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Beiradeiros lutam pelo direito ao seu território tradicional

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Isabel Harari

Filme conta a história do retorno de seu Edmilson, seringueiro da Terra do Meio (Pará), ao local onde trabalhou com produção de borracha na década de 1980, hoje situado no interior de Unidades de Conservação de acesso restrito

“Castanhal, Nova Olinda, Sítios Novos, Montanha, Barracãozinho, Espera aí I, Espera aí II, Trincheira, São Francisco, Castanheira, Carro Dourado, Bambu, Tracoá, Tracoá Matriz, Laranja Mangueira, Pau D'Arco, Ponto Novo, Canindé, Cachoeira, 64, Marco, Birica, que era do meu filho e a última que era a minha, Gameleira”. Da varanda de sua casa na localidade Morro do Félix, na Reserva Extrativista (Resex) Rio Xingu (PA), seu Edmilson Viana cita uma a uma, como se estivesse passando por elas ao longo do Rio Pardo, as antigas colocações.

Colocação é termo que designava os locais em que o patrão seringalista alocava os seringueiros, e de onde acessavam os percursos onde se distribuíam as seringueiras, as chamadas estradas de seringa.

Beiradeiro, seu Edmilson aprendeu a viver da floresta extraindo o látex da seringueira com seu pai, que por sua vez aprendeu com seu avô, que saiu do Ceará em 1912 para viver como seringueiro na floresta amazônica. Nos anos 1980, ele passava até seis meses por ano longe de sua casa na beira do Rio Xingu para viver em sua colocação, trabalhando com dois de seus 11 filhos no extrativismo de borracha, castanha e outros produtos da floresta.

Mais de duas décadas depois, seu Edmilson realizou seu sonho de voltar a sua antiga colocação com sua esposa, dona Elisa, para mostrar os locais onde ele e outros seringueiros costumavam cortar seringa. Da experiência, nasceu o documentário "Rio Pardo: O retorno dos beiradeiros ao seu território". O filme é uma realização do Instituto Socioambiental (ISA com a Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Médio Xingu (Amomex), com apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio).

São mais de vinte colocações ao longo do Rio Pardo e igarapé do Garrancho. Na época, cerca de 100 famílias produziam em média 400 quilos de borracha.

Na colocação Barracãozinho, já nas águas do Rio Pardo, seu Edmilson conta de que forma ele abria as estradas de seringa, como construía o defumador para fazer a borracha e o melhor jeito de limpar a área e construir a casa para se proteger da chuva. Há mais de um século na região, os seringueiros desenvolveram um modo de vida próprio, baseado em um uso sábio e variado da floresta e transformaram as colocações em seu jeito de viver.

Seu Edmilson era conhecido como “coração de jabuti”, por ficar tanto tempo longe de casa apenas na companhia dos filhos. A sua colocação, Gameleira, ficava cerca de três dias de canoa subindo o igarapé. “É aqui que os filhos choram e a mãe não vê”, conta com um sorriso no rosto.

“Vocês aqui não têm nada”

Seu Edmilson lembra vividamente quando ele e seus companheiros encontraram madeireiros em seu território. “Aportamos o barquinho e vi aquele pessoal, tudo escondido”, conta. Subiram na ribanceira e se fizeram vistos, avisando que ali era uma colocação. Os invasores responderam: “Vocês aqui não têm nada. E se tivessem chegado de noite, tinha morrido todo mundo”.



Entre os anos 1990 e 2000, a Terra do Meio foi uma das regiões com maior incidência de grilagem no Brasil. Madeireiros começaram a invadir a região em busca de mogno e cedro, atraindo grileiros que tomavam ilegalmente grandes porções de terra.

O recrudescimento da violência acompanhou o processo da disputa pela terra. Sob pressão, muitos beiradeiros foram expulsos de suas casas e impedidos de continuar vivendo em seu território. “A minha casinha foi derrubada, queimada, e eles ficaram de donos aqui”, lembra seu Edmilson. “Os seringueiros foram se afastando, se afastando, e aí pronto, desativou o seringal todo”, conta.

Estima-se que 15 mil hectares foram desmatados no período entre 1997 e 2005 na região em que hoje incide o Parque Nacional (Parna) da Serra do Pardo. “Nós desmatamos a mata, mas você vê como é, um pedacinho de nada para fazer uma rocinha. O fazendeiro não, quando ele chega a tendência é derrubar. Quanto mais ele derruba, mais ele quer desmatar”, comenta o filho de seu Edmilson, Rubenildo Viana, mais conhecido como Miudinho.

Assista ao teaser:

Fora do mapa

A partir de 2004, após intensa pressão para coibir as atividades ilegais e a crescente violência, o governo brasileiro executou uma série de medidas para estabelecer o mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio.


Dentre elas, foi criado um conjunto de Unidades de Conservação (UC) de uso sustentável ou proteção integral. A primeira categoria engloba as Reservas Extrativistas, que reconhecem e compatibilizam a conservação da floresta com a presença humana por meio do manejo de seu território tradicional, e se voltava ao reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades ribeirinhas.

