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O desmatamento nas Terras Indígenas (TIs) da Amazônia continua concentrado em poucos territórios, mas acelerou no último ano.
Apenas dez TIs responderam por mais de 80% da devastação registrada nesse tipo de área protegida, entre agosto de 2017 e julho de 2018. Por outro lado, na comparação com o período anterior, o desmatamento total no conjunto dessas terras saltou assustadores 124%, de 11,9 mil hectares para 26,7 mil hectares, uma extensão maior do que a da cidade de Recife.
Em geral, as TIs continuam sendo a principal barreira contra a destruição da floresta. O desmatamento observado nessas áreas como um todo representa pouco mais de 3% do total da Amazônia Legal. Cerca de 23% da região está em TIs.
O aumento brusco das derrubadas no conjunto desses territórios sugere, no entanto, que há um ataque maciço a áreas e regiões críticas, onde o desmatamento está fora de controle. Destaque para as TIs Cachoeira Seca (PA), Marãiwatsédé e Zoró (MT), onde as taxas cresceram, respectivamente, 333%, 2.851% e 43.903% (veja tabela).
Além disso, o índice de 124% equivale a quase dez vezes o aumento no ritmo do desflorestamento de toda a Amazônia, de 13,7%, na comparação entre 2016-2017 e 2017-2018. Em toda a região, foram destruídos 790 mil hectares de mata, o equivalente a mais de cinco vezes o município de São Paulo.
Os números foram produzidos pelo Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA com base na estimativa preliminar divulgada, em novembro, pelo Projeto de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O Prodes calcula a taxa oficial do desflorestamento da Amazônia. O índice definitivo será anunciado em 2019.Em toda a Amazônia, há 422 TIs demarcadas, mas a estimativa preliminar do Prodes abrange 401 áreas.
Na nota divulgada com a estimativa do Inpe, o Ministério de Meio Ambiente (MMA) afirmou que o orçamento e as ações de fiscalização teriam sido reforçados no último ano, com aumento no número de multas, áreas embargadas, madeira e equipamentos apreendidos (leia aqui).
Cientistas, indigenistas e organizações locais ouvidos pelo ISA ressalvam, porém, que a repressão aos crimes ambientais continua insuficiente em algumas regiões e inexiste em outras.
Procurados pela reportagem do ISA, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), responsáveis por proteger as TIs, não deram entrevistas.
Os especialistas apontam outros fatores conhecidos que podem estar pressionando a floresta: o aumento dos preços internacionais da soja e da carne, melhoria de estradas e uma seca maior no período, que favorece o corte e queima das árvores. Um consenso é que o enfraquecimento de leis e políticas ambientais e o recrudescimento do discurso contra elas estão consolidando um clima geral favorável aos crimes ambientais. E que já parece ter efeito cumulativo.
O pesquisador associado do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Paulo Barreto, lista como marcos desse processo a aprovação do novo Código Florestal, que anistiou massivamente desmatamentos ilegais, em 2012; propostas de redução de Unidades de Conservação (UCs); e a aprovação, em 2017, da chamada “Medida Provisória da grilagem”, que ampliou prazos e áreas para a legalização de terras públicas.
“Essa tendência de perdoar crime ambiental e ocupações ilegais acaba aumentando a sensação de impunidade. Cria-se a expectativa de algum tipo de perdão. Passa a ser vantajoso deixar de pagar. Há um clima de degradação do cumprimento de regras em geral”, alerta Barreto.
O esgotamento de terras e recursos naturais fora das áreas protegidas, combinado com continuidade dos efeitos de grandes obras de infraestrutura, também ajuda a explicar o salto no ritmo do desmatamento dentro das TIs.
Pesquisadores e indigenistas temem que a situação piore. A taxa de desmatamento calculada pelo programa Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter B) cresceu 48%, entre agosto e outubro, período que só será incluído na próxima taxa oficial de desmatamento. Também operado pelo Inpe, o Deter é menos preciso que o Prodes e, por isso, é usado para subsidiar operações de fiscalização, mas não para produzir índices oficiais.
Historicamente, os desmates tendem a aumentar durante campanhas eleitorais. Neste ano, o problema teria se agravado em função da radicalização do discurso contra as TIs e as políticas ambientais em meio à disputa.
“Dentro de um contexto político de ataque aos direitos indígenas e aos órgãos de Meio Ambiente, são emitidos sinais que são interpretados em campo de forma muito rápida”, analisa Juan Doblas, assessor do ISA.
Outro fator que deve ser considerado na alta dos desmates nas TIs é a cooptação de lideranças indígenas pelos invasores ou o conluio entre ambos. A TI Zoró (MT), por exemplo, sofre com o roubo de madeira, parcialmente autorizado. O mesmo acontece nas TIs Kayapó e Munducuru (PA), cujos garimpos também têm assentimento de parte das comunidades.
O sócio fundador do ISA e ex-presidente da Funai Márcio Santilli receia que o cenário político seja especialmente perigoso para essas áreas. “A permanência prolongada de invasores ou de exploradores de recursos naturais com a anuência dos índios poderá ensejar um questionamento sobre seu direito à terra”, comenta. “Os indígenas vão abrindo mão da posse e isso pode ensejar alguma medida do novo governo no sentido de destitui-los do seu direito”, analisa. Ele lembra o caso da TI Baú (PA), reduzida por um acordo entre comunidades e garimpeiros.
