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O Parque Nacional Pico da Neblina, na Amazônia, terá governança inovadora e pioneira com os povos indígenas protagonizando sua preservação e recebendo visitantes de todo o mundo
O Parque Nacional Pico da Neblina, que abriga o ponto mais alto do Brasil, com 2.994 metros de altitude, está prestes a concluir o seu plano de manejo, um importante instrumento de governança para a unidade de conservação elaborado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A concepção desse plano é vista como inovadora e pioneira por incluir a participação dos povos indígenas e integrá-los ao sistema de gestão do Parque junto com instituições públicas e organizações da sociedade civil.
Cinco mil índios de 14 etnias moram na área do Parque Pico da Neblina, que faz sobreposição com 4 terras indígenas (TI) demarcadas: Balaio, Cué-Cué Marabitanas, Médio Rio Negro II e Yanomami, localizadas nos municípios de Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira (AM), no Noroeste Amazônico. Cerca de 70% do Parque, que tem 2,3 milhões de hectares (equivalente ao estado de Sergipe), faz sobreposição com territórios indígenas.
“Temos o entendimento de que toda a Bacia do Rio Negro é habitada pelos povos indígenas. Na verdade, foi o Parque Nacional que foi implantado em território indígena em 1979 e traz uma série de peculiaridades, como o fato de ser área de fronteira (com a Venezuela)”, enfatiza a socióloga Iara Vasco, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade, do ICMBio. Vasco participou da oficina de elaboração do plano de manejo do Parque Pico da Neblina, em São Gabriel da Cachoeira, na sede da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), entre os dias 17 e 21 de setembro.
Acumulando longa trajetória na área socioambiental, Vasco liderou o processo de construção do plano estratégico nacional de áreas protegidas no Ministério do Meio Ambiente (MMA) e de 2007 a 2009 também coordenou o setor de meio ambiente da Fundação Nacional do Índio (Funai), alavancando o início da agenda de consultas aos povos indígenas para a criação da Política Nacional de Gestão Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI ). “Temos mais de 60 unidades de conservação no Brasil que fazem sobreposição com terra indígena em diferentes estágios de regularização fundiária. A maioria dessas áreas se encontram na Amazônia e a maior parte é parque nacional. Sabemos que é o modo de vida dos povos indígenas que garante a floresta em pé”, ressalta.
Luciana Uehara, gestora do Parque que mora na sede do ICMBio em São Gabriel da Cachoeira (AM), diz que esse plano de manejo será referência para outras unidades de conservação que fazem sobreposição com terras indígenas. “É a primeira vez que o ICMBio constroi um plano de manejo com essa característica e o Parque Nacional do Pico da Neblina é emblemático porque ele representa 25% das áreas de conservação sobrepostas a terras indígenas”, afirmou. Ela lembra que a presença dos índios na região não foi considerada no ato de criação do parque há 40 anos pelo regime militar. “Na época que o parque foi criado não tiveram estudos que considerassem a presença dos povos indígenas e sua ancestralidade. A gente está agora reescrevendo essa história, dando um outro propósito para o Parque. A ideia é conciliar a proposta da criação da unidade de conservação, com o reconhecimento das terras indígenas, já que os índios do Rio Negro tem uma tradição milenar de ocupação do território”.
Para Marcos Wesley, coordenador adjunto do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), a construção desse plano de manejo é também uma ação política em prol do socioambientalismo. “Existem muitas tentativas de promover o retrocesso da agenda socioambiental. A opinião pública precisa defender os povos indígenas, defender os seus parques nacionais e unidades de conservação do Brasil”, frisou. Na sua visão, a sobreposição deve significar uma dupla proteção dessa região, assim como um duplo apoio, vindo da Funai e do ICMBio. “Esse plano de manejo é muito inovador e pioneiro porque fortalece os direitos indígenas sobre seus territórios e reflete uma gestão compartilhada entre os entes públicos, a sociedade civil organizada e as comunidades que moram no Parque. Isso anima a todos nós”.
