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A Maloca, habitação tradicional dos povos do Rio Negro, é considerada a casa coletiva que acolhe a todos e todas. É também símbolo dos Territórios Indígenas rionegrinos que atravessa gerações. E foi na Maloca Casa do Saber, na sede da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em São Gabriel da Cachoeira (AM), que 256 jovens indígenas de 15 etnias se reuniram nos dias 5 e 6 de dezembro para debater sobre os principais desafios e perspectivas para o futuro.
Com olhos sonhadores e sorrisos tímidos de quem pela primeira vez participa de um congresso na sede do município, vozes adolescentes e jovens falaram a palavra "coragem" repetidas vezes. Diante dos desafios que têm na vida, essa juventude multiétnica — falante de várias línguas, como Tukano, Baniwa, Yanomami e Nheengatu — se uniu para pedir coragem a eles mesmos, aos seus caciques e aos governantes no poder.
“Cada grupo de jovem fez muito esforço para estar aqui. Vieram de longe e passaram por muitas coisas para chegar nesta maloca. Eu vejo que eles são muito fortes e batalhadores. Então, o que eu levo desse encontro é a força e a coragem que existe em cada um. Isso nos toca e desperta o interesse em aprender cada vez mais”, explicou Loila Góes Aguiar, Yanomami, de 16 anos. Ela, além de participar, apoiou nos trabalhos na cozinha do Congresso.
Diante dos sérios problemas ambientais vividos no Brasil ultimamente, como os rompimentos de barragem em Brumadinho e Mariana (MG), a juventude indígena do Rio Negro se posicionou contra projetos de garimpo e mineração colocados pelo atual governo para os Territórios Indígenas. Em seu documento final do II Congresso escreveu: “A forma que está sendo apresentada junto ao governo estadual e federal sobre a mineração em terras indígenas sem a devida consulta forma e oficial junto às lideranças e os povos habitantes dos territórios indígenas do Rio Negro, concluímos que a juventude do Rio Negro diz não à mineração em terras indígenas”.
Veja a íntegra do documento e lista de assinaturas.
Para o Baré de 19 anos, Gilvan Gonçalves Barreto, nascido na comunidade do Yabi, no Alto Rio Negro e estudante da Escola Sagrada Família, na sede de São Gabriel, esse tipo de evento é importante para “levar para frente nossa cultura e nossa valorização indígena”. A principal preocupação do jovem é com o lixo da cidade. Ele diz que chega a perder o sono pensando em como pode solucionar esse problema. Os igarapés estão cheios de lixo, a areia da praia, os terrenos baldios e isso o entristece. Sobre a possibilidade de enriquecer com a mineração ou garimpo, como defendem alguns políticos e empresários, ele comentou:
“Não sou a favor do garimpo. Nós, como indígenas, vamos nos matar de trabalhar para os outros que podem mais que nós e depois vamos ficar sem nada. Para os outros de fora, o garimpo gera muito dinheiro, mas para nós e para o meio ambiente gera um monte de lixo, polui os rios, lagos e floresta. Eu não tenho vontade de ir para o garimpo. Tenho vontade de trabalhar com Educação. De me tornar um professor. Meu sonho é ter uma infraestrutura melhor para nossos parentes e conscientizar todo mundo sobre o lixo para São Gabriel se tornar um lugar bom para todos”.
O grupo de jovens da etnia Dâw participou pela primeira vez de um evento na cidade. Guiados pela líder da comunidade, Auxiliadora Dâw, eles apresentaram suas conclusões sobre garimpo durante o encontro. “A gente não sabe nem batear ouro. A gente é contra isso. Se entrar na nossa terra esse garimpo não vamos ser nós que vamos explorar. Vimos os vídeos dos parentes Yanomami sofrendo muito com a poluição. Ouro causa muito sofrimento. Queremos é trabalhar com agricultura, que nos dá alimento e uma vida boa na comunidade e na nossa escola”, afirmou Auxiliadora. A etnia Dâw quase foi extinta há alguns anos e, hoje, soma uma população de 145 pessoas falantes da sua própria língua da família linguística Naduhup, em São Gabriel da Cachoeira.
Marcina Alemão, jovem Baré de Tabocal dos Pereira, na TI Cué-Cué Marabitanas, disse que o Congresso valeu à pena para “aprender que a gente tem direitos. Direito à igualdade com os outros, de se colocar na frente das pessoas, de falar das nossas dificuldades e de como é viver nas comunidades”. Marcina disse estar surpresa com a questão climática, com o derretimento das geleiras dos Andes e de todo o movimento que a juventude mundial vem fazendo sobre o tema. “Acho que nós jovens devemos falar desse assunto para todo o mundo e orientar as pessoas porque elas estão perdidas. A gente precisa fazer mais encontros assim”.
