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O que muda (ou sobra) para os quilombos com a reforma de Bolsonaro?

Ruralistas estão agora no controle das titulações. Saiba porque reconhecimento de territórios está definitivamente ameaçado na segunda reportagem do ISA sobre a reestruturação ministerial
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Esta reportagem foi atualizada às 13h de 21/1/2019

Entre tantas frases ofensivas contra minorias ditas por Jair Bolsonaro, uma das mais sintomáticas foi proferida no Clube Hebraica, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 3/4/2017.

“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais”, afirmou, acrescentando que, se eleito presidente, não haveria mais “um centímetro demarcado” para indígenas e quilombolas. Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a acusação de racismo da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o então deputado.

Na mais drástica reforma ministerial em quase 30 anos, realizada nos primeiros dias de governo, o mesmo Jair Bolsonaro, agora presidente da República, resolveu subordinar o reconhecimento dos territórios dessas comunidades aos ruralistas, opositores históricos da democratização do acesso à terra no país. Aparentemente, o objetivo é cumprir a promessa feita no Rio.

Depois de séculos de exclusão e violência, os quilombolas seguem entre as comunidades mais vulneráveis do país, vítimas de racismo estrutural, à margem das políticas públicas e com um enorme passivo de regularização fundiária.

A segunda reportagem do ISA sobre a reestruturação dos órgãos de primeiro escalão da nova gestão federal mostra como e porque as titulações estão agora definitivamente ameaçadas, após avançar a passos de tartaruga durante anos.

Ruralistas no controle das titulações

A oficialização de quilombos e Terras Indígenas (TIs) é agora tarefa de um dos superministérios do novo governo, o da Agricultura (Mapa). A pasta também incorporou a atribuição de avaliar e deliberar sobre o licenciamento ambiental de projetos que afetem essas áreas.

Responsável pela formalização dos quilombos em âmbito federal, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) está agora vinculado à nova Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf) do Mapa, dirigida pelo presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antônio Nabhan Garcia.

A UDR é uma organização conservadora nascida, no final dos anos 1980, como reação à reforma agrária e aos movimentos de camponeses e trabalhadores rurais. Também luta contra o reconhecimento de terras indígenas e de comunidades tradicionais. Hoje, é considerada pouco representativa do agronegócio mesmo por líderes ruralistas.

“A sinalização é de enterrar o processo de titulação dos territórios quilombolas, diminuir o status do Incra, um órgão estratégico não só para a titulação, mas também para a governança fundiária do país”, alerta Denildo Rodrigues de Moraes, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Isso vai permitir que os fazendeiros possam mandar e desmandar no processo de ocupação e grilagem”, critica.

Não há ainda confirmação sobre mudanças na estrutura do Incra, mas a informação que circulou entre os servidores é de que as tarefas de identificar as áreas e opinar sobre licenças ficariam na autarquia. Uma fonte do órgão aposta que a Instrução Normativa (IN) 57/2009 e o Decreto 4.887/2003, que regem o reconhecimento dos quilombos, devem ser modificados em breve.

“Não está claro ainda como será o papel do Incra”, comenta Lúcia de Andrade, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP). Ela considera que ainda é cedo para avaliar as consequências do novo desenho ministerial, mas teme ingerências políticas inclusive nas etapas iniciais do complexo procedimento de reconhecimento dos quilombos, por exemplo na decisão sobre as contestações dos estudos de identificação. “É onde o conflito vem mais fortemente”, ressalta.

Uma proposta aventada pela ministra da Agricultura, a ex-presidente da bancada ruralista, deputada Tereza Cristina (DEM-MS), é a criação de um conselho intermininisterial para analisar a regularização de TIs e quilombos. Nesse caso, ainda mais interesses influenciariam a decisão sobre os processos, como os de empresas de mineração e energia.

Outra mudança realizada pela gestão Bolsonaro foi a transferência da Fundação Cultural Palmares (FCP) da alçada da extinta pasta da Cultura para a do novo Ministério da Cidadania, que incorporou também atribuições do antigo Ministério do Desenvolvimento Social (veja infográfico). A FCP é responsável pela certificação das comunidades quilombolas, primeiro passo necessário para iniciar o procedimento fundiário no Incra.

Revisão de processos

Nabhan Garcia tem repetido que irá rever os processos de reconhecimento de TIs e quilombos em virtude de supostas influências “ideológicas” e irregularidades. O secretário ainda não detalhou como isso será feito.

A questão já foi debatida no STF. “A autodefinição feita pela comunidade quilombola é apenas o ponto de partida de um procedimento que – eu contei – é feita em 14 partes, e que inclui laudo antropológico, inclui manifestação do Incra e de todos os interessados. A ideia de que pudesse haver fraude é um pouco fantasiosa”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso no julgamento da constitucionalidade do Decreto 4.887, realizado em fevereiro de 2018. “Era preciso que a comunidade quilombola conseguisse criar uma sociedade puramente imaginária para se argumentar que exista fraude. Ela teria que documentar um modo de produção econômica, relações com antepassados, teria que simular cemitérios que normalmente se encontra nessas comunidades”, ressaltou o ministro.

“O que estão dizendo com essa ação [de rever os processos] é: ‘nós não vamos avançar nas titulações, e vamos retroceder’. É uma ação muito mais política do que jurídica”, analisa Fernando Prioste, assessor jurídico da Terra de Direitos. Ele reforça que, com a notória orientação do novo governo contra o reconhecimento dos territórios, a tendência é que ele altere a legislação e busque subterfúgios administrativos para travar os procedimentos. “Vão achar qualquer embaraço, pequeno ou grande, legal ou ilegal, para impedir as titulações, principalmente onde houver conflitos”, acrescenta. Prioste acredita que os primeiros alvos serão áreas de interesse dos políticos ruralistas.