No entanto, uma parte importante desse território tradicional não foi abarcada pelas Resex, tornando-se sobreposta, em 2005, pela Estação Ecológica (Esec) da Terra do Meio e o Parna da Serra do Pardo. Essas áreas são de proteção integral, ou seja, pertencem a uma categoria restritiva, que proíbe ocupação humana em seu interior. Há, porém, outras leis brasileiras ou ratificadas pelo Brasil que respaldam o direito de comunidades tradicionais que vivenciam esse tipo de conflito de sobreposição.

A maior parte das colocações que seu Edmilson reconheceu durante a viagem ao no igarapé do Rio Pardo encontra-se em áreas que, segundo o projeto original do mosaico, deveriam ter ficado dentro dos limites da Resex Rio Xingu, mas acabaram inseridas na Esec ou no Parna. Dezenas de famílias ribeirinhas e de colonos da Terra do Meio foram afetadas por esse redesenho de limites - no Xingu, toda uma vila viu-se inserida no Parque Nacional. Ao longo de mais de uma década, essas famílias enfrentaram diversas dificuldades, seja por restrições do órgão ambiental a atividades tradicionalmente realizadas, seja pela dificuldade em acessar serviços públicos básicos, como educação e saúde.

Nos últimos anos, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão de UCs, deu início à negociação de termos de compromisso, instrumentos previstos na legislação ambiental para compatibilizar a ocupação humana em áreas como essas. Tais negociações, porém, têm tramitado de forma bastante morosa. Enquanto isso, as famílias beiradeiras lutam para que seus direitos sejam reconhecidos e para que possam acessar e utilizar seu território de acordo com seu modo de vida.


“Habitado na borracha e na copaíba”

Nos últimos anos, os beiradeiros da Terra do Meio têm se organizado para fortalecer as cadeias da castanha, babaçu, copaíba, borracha e outros produtos, por meio da Rede de Cantinas da Terra do Meio [Saiba mais]. Além de gerar renda, essas atividades contribuem para a valorização do conhecimento dos beiradeiros sobre a floresta, segundo o entendimento de que sua ocupação e manejo são essenciais para mantê-la em pé.

A trajetória de seu Edmilson representa a história do modo de vida beiradeiro originário da ocupação seringueira na região. Aos 81 anos, ele luta para retomar o uso de recursos de seu território, incluindo a região do igarapé rio Pardo. “Eu acredito que isso aqui ainda vai ser habitado, tanto na borracha como na copaíba. Ainda tenho fé, na idade que eu estou, de passar aqui, rapaz, pela minha colocação”.

Assista ao vídeo completo:

No final do século 19, o governo brasileiro começou a incentivar a população brasileira, especialmente da região Nordeste, a ocupar as áreas amazônicas para a produção de borracha. Os seringueiros chegavam geralmente sozinhos e tinham que se adaptar à dinâmica da floresta, ao trabalho extrativista, aos confrontos com grupos indígenas em cujo território avançavam, ao calor e à umidade.

Ao longo dos anos, famílias formaram-se - seja por aqueles que conseguiram reunir recursos para buscar a família em seu lugar de origem, como o avô de seu Edmilson, seja com a incorporação, frequentemente violenta, de mulheres indígenas aos seringais, ou mesmo por casamentos locais, como o de seu Edmilson e Elisa. Assim tem origem a população ribeirinha que se instalou nas margens dos rios para viver da floresta.

Em 1912, a produção de borracha na Amazônia tem uma grande queda em virtude da entrada no mercado internacional da borracha cultivada na Ásia. Muitos seringais declaram falência e as famílias ribeirinhas dedicam-se cada vez mais à diversificação de suas atividades na floresta.


Na década de 1940, por conta da II Guerra Mundial, interrompem-se os fluxos da produção de borracha asiática ao mercado mundial. Por essa razão em 1943, o Brasil se comprometeu com os Estados Unidos em garantir suprimentos de látex como parte dos esforços de guerra. Nesses marcos, milhares de pessoas, majoritariamente do nordeste, foram alistadas pelo governo brasileiro e transportadas para a Amazônia, os chamados Soldados da Borracha. O fluxo migratório para retomada da atividade, porém, foi além dos soldados e mobilizou muitos trabalhadores e suas famílias.

Por isso, os seringueiros começaram a subir os igarapés em busca de melhorar a rentabilidade de produção de látex. As estradas de seringa no interior dos igarapés afluentes do Xingu eram mais produtivas e as colocações já abertas e antigas, assim seu Edmilson, em meados dos anos 1980, passava cerca de seis meses em sua colocação no alto igarapé rio Pardo. Ele e os filhos aventuravam-se subindo o igarapé por no mínimo três dias de remo com sua canoa, levando ferramentas e suprimentos para garantir o sustento de toda família.

Imagens: