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Com a crise, indígenas das etnias warao e e’ñepá tem deixado seus territórios na Venezuela e migrado para o Brasil em busca de melhores condições de vida. O trajeto, de mais de 900 km, é arriscado, com ameaça de assaltos e furtos. Ao chegarem em Roraima, estado que faz divisa com a Venezuela, são discriminados e não conseguem acessar serviços públicos disponibilizados para os demais imigrantes.
Esses episódios foram relatados pelos próprios indígenas, segundo Érika Yamada, coordenadora de relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM) da ONU, lançado no último dia 8 de junho. Veja aqui.
O documento apresenta 35 recomendações para a proteção legal dos migrantes indígenas vindos da Venezuela, considerando três eixos principais: os direitos universais, os direitos dos migrantes, e os direitos específicos dos povos indígenas, garantidos constitucionalmente e em instrumentos internacionais.
Segundo dados da ONG Federação Fraternidade Humanitária Internacional, ao menos 957 indígenas dessas etnias estão em abrigos nas cidades de Pacaraima e Boa Vista, capital do estado.
O texto, também coordenado pelos pesquisador Marcelo Torelly, partiu das demandas apontadas pelos próprios indígenas. “Há vários relatos e várias reclamações de um tratamento inadequado, de não poder acessar alguns serviços públicos, de não poder estar nas ruas”, afirma Yamada em entrevista ao Instituto Socioambiental (ISA). “Isso decorre de uma falta de entendimento das instituições públicas, seja estadual ou municipal, de como tratar com respeito os indígenas”, explica.
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
ISA - Como é a situação a que esses indígenas são expostos na migração?
Érika Yamada - É uma migração, como a maior parte das migrações hoje, bastante sofrida. Em geral, em busca de alimento, vestimentas, remédios que eles não encontram mais na Venezuela. Esse é o relato que a gente ouviu de algumas famílias. Passam por longos trechos, são mais de 900 km nesse trajeto e há relatos de que caminham uma boa parte, alguns deles quase tudo e, no caminho, encontram várias dificuldades, inclusive de serem assaltados, de retirarem as coisas deles etc.
ISA - Nesse processo, há um padrão assimilacionista que contraria o direito dos índios de manter sua própria cultura?
Érika Yamada - É interessante notar esse aspecto. Porque quando a gente está falando de migração, a gente, em vários países do mundo, tem às vezes posições bastante xenofóbicas, de difícil aceitação de grupos estrangeiros chegando no país por diversos motivos. E, no Brasil, isso não é diferente. Porém, quando num país que está recebendo a população migrante há um entendimento de que, por exemplo, crianças e adolescentes têm direitos específicos, tem que ter um maior cuidado para não serem sujeitas à exploração etc, esse reconhecimento dos direitos específicos também se reflete na preocupação para os migrantes.
É mais fácil argumentar num país que respeita os direitos das crianças e dos adolescentes, que os migrantes tenham que ser respeitados e que tenham que ter cuidados especiais e específicos com relação a crianças e adolescentes migrantes. No caso dos indígenas no Brasil hoje, todo ataque que se tem hoje à legislação, aos direitos já reconhecidos dos povos indígenas também vai se refletir nessa situação da migração indígena. Ou seja: a resistência que os povos indígenas hoje têm no Brasil no reconhecimento dos seus direitos, ela se reflete na resistência que se coloca também aos direitos dos indígenas migrantes. Então questionamentos do tipo “ah, eles ainda assim são indígenas quando eles saíram da Venezuela e vieram para cá?, “eles vão ter direitos iguais a todos os indígenas?”, “por que eles têm direitos como indígenas?”, questionando o valor da identidade cultural enquanto povos indígenas para poder seguir falando sua língua, tomando decisões coletivas, tendo vivências coletivas, isso tudo fica em cheque e é influenciado por esse entendimento que tem prevalecido de ataque aos direitos dos povos indígenas.
ISA - E um padrão discriminatório nessa recepção?
