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Pintadas e de mãos dadas, mulheres indígenas de todas as idades se juntaram na orla da praia de São Gabriel da Cachoeira (AM), às margens do Rio Negro, para pedir por dias de paz. O ato -- inédito -- promovido pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) neste 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, chamou a atenção da população sobre os altos índices de violência de gênero no município.
Os dados mostram que, entre o dia 1º de janeiro de 2010 e 31 de dezembro de 2019, foram registrados na delegacia do município 4.681 casos de violência contra mulheres. Isso revela uma média de 1,28 casos notificados por dia. “Em 10 anos a gente não teve um dia de paz. Isso sem falar nos casos que não são denunciados, pois sabemos que muita mulher tem medo de denunciar seus agressores -- em sua maioria maridos ou ex-companheiros”, alerta Elizângela da Silva, do povo Baré, coordenadora do Departamento de Mulheres da Foirn.
O dado foi levantado pela antropóloga Flávia Melo, do Observatório de Violência de Gênero no Amazonas (OVGAM), ligado à Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Dessa forma, por meio do projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro, que conta com a participação do Instituto Socioambiental (ISA), da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e do Departamento de Mulheres da Foirn, São Gabriel da Cachoeira se tornou o primeiro município do Amazonas a ter dados de violência de gênero coletados em um período de dez anos.
“Ficamos felizes em poder nos manifestar nesse Dia da Mulher. Por muito tempo sofremos caladas, mas agora sabemos que precisamos lutar pelos nossos direitos. Queremos andar seguras na nossa cidade e não sentir medo o tempo todo”, disse a diretora executiva da Foirn, Almerinda Ramos de Lima, do povo Tariana.
As mulheres indígenas ocuparam a orla de São Gabriel para vender seus produtos, como artesanatos, cestarias, biojóias e alimentos do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro. Ao mesmo tempo, tomaram o espaço público para serem escutadas pela população. Vozes que por muitos anos foram silenciadas pelo medo e pela opressão. Através de uma dramatização comandada por Maria do Rosário Martins Baniwa, as manifestantes lembraram de mulheres que foram vítimas de feminicídio em São Gabriel, assim como também frisaram a importância da luta por direitos, sobretudo, neste momento político adverso para as mulheres e minorias no Brasil.
O projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro tem como objetivo geral compreender as dinâmicas locais e mobilizar ações para combater as formas de violência às quais mulheres indígenas rionegrinas estão expostas, especialmente em São Gabriel da Cachoeira. Também age para estimular e apoiar as mulheres e suas redes de resistência e luta, além de entender como elas se cuidam, protegem e acolhem.
Nessa sintonia, em julho de 2018 foram realizadas nove rodas de conversa com mulheres de 11 a 70 anos, sobretudo indígenas, conduzidas pelo professor e antropólogo da Faculdade de Saúde Pública da USP, José Miguel Nieto Olivar -- junto com o Departamento de Mulheres da Foirn e a assessoria do ISA.
Querendo servir como espaço de conversa e circulação de experiências, saberes e afetos, as rodas trouxeram um conteúdo que foi sistematizado e organizado em uma apresentação, em 28 de fevereiro, para cerca de 40 participantes, no telecentro comunitário do ISA.
Estavam presentes representantes da Funai, DSEI-ARN (Distrito Sanitário Especial Indígena-Alto Rio Negro), Prefeitura de São Gabriel, Conselho Tutelar, Polícia Civil, entre outras instituições, além de mulheres indígenas lideranças e das instituições parceiras, UFAM, USP, ISA e Foirn.
Foi a primeira devolutiva pública do projeto. Com a análise mais aprofundada do levantamento de dados na Delegacia e as reflexões sobre as rodas de conversa e reuniões de trabalho, nasceu uma série de recomendações e desdobramentos. Entre as primeiras ações já confirmadas está a realização do primeiro módulo do curso de formação de Promotoras Legais Indígenas, em outubro de 2020, logo antes da Assembleia Eletiva do Departamento de Mulheres da Foirn. Além disso, em parceria com a delegada Grace Jardim, da Polícia Civil de São Gabriel da Cachoeira