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No quarto e último relato enviado do 16º Congresso da Sociedade Internacional de Etnobiologia, a coordenadora adjunta do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, Nurit Bensusan, alerta que em tempos de fluidez de gênero, de múltiplos casamentos e de relações poliamorosas é fundamental entender que os núcleos familiares clássicos estão em xeque e existem várias outras possibilidades de viver
10/8 - sexta-feira
“Quando me perguntam quantas famílias tem na minha comunidade, eu respondo: uma... dividida em 137 casas!” Assim nos descreve sua comunidade um pesquisador de uma comunidade quilombola. E isso, mais uma vez, mostra que aquela ideia, uma casa para cada família, núcleos familiares com pai, mãe e filhos, não faz sentido, nem é o mais comum em diversos contextos. Aqui, no Congresso da ISE Belém +30, se escuta constantemente que temos muito que aprender com povos indígenas e comunidades tradicionais.
Certamente temos, afinal eles são especialistas em fim do mundo, mas é com a diversidade de formas de viver é que temos mais a aprender. Por exemplo, em tempos de fluidez de gênero, de múltiplos casamentos e de relações poliamorosas é fundamental entender que os núcleos familiares clássicos estão em xeque e existem várias outras possibilidades de viver.
Parece, porém, que escutar, de fato, os especialistas em fim do mundo é mais difícil do que pensamos. Exige um desapego de nossas mais profundas certezas, de uma cultura que é como a nossa pele, como a língua materna que nos conduz a associações automaticamente. Pensa bem, quem vislumbraria uma conexão entre a manga, fruta, e a manga, da camisa, além daqueles que falam português?
Um bom exemplo disso, aqui no Congresso, é a discussão sobre domesticação. Existe um longo e robusto trabalho, de diversos pesquisadores, sobre a domesticação de plantas e paisagens na Amazônia que contribuem para mostrar que a floresta é uma paisagem cultural, ou como gostam de dizer os pesquisadores uma floresta antropogênica. Essa visão honra o papel dos povos indígenas no que é hoje a floresta amazônica, como manejadores e mesmo criadores das paisagens. É um reconhecimento importante, como contei no segundo relato desse diário, que abre portas para mudanças nas políticas públicas e no entendimento da nossa sociedade da vastidão e da sofisticação do conhecimento indígena.
Mas como fica esse conceito de floresta antropogênica, ou seja com o ser humano no centro de tudo, quando se pensa que para vários povos indígenas da América do Sul não existe distinção entre natureza e cultura? Ou que a explicação para a distribuição das espécies passa por entender que as cotias tem “roças” de castanhas, plantando da mesma forma que os humanos? Que os açaizeiros são os plantios dos tucanos? E que todos estão nessas formas, humanos, cotias e tucanos, apenas momentaneamente? E como fica a ideia de domesticação quando entendemos que há uma interação de duas mãos entre plantas e humanos, entre animais e plantas, entre plantas e plantas?
Só levando todas essas questões a sério, e não como uma mitologia ou uma metáfora, é possível aprender algo com os especialistas em fim de mundo. Mas quem vive depois do fim do mundo, sabe que “há um mundo por vir”. Não sei se é daqui, do ISE Belém + 30, que virão as notícias do começo desse mundo, mas já temos, certamente, um jargão para esse novo mundo (ver glossário abaixo).
Leia abaixo as outras edições do Diário:
Diário de Belém I
Diário de Belém II
Diário de Belém III
Hopespots: uma relação direta com os hotspots, um dos termos quentes da conservação clássica da biodiversidade. Os hotspots são lugares no planeta com grande biodiversidade e que simultaneamente estão altamente ameaçados. O hopespots seriam locais com grande sociobiodiversidade, no passado e no presente e que irradiariam possibilidades de futuro. Um exemplo seria a Terra do Meio, no Pará.
Arqueologia do futuro: a arqueologia se dedica, em geral, ao passado. Não tenho bem mas acho que a arqueologia do futuro vai descobrir o que fizemos com o presente ou vai nos ajudar a descobrir melhores possibilidades do que fazer no futuro...
Refúgios do Antropoceno: existe uma teoria clássica que diz que na Amazônia do Pleistoceno, a vegetação era mais parecida com uma savana e a floresta teria se encolhido em pequenos (na verdade não tão pequenos) refúgios, conhecidos então como refúgios do Pleistoceno. Isso teria acontecido por conta das diferenças do clima nesse tempo. Depois, a floresta se espalhou novamente. Agora, no Antropoceno (como está sendo conhecida a era que vivemos, uma era onde os humanos funcionam como força geológica, alterando o planeta), a ideia é que os fragmentos de floresta que se multiplicam com o desmatamento são refúgios do Antropoceno. O único problema é que precisaremos de um longo período geológico, com otimismo alguns milhares de anos, para que a floresta volte a se expandir por cima da soja e das pastagens. Isso se esses refúgios durarem. Enquanto isso, podemos apelidar as Unidades de Conservação e Terras Indígenas de refúgios do Antropoceno...
Ecologia histórica implicada: não há ciência sem viés ideológico e político. A ciência nunca se faz apenas da coleta de dados, há aqueles dados que se privilegia, há os que se explicita e há aqueles para os quais não se dá muita atenção. A ecologia histórica não é diferente e sua versão contemporânea dialoga com escolhas políticas também. A ecologia histórica implicada, por sua vez, assumiria ainda mais esse envolvimento e traria opções e alternativas para as questões que se colocam aos povos indígenas e comunidades tradicionais.
Florestas antropozooespiritogênicas: essa é uma forma de denominar o processo de gênese da floresta com colaboração igualitária de pessoas, animais e espíritos. Senti falta das plantas, mas simpatizo com a ideia... talvez pudéssemos optar por florestas fitoantropozoospiritogênicas (e convidar a Mary Poppins para uma dança).
Simbiopolítica: uma política feita por todas as espécies do planeta, participando igualmente. Não apenas humanos, mas plantas, microorganismos e animais interagindo entre si e transformando o planeta e as formas de viver.