para desenhar a linha base que permite comparar a situação antes do barramento com as transformações que estão acontecendo.

O Projeto Básico Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI) iniciou suas atividades de monitoramento somente no segundo semestre de 2014, o que não permitiu o detalhamento necessário sobre o consumo de peixe e a comercialização das principais espécies que caracterizam a atividade pesqueira dos Juruna no período que antecedeu o barramento do rio. O monitoramento feito pelos indígenas, portanto, é o único que contém os dados mais completos que comprovam os impactos de Belo Monte na atividade pesqueira.
Isabel Harari
ISA
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