A assessoria do Mapa respondeu à reportagem que Nabhan Garcia "informou que ainda não recebeu toda a documentação” sobre o tema e que por isso não concederia entrevista.

Demanda por terras

A demanda por terras dos quilombolas é mais do que justa. Foram concedidos no Brasil apenas 241 títulos a essas populações, algo em torno de 0,1% do território nacional ou cerca de 1 milhão de hectares - 78% desse total por governos estaduais, 19% pelo federal e quase 3% em parceria entre ambos (veja gráfico). Cerca de 16,1 mil famílias, de 300 comunidades, estão nessas áreas, de acordo com o Incra.

Hoje, há 1.716 processos em tramitação no órgão, mas 84% deles não têm Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado. O documento apresenta uma proposta de perímetro. A área prevista nos 284 processos com esses estudos já finalizados soma cerca de 2,4 milhões de hectares - em torno de 0,2% do território nacional. Há 32,5 mil famílias aguardando a regularização dessas terras.

Enquanto isso, o Brasil continua a ser um dos países de maior concentração de terra do mundo. Apenas 93 mil latifúndios - ou 1,6% do total de propriedades - concentram 47% da área total dos imóveis rurais, de acordo com o Incra.

A titulação é a última fase do procedimento fundiário. Ele começa com a elaboração e publicação do RTDI, segue com a publicação de uma portaria do Incra e, depois, com o decreto presidencial de desapropriação.

A tramitação dos processos de reconhecimento de quilombos estagnou nos governos Dilma e Temer. A reportagem apurou que, até dezembro, estavam parados na Casa Civil, aguardando assinatura, decretos presidenciais de desapropriação de 24 territórios quilombolas. Além disso, a abertura de novos procedimentos cai ano a ano. (veja infográficos).

A FCP já certificou 3.212 comunidades, o que abrangeria em torno de 1,2 milhão de pessoas. Não há uma estimativa oficial, porém, sobre o número total de territórios e população. A Conaq chega a afirmar que há 16 milhões de quilombolas no país.

O pior é que orçamento do Incra diminui drasticamente. Entre 2012 e 2018, os gastos efetivos com o andamento dos processos e desapropriações despencaram de R$ 51,6 milhões para 2,7 milhões, uma queda de 94% (veja gráfico). A situação tende a se agravar em função do teto de gastos públicos e da orientação de austeridade fiscal do novo governo.

Aumento de conflitos

“Eu temo muito os retrocessos dos processos de regularização que já são demorados, mas especialmente me preocupa as consequências disso, que levam a população quilombola cada vez mais à exclusão social e à ausência de políticas públicas”, comenta Raquel Pasinato, coordenadora do programa Vale do Ribeira do ISA.

A demora nas titulações amplia os conflitos no campo. Denildo Moraes explica que, diante da situação, para sobreviver várias comunidades têm tentado retomar terras usurpadas entre os anos 1970 e 1980. Por outro lado, os fazendeiros reagem ou insistem em permanecer em áreas quilombolas. A situação é mais grave no Pará, Maranhão, Bahia e Minas Gerais.

Entre 2008 e 2015, foram assassinados 16 quilombolas, numa média de dois por ano. Em 2016, foram mortos 4 e, em 2017, 18, um aumento de 450% em relação ao ano ano anterior. No total, foram mortos 38 pessoas no período (leia publicação).

Moraes está preocupado com a publicação, nesta semana, do decreto de Bolsonaro que facilitou o porte de armas. Para ele, a medida tende a aumentar a violência no campo. Além disso, Nabhan Garcia insiste que não irá dialogar com movimentos que promovam ocupações.


Licenciamento ambiental

Outra mudança problemática operada pela reforma ministerial foi a transferência para o Mapa da atribuição de opinar sobre o licenciamento ambiental de projetos que impactam TIs e quilombos. Até então, a função era da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da FCP, respectivamente.

Os dois órgãos eram responsáveis pela avaliação dos impactos sobre essas populações e pela anuência às licenças. Eles detêm a competência técnica para tratar do assunto, com anos de experiência e investimentos para qualificar servidores. O MAPA não conta com um quadro especializado na área.

“A alteração é técnica e juridicamente equivocada. Além do evidente conflito de interesses, subordinar direitos fundamentais dessas minorias a interesses econômicos de setores específicos viola o Estado Democrático de Direito”, alerta o advogado do ISA Maurício Guetta. “Os conflitos, impactos e violações de direitos continuarão a existir. Ignorá-los resultará em prejuízos não apenas a essas populações, mas para os empresários também, com o aumento da insegurança jurídica”, conclui.

Fomento à produção e igualdade racial

A reforma ministerial também incluiu entre as competências do Departamento de Estruturação Produtiva, da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo do Mapa, a coordenação de políticas de fomento à produção de comunidades tradicionais e ao agroextrativismo, iniciativas com impactos sobre os quilombolas.

O Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, comandado pela polêmica pastora Damares Alves, incorporou órgãos vinculsdos ao antigo Ministério de Direitos Humanos, como a Secretaria de Promoção de Políticas da Igualdade Racial (Seppir), o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, que igualmente influenciam iniciativas voltadas aos quilombos.

ISA