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“Foi por um sopro”. O sopro do demiurgo Senã’ã criou a Volta Grande do Xingu, as cachoeiras do Jericoá e os Juruna (ou Yudjá), indígenas que povoam até hoje essa região no oeste do Pará. É dessa forma, também, que se inicia a publicação “Xingu, o rio que pulsa em nós”, resultado de um trabalho de quatro anos dos Juruna da Terra Indígena Paquiçamba.
No livro, lançado nesta quarta-feira (8) no XVI Congresso da Sociedade Internacional de Etnobiologia, os indígenas denunciam os impactos da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte sobre seu modo de vida e sobre a Volta Grande, uma região de aproximadamente 100 quilômetros de rio que banha duas TIs e é a morada de centenas de famílias ribeirinhas. Acesse aqui a publicação.
Com base em um minucioso monitoramento, os Juruna alertam para o risco de desaparecimento de espécies de plantas e animais, algumas delas endêmicas da região, e as consequências para a sobrevivência de seu povo. “Nós somos daqui, estamos falando da Volta Grande do Xingu. Nosso povo é da Volta Grande do Xingu. Daqui surgimos e aqui estamos. Nosso povo e a Volta Grande do Xingu merecemos mais respeito”, exige Gilliarde Juruna, cacique da aldeia Mïratu.
Os indígenas apontam para uma nova ameaça: a disputa pela água. Com o barramento definitivo do rio em 2015, a quantidade, velocidade e nível da água na região não derivam mais do fluxo natural do Xingu, mas dependem da Norte Energia - concessionária da usina. Por meio do chamado "Hidrograma de Consenso", a empresa vai controlar o volume de água que passará pelas comportas da usina, descendo pela Volta Grande do Xingu.
O chamado “Hidrograma de Consenso” é a principal medida de mitigação proposta pela empresa para os efeitos provocados pela redução de vazão da água na Volta Grande. Seu objetivo é reproduzir artificialmente o pulso sazonal de cheias e secas que caracteriza as vazões naturais do Rio Xingu. O hidrograma, portanto, deveria ser capaz de garantir a sustentabilidade socioambiental na região.
A medida deve começar a ser implementada em 2019, ano em está prevista a finalização da instalação das turbinas da hidrelétrica. O Ibama estabeleceu um rigoroso plano de monitoramento dos impactos derivados da vazão residual prevista no Hidrograma, monitorando o que acontece com a fauna, flora, água e os impactos no modo de vida das populações durante seis anos, entre 2019 e 2025. A proposta é determinar qual é o mínimo de água necessário para manter a vida na Volta Grande, e, ao mesmo tempo, qual é a quantidade máxima de água que a empresa pode usar para a geração de energia.
Em 2016, um ano após o barramento definitivo do rio, os Juruna registraram de perto as mudanças e comprovaram que os peixes e a navegabilidade do Xingu foram impactados com volume de água superior ao proposto pelo Hidrograma de Consenso. Naquele ano a vazão foi de aproximadamente 10 mil m3/s. Já os índices propostos pelo hidrograma preveem vazões de 4 mil m3/s e 8 mil m3/s, alternadas ano a ano.
Em suma, a vazão média que será liberada pelos hidrogramas é menor do que a vazão média liberada em 2016. Mesmo nesse cenário, os peixes não conseguiram desovar, nem tampouco entrar, juntamente com os quelônios, na floresta aluvial para se alimentar.
“O peixe sabe que, quando o rio começa a encher, ele poderá comer o sarão. Entre dezembro de 2015 e janeiro de 2016, os pacus que pescamos estavam magros e doentes, lisos por fora, ninguém comeu esses peixes com medo de ficarmos doentes também”, conta seu Agostinho Juruna, da aldeia Mïratu. 2016 foi chamado pelos Juruna de “ano do fim do mundo”.
Em estudo publicado na revista Biological Conservation, cientistas também alertam que a hidrelétrica pode ser responsável pelo desaparecimento de espécies endêmicas da região, e recomendam que o Hidrograma de Consenso seja revisto. Segundo os pesquisadores, a diminuição do volume de água e a mudança na dinâmica da vazão vai remover um componente chave que mantém a heterogeneidade do sistema.
“Evidentemente, não é simples chegar a uma fórmula que garanta a sustentabilidade
socioambiental da Volta Grande do Xingu. Contudo, as incertezas e os riscos envolvidos na aplicação do hidrograma “de consenso” demandam sua imediata substituição”, alerta a publicação lançada hoje. O reconhecimento de estudos como os que foram feitos pelos Juruna são de extrema importância para a construção de medidas efetivas de mitigação dos impactos da UHE Belo Monte.