Lideranças indígenas presentes na oficina disseram ter boas expectativas que o plano de manejo colabore para o bem viver indígena e ajude no desenvolvimento sustentável da região. “Esperamos que o plano de manejo seja bom para o nosso ecoturismo Yanomami, que foi uma escolha nossa. Queremos que dê resultados para nossa comunidade e que seja um exemplo para todo o Brasil”, destacou a liderança Floriza Yanomami, da comunidade de Maturacá, que integra o projeto de turismo indígena em fase de implantação para levar visitantes ao ponto mais alto do Brasil.
Jacinta Sampaio, do povo Tukano e moradora da TI Balaio, considerou que a construção do plano junto com os povos indígenas é um reconhecimento importante. “As lideranças indígenas e as instituições devem seguir unidas protegendo o território. Principalmente dando proteção para a floresta e para nós moradores de lá”. Jacinta queixou-se da situação da BR 307 que liga a sede de São Gabriel da Cachoeira ao Balaio, que está em péssimas condições e prejudica o escoamento dos produtos da comunidade, como banana, farinha, bancos tukano e cestaria. Com a estrada ruim, os moradores pagam fretes cada vez mais caros, deixando os preços dos produtos inviáveis ao mercado local.
Vendo o plano de manejo do Parque como uma possibilidade a mais de garantir o futuro das próximas gerações, Ronaldo Melgueiro, do povo Baré, morador da TI Cué Cué Marabitanas, destacou que esse plano precisa somar com o que os povos indígenas já fazem para gerir o território. “Penso que é um instrumento a mais para nos ajudar a fazer o manejo dos recursos da floresta para que nunca acabe para os nossos filhos e nossos netos que vão precisar da área do parque para viver”.
Garantir que os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) das quatro terras indígenas sejam absorvidos pelo plano de manejo do Parque era o intuito da Funai, também participante da oficina. “Nesse processo de zoneamento feito para o plano de manejo, nosso cuidado é garantir que ele obedeça o que os PGTAs estão elaborando. O ICMBio não precisa trabalhar em um novo zoneamento para essas áreas e, sim, seguir o que já está sendo proposto nos PGTAs das terras indígenas”, comentou Marcos Mesquita Damasceno, indigenista da Funai. “Vim para a oficina com o olhar voltado para os direitos indígenas, principalmente, para os direitos coletivos e territoriais, para que eles sejam resguardados. O que me alegrou foi que esse cuidado já vinha da equipe do ICMBio, que é uma equipe com essa sensibilidade e comprometida com uma visão inclusiva e participativa”, elogiou.
Recentemente o ICMBio aprovou o plano de visitação ao Pico da Neblina construído pelos associações Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca) e Associação de Mulheres Kumirayoma (Amyk) com apoio de parceiros como a Funai, ISA e o próprio ICMBio. Luciana, gestora do Parque, afirmou que um dos pontos fortes e diferenciais desse plano de manejo é o fato dele incorporar o plano de visitação dos Yanomami e ser um incentivador dessa atividade, que possibilitará a visitação de turistas do mundo todo ao ponto mais alto do Brasil.
O Pico da Neblina é a montanha sagrada dos Yanomami, chamada por eles de Yaripo, que significa “montanha do vento”. E serão eles a levar os turistas até o topo numa caminhada de 36 Km que dura 8 dias, contando ida e volta. O grande desafio do percurso é a variação de altitude do terreno, de mais de 2,9 mil metros em cinco dias. “Inicialmente, as pessoas dizem que vem conhecer o Pico da Neblina, mas a grande surpresa e o que mais emociona é conhecer os Yanomami e como eles cuidam da floresta. Conhecer a medicina tradicional, a culinária, enfim, fazer uma imersão na cultura desse povo. Um jovem de 18 anos que participou de uma das expedições experimentais disse que mais importante do que chegar no topo do Pico é caminhar até lá ao lado dos Yanomami”, contou Marcos, do ISA, que integra o projeto Yaripo Ecoturismo Yanomami.