TIs e UCs sempre formaram uma barreira contra o avanço da fronteira agrícola rumo ao interior da floresta. A tendência de crescimento das taxas de desflorestamento no interior das áreas protegidas, entretanto, parece consolidar a mudança do chamado “arco do desmatamento”.
Essa transformação ocorre principalmente ao longo das principais rodovias amazônicas, no sudoeste do Pará: as BRs 163 (Cuiabá-Santarém) e 230 (Transamazônica), justamente onde está concentrado o desflorestamento nas TIs.
“O arco do desmatamento faz uma inflexão e se transforma num círculo de devastação que tende a segmentar definitivamente as florestas da Bacia do Xingu do restante da Amazônia”, analisa Santilli.
“Ninguém sabe qual o tamanho dos impactos desse processo em termos de fluxo genético, ressecamento e transporte de umidade para o funcionamento dos ‘rios voadores’, que levam a umidade para outras regiões do país, em especial aquelas de produção agropecuária e os grandes centros urbanos. Certamente esses impactos não serão positivos, algo grave e inédito que deveria ser evitado a todo custo”, alerta.
Entre as dez TIs mais desmatadas em 2017-2018, seis estão no sudoeste do Pará. A região concentra também as UCs federais mais devastadas. A região continua a sofrer os impactos das BRs 163 e 230, da hidrelétrica de Belo Monte e do projeto da ferrovia “Ferrogrão”.
A imigração desordenada e o boom econômico provocados pelas obras aquecem o mercado ilegal de terras e madeira. A omissão do Estado em conseguir conter e retirar invasores das áreas protegidas permite que sua situação fundiária seja colocada em dúvida, numa guerra de versões que incentiva os invasores.
As TIs Cachoeira Seca e Apyterewa, em primeiro e quarto lugar, respectivamente, entre as TIs mais desmatadas, continuam sofrendo com um lento e ineficiente processo de retirada de não indígenas. A medida está prevista nas condicionantes do licenciamento de Belo Monte.
“Todas as promessas, ações e condicionantes não foram suficientes para fazer o governo realizar o seu dever: tirar essas pessoas das TIs. Com isso, os invasores entram, para se confundir com os colonos,tentar usá-los como massa de manobra e forçar a redelimitação das áreas”, ressalta Doblas.
A TI Ituna-Itatá sofre um ataque sem precedentes de grileiros: 86% do território é recoberto de Cadastros Ambientais Rurais (CARs), instrumento previsto no Código Florestal para registrar o que pode ser desmatado, deve ser preservado e reflorestado nas propriedades rurais. O CAR vem sendo usado na grilagem de terra. Um agravante é que a área visa proteger índios isolados, ainda mais vulneráveis à violência e ao contágio de doenças.
Mais a oeste, ainda no Pará, a elevação do preço do ouro nos últimos anos levou a uma retomada de garimpos na TI Mundurucu. A região também sofre com a imigração de trabalhadores que participaram da construção das usinas de Belo Monte (PA), Santo Antônio e Jirau (RO). Os garimpos contam agora com máquinas pesadas, como retroescavadeiras. O ISA apurou que, em 2017 e 2018, aconteceram operações importantes do Ibama, mas nem todas conseguiram apreender e destruir equipamentos, por exemplo. Os garimpos contam com a participação de indígenas que vivem na cidade, mas têm forte oposição das comunidades.
Rondônia e Mato Grosso
Rondônia tem duas áreas entre as dez TIs mais desmatadas: Karipuna e Uru-Eu-Au-Au. Localizadas no oeste do Estado, ambas são alvo de roubo de madeira e grilagem.
“Ocorre que a Funai está completamente sucateada, não tem condições de dar conta das TIs. Não tem carro nem pessoal”, informa Ivoneide Bandeira Cardozo, coordenadora geral da Kaninindé Associação de Defesa Etnoambiental. Ela acrescenta que o asfaltamento de rodovias na região também facilitou o acesso de grileiros e madeireiros.
Na TI Uru-Eu-Au-Au, 18 mil hectares estão em litígio há 30 anos. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concedeu 122 títulos dentro da área, quando já estava homologada. Cardozo conta que os invasores tentam grilar a terra e nem moram na região. “A falta de solução para esta área serve de incentivo para invasões”, ressalta.
No noroeste do Mato Grosso, a TI Zoró também sofre com o arrendamento de suas fronteiras e o roubo de madeira, no qual estão envolvidos alguns índios. Cardozo salienta que neste ano, durante as eleições, houve muito estímulo para invadir a área.
“É um absurdo de madeira que sai da área, na cara da Funai. É escandaloso!”, reclama. “Há uma mistura da ação dos políticos locais, madeireiros, impunidade e uma Funai inoperante, todos os órgãos, o Ibama também, que deveriam agir e não agem”, conclui.
No outro lado do Mato Grosso, a TI Marãiwatsédé voltou a frequentar a lista das áreas mais desmatadas. A área foi alvo de uma rumorosa retirada de não indígenas, em 2013, que contou com a resistência articulada de políticos locais e federais. Marãiwatsédé ficou algum tempo fora do ranking, mas agora ocupa a segunda posição entre as TIs mais desmatadas. De acordo com a Operação Amazônia Nativa (Opan), não há uma retomada das invasões, mas a terra sofre com as queimadas descontroladas, as quais podem começar a ser registradas pelos satélites como corte raso de floresta depois de alguns anos.