O monitoramento dos recursos pesqueiros e da segurança alimentar na Terra Indígena (TI) Paquiçamba é fruto de uma pesquisa colaborativa iniciada em 2013, envolvendo o ISA, pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e famílias juruna da aldeia Mïratu. O objetivo foi construir uma base de dados confiável que possibilite o mapeamento das alterações na vida dos indígenas após a construção de Belo Monte a partir das dinâmicas da atividade pesqueira.
Em 2016, houve grande mortandade de peixes no período reprodutivo, devido à interrupção do fluxo migratório, à indisponibilidade de áreas de alimentação e desova. Os quelônios não conseguiram desenvolver seus ovos para a temporada reprodutiva, emagreceram e morreram.
O exemplo do pacu, espécie de peixe mais consumida pelos Juruna, ilustra um dos muitos processos ecológicos que estão em risco e que podem impactar a manutenção da biodiversidade aquática. Ele se alimenta de frutos de caem na água durante o inverno, época de cheia do rio. Com a diminuição do volume de água e a mudança na dinâmica das vazantes, os frutos caem no seco, o que impossibilita a alimentação e a consequente reprodução da espécie.
A falta de sincronismo entre a vazão necessária mínima para alagar os locais de reprodução no momento certo e alimentação de espécies importantes para consumo humano das populações da Volta Grande pode impactar a segurança alimentar de indígenas e ribeirinhos. “Esses peixes que não comemos mais estão sendo substituídos por produtos da cidade, como mortadela e frango congelado. Sabemos muito bem que esses produtos não fazem bem à nossa saúde, principalmente à saúde das crianças”, alerta Bel Juruna, agente de saúde indígena da aldeia Mïratu.
Com a publicação dos resultados desse monitoramento, os indígenas e seus parceiros esperam qualificar e ampliar os espaços de decisão sobre o futuro de tudo e todos que estão envolvidos na região. “O Rio Xingu e a Volta Grande do Xingu são condições fundamentais do modo de existência do povo Juruna (Yudjá) e este monitoramento consiste em uma arma de defesa desse povo e de seu território tradicional”, diz um trecho da publicação.
Não é por acaso que o sopro de Senã’ã originou, de uma só vez, a Volta Grande, as cachoeiras e os Juruna. Criados juntamente com o rio, os indígenas têm uma relação profunda com o Xingu e suas dinâmicas.
Canoeiro, o povo Juruna (Yudjá) estabeleceu-se na região deslocando-se pelas ilhas, onde fixaram suas aldeias. Com a chegada dos não indígenas à região de Altamira, passaram por severos ataques, provocando o deslocamento compulsório de parte de seu povo, que hoje vivem no Território Indígena do Xingu (MT). “O fio dessa luta envolve desde os massacres ocorridos em conflitos fundiários e pressões territoriais de fazendeiros até, mais recentemente, a batalha contra os graves efeitos da Usina Hidrelétrica Belo Monte”, diz o texto da publicação.
“Resistência é, portanto, o conceito mais adequado para definir o modo de permanência do povo Juruna (Yudjá) na região da Volta Grande do Xingu. Frente às ameaças mais diversas, para poder seguir em seu território tradicional, essas pessoas desenvolveram poderosas estratégias de sobrevivência, tanto do ponto de vista mítico quanto do ponto de vista histórico”, continua o texto.
Os Juruna já comprovam os impactos da UHE Belo Monte e, com a publicação do livro, apontam os riscos iminentes da eventual implementação do Hidrograma de Consenso. Em um momento em que a mineradora canadense Belo Sun Mining pressiona para se instalar na região, a discussão sobre as condições da manutenção da vida na Volta Grande é necessária e urgente. (Saiba mais sobre Belo Sun aqui).
Os impactos da UHE Belo Monte vão além das mudanças no fluxo da água, no ciclo de peixes e plantas. Ao alterar o pulso do rio, a usina altera também o modo de vida dos Juruna. Bel Juruna, da aldeia Mïratu, aponta que agora seu povo terá que se adaptar a “viver no seco”. Ainda segundo o texto: “obrigar um povo canoeiro a ter de viver no seco é uma situação de extrema mudança nas práticas cotidianas, cosmológicas, culturais e sociais.” Dona Jandira, que vive na aldeia Miratu, complementa: "nós, Juruna, não temos pés, temos canoa para navegar no rio, assim nós somos".
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xingu_o_rio_que_pulsa_em_nos.pdf | 9.19 MB |