“O que me chamou atenção aqui é que estamos pensando junto o nosso futuro diante de tanta dificuldade para nós. Estamos entendendo sobre as políticas públicas e como isso é importante para a juventude. Por isso, eu quero estudar mais para ajudar na minha comunidade. Meu pai e minha mãe são agricultores e sempre me incentivaram a estudar”, contou Amarildo da Silva Lima, Tuyuka da comunidade de Nossa Senhora de Assunção, no rio Tiquié, de 19 anos.
Ele terminou o ensino médio e agora paga mensalidade para o ensino superior à distância em uma faculdade privada em São Gabriel da Cachoeira. O jovem estuda Serviço Jurídico e Notariais. “Sempre estarei participando desses eventos. A Foirn é importante pra gente porque protege o nosso território. Está lutando, orientando, dando conselho. A Foirn chega nas comunidades, conversa e conta o que está acontecendo. É muito importante pra gente esse trabalho”, defendeu o jovem.
Moradora da cidade, Lilia Cordeiro França, do povo Baré, se disse surpresa com a precariedade das escolas nas Terras Indígenas e com a falta de infraestrutura, como ausência de salas de informática, biblioteca, quadras e energia elétrica. Nas apresentações de grupo, os jovens reivindicaram em primeiro lugar melhorias nas escolas nas aldeias. Eles desejam acessar as boas coisas da modernidade sem sair de suas terras e ter o direito – como todo cidadão brasileiro – de frequentar uma escola pública estruturada.
Em muitas aldeias, as aulas são improvisadas dentro de centros comunitários, capelas e casas construídas pela própria comunidade, sem nenhum tipo de infraestrutura para estimular e motivar os alunos. “Tem muita gente que diz que o jovem não tem capacidade de buscar os seus direitos, que não temos experiência para isso. Mas aqui no congresso vimos que podemos sim nos unir para construir um futuro melhor”, enfatizou Lilia.
Os jovens indígenas do Rio Negro presentes ao II Congresso pediram em uníssono a instalação de antenas 4G e manutenção dos orelhões nas comunidades. O acesso a internet e aos meios de comunicação é fundamental para os estudos e interação com o mundo. Ao mesmo tempo que querem acessar a tecnologia e as novidades, também se preocupam em zelar por suas tradições, cultura e território. A tecnologia, aliás, está atrelada a esse cuidado, quando os jovens indígenas desejam oficina de vídeo e técnicas de som para gravar danças, cantos e rituais.
“As pessoas hoje estão indo de qualquer jeito nas casas sagradas e por isso adoecem. Só pode ir para casa sagrada se tem permissão”, disse um jovem representante de Iauaretê, do povo Tariano, durante apresentação de seu grupo, que também enfatizou a importância dos benzimentos. “A gente queria ter um espaço cultural em Iauaretê para mostrar nossa cultura, produzir filmes e depois mostrar na comunidade. Isso seria bom para nós e para a valorização dos nossos conhecedores tradicionais”, completou.
O mesmo apresentou a juventude do rio Uaupés, representada por seis jovens de Taracuá acompanhados pela professora Carmem Menezes, do povo Tukano. “Precisamos fazer melhor pela futura geração e não estragar nosso território com garimpo, lixo e poluição. Grandes lideranças estão nos falando para a gente manter a mesma força que tiveram no passado para demarcar e defender o nosso território. E a gente vai continuar tendo coragem para exigir que os empresários, governo ou qualquer um outro venha nos consultar na comunidade, junto às nossas associações e à Foirn, sobre interesses financeiros em nossa área”, pontuou Marco Antônio Tukano, de 19 anos.
A juventude escreveu uma parte importante da história do movimento indígena ao concretizar o II Congresso de Adolescentes e Jovens Indígenas do Rio Negro (AM) em 2019, 17 anos depois, conseguem realizar outro congresso. O primeiro foi em 2002. Os veteranos que batalharam pela inclusão dos jovens nos espaços de decisão também participaram ativamente dos debates atuais, trocando experiências e apoiando a nova geração na continuidade da defesa dos direitos e do bem comum dos 23 povos indígenas do rio Negro. “Estamos ameaçados por um desgoverno que está tirando os direitos da juventude. A juventude periférica, sobretudo negra e indígena, está sendo dizimada”, denunciou Gilliard Henrique, do povo Baré, um dos idealizadores dos primeiros encontros da juventude indígena do Rio Negro.
Edineia Teles, do povo Arapaso, também é uma veterana da juventude indígena que esteve no protagonismo da conquista do Departamento de Adolescentes e Jovens da Foirn, assim como da Secretaria municipal de Juventude de São Gabriel da Cachoeira. “A partir do momento que passamos a cobrar do governo, a gente se tornou um inimigo dos governantes. O prefeito passa a se esconder da gente. Na época, a gente chegava a madrugar na porta do prefeito Juscelino para conseguir ter uma Secretaria Municipal da Juventude. Com essa insistência é que conquistamos nosso espaço”, relembra Edineia ao fazer a linha do tempo das conquistas da juventude.
Na abertura do evento foi feita homenagem ao jovem Desana Délio Firmo Alves, que faleceu em 2018 e foi grande defensor da juventude indígena do rio Negro, ocupando o cargo de presidente do Conselho Estadual da Juventude do Amazonas.
Para Adelina Sampaio, do povo Desana, coordenadora do Departamento de Jovens da Foirn, o Congresso deixa uma responsabilidade grande para o movimento indígena: o compromisso com as pautas e propostas da juventude. “Seremos os articuladores dessas demandas trazidas pelas nossas bases e agora temos que correr atrás para que essas propostas sejam concretizadas”, disse Adelina.
Claudia Soares, Baré, representante da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), motivou a juventude a buscar seus direitos e a trabalhar pelo bem comum, pela sua cultura e território, mostrando quais são os principais desafios enfrentados hoje, como as invasões das terras indígenas por madeireiros, garimpeiros e outras atividades ilegais, sem que haja devido controle e fiscalização por parte das autoridades competentes.
A elaboração dos planos de gestão territorial e ambiental das Terras Indígenas do Rio Negro, assim como dos seus Protocolos de Consulta, também foram temas de trabalho de grupo e apresentações por parte da juventude, que precisa estar antenada aos assuntos fundamentais para garantir seus direitos territoriais. Nildo Fontes, vice-presidente da Foirn, do povo Tukano, fez apresentações desses temas para os jovens. “A juventude é a nossa continuidade e nossa renovação. Estamos trabalhando hoje para garantir a permanência e o bem viver dessa geração em nosso território”, sublinhou.
Greves globais do clima e a mobilização da juventude mundial na cobrança por medidas efetivas no combate às mudanças climáticas também foram temas de debate, em colaboração com o ISA. A partir de recentes reportagens científicas e matérias jornalísticas sobre o agravamento do quadro, como o relatório de 11.258 cientistas de 153 países denominado “Alerta dos Cientistas Mundiais sobre a Emergência Climática”, a juventude indígena recebeu informações atualizadas sobre o tema, debateu e inseriu suas considerações no documento final do Congresso.
Um intercâmbio de ideias, narrativas e olhares se iniciou entre jovens indígenas de São Gabriel da Cachoeira e o coletivo LabCine, do Piauí, que trabalha com produção audiovisual independente. Formados em jornalismo pela Universidade Federal do Piauí, Milena Rocha, de 23 anos, e Weslley Oliveira Pinto, que é nascido em Timon, no Maranhão, vieram participar do II Congresso da Juventude Indígena do Rio Negro, na Foirn, para conhecer melhor o trabalho da Rede Wayuri de Comunicação Indígena, assim como trocar experiências com os jovens reunidos no evento.
Assim como a Rede Wayuri, o LabCine foi selecionado pelo Programa Profissão Repórter da TV Globo, para participar de uma semana de imersão em São Paulo, após apresentarem trabalhos de vídeo reportagem que concorreram com cerca de 300 produções enviadas por grupos de jovens de várias regiões do Brasil. Ao conhecer os comunicadores indígenas Claudia Wanano e Moisés Baniwa, Milena concluiu que os trabalhos desenvolvidos no Rio Negro tinham muito em comum com o que eles vem produzindo em Teresina (PI) e em Timon (MA), cidades separadas pelo Rio Parnaíba, no Semi-Árido. Decidiu, então, por conta própria, fazer uma viagem para São Gabriel, saindo de ônibus de Teresina rumo a Belém, de barco de Belém para Manaus e então de lancha expressa para São Gabriel da Cachoeira, levando ao todo oito dias para chegar até o Alto Rio Negro.
Amante del cine acessível, Milena trabalha para estimular a produção audiovisual feita por pessoas que estão fora dos grandes centros urbanos ou não se apropriaram das novas tecnologias digitais como ferramenta para registrar e contar as suas próprias histórias. Ela e Weslley trabalharam com um grupo de jovens técnicas de filmagem e fizeram exercícios práticos usando câmeras e celulares.
Além disso, apresentaram o LabCine durante uma mesa do Congresso e apoiaram os comunicadores Wayuri na gravação de entrevistas sobre o evento histórico para a juventude indígena do Rio Negro. “Foi uma experiência incrível e uma das melhores oficinas que já participei na vida. Vamos manter essa troca para produzirmos juntos”, disse Milena, acrescentando que o coletivo já soma oito filmes produzidos, participação e conquista de festivais de cinema, como o Guarnicê, em São Luís, e o Visões Periféricas, no Rio de Janeiro.
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