Érika Yamada - Chegando por Roraima, como a gente pode imaginar, eles chegam por um dos estados que mais têm uma narrativa política bastante discriminatória contra a presença de grupos indígenas. Então, é claro, eles enfrentam uma série de outras dificuldades já aqui no Brasil relacionadas à discriminação racial. Acho que lá em Pacaraima (RR) isso é menos [acentuado], porque eles entram pela Terra Indígena (TI) São Marcos, inclusive o abrigo fica no território da TI São Marcos, encontram ali muitos indígenas brasileiros, então isso é menos sentido. Mas uma vez que eles chegam em Boa Vista, há vários relatos e várias reclamações de mau tratamento, de não poder acessar alguns serviços públicos, de não poder estar nas ruas, que a gente identificou nos relatos dos indígenas migrantes, e que decorre muito de uma falta de entendimento das instituições públicas, seja estadual ou municipal, de como tratar com respeito os indígenas. Isso evidencia uma questão que não só diz respeito aos indígenas da Venezuela, mas talvez até mais amplo, em todo o Brasil, [sobre] os indígenas que estão no contexto urbano, mesmo que temporariamente. Por terem optado estar no contexto urbano, sofrem diversos tipos de discriminação que, inclusive, os impede de acessar serviços públicos que eles teriam por direito.
Por outro lado, ali em Roraima, pelo fato de ser um estado bastante hostil aos povos indígenas e, ao mesmo tempo, pelo fato da presença dos venezuelanos ser tão marcante, de estarem nas ruas, vendendo artesanato, vestindo suas roupas coloridas que, num primeiro momento, [isso] gerou uma reação negativa, discriminatória por parte da sociedade local, por outro lado também permitiu ou fez com que alguns grupos da sociedade civil, junto com o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União agissem prontamente, de maneira bastante articulada entre sociedade civil e poder público para garantir, por exemplo, que eles não fossem sujeitos a uma deportação coletiva, que é ilegal. Isso em 2016 ainda. Então, a partir daí, a gente vê um esforço da sociedade civil junto ao MPF e a DPU, de garantir esses direitos dos indígenas migrantes ali no contexto de Roraima. E isso foi o que permitiu garantir uma adequação dos abrigos, garantir que eles pudessem ficar em locais separados dos não indígenas, de ter algum cuidado ainda com a identidade cultural dos indígenas migrantes.
ISA - Para onde vão esses indígenas quando migram?
Érika Yamada - O que a gente percebeu é que, dos indígenas que migram da Venezuela para o Brasil, a maior parte tem ficado em Roraima, ou no abrigo de Pacaraima ou no abrigo de Boa Vista. Não significa que eles só fiquem lá. Tem notícias de alguns grupos que já saíram, já chegaram em Manaus, em Belém… Mas eu acho que o mais importante destacar é que a maior parte dos indígenas migrantes tem ficado em Roraima, até porque eles fazem um movimento que os antropólogos estão chamando de movimento pendular, que é voltar com alguma frequência para a Venezuela. Então eles vêm, passam alguns meses, voltam para Venezuela, depois voltam de novo para o Brasil.
ISA - Como a pesquisa colabora para que haja um entendimento dos direitos específicos desses povos?
Érika Yamada - A pesquisa trata de um estudo de caso bastante específico, que é a migração indígena que entra por Roraima, sabendo que o tema das migrações para povos indígenas não é novo, ele só é muito invisibilizado, seja no Brasil, seja em outros países. A gente tem histórias de migrações indígenas nas quais o país de destino acaba inviabilizando a identidade indígena e tratando como se fossem nacionais de um país apenas. Isso faz com que as políticas acabem não sendo adequadas para garantir os direitos específicos que essas populações têm, como por exemplo, de poderem viver próximos uns dos outros, de manter relações com povos indígenas dentro do país em que elas estão migrando, mas também do país de onde elas vieram, de poderem falar suas línguas etc.
A gente espera que a pesquisa possa contribuir para um cenário que, em Roraima, inicialmente, foi bastante desfavorável. A mobilização da sociedade civil, das próprias organizações indígenas ali de Roraima apontam para possibilidades, junto com a Nova Lei de Migração, de um atendimento dessas populações enquanto migrantes, mas sobretudo também enquanto indígenas. A gente constrói argumentação dos aspectos jurídicos em torno da defesa de que essas pessoas devem ser protegidas pela égide dos direitos humanos, e do direito da migração nacional ou internacional. Então há respaldo suficiente para a atuação com especificidade, com a participação do órgão indigenista [Funai] nesse acolhimento e nas políticas subsequentes ao acolhimento, no caso, dos fluxos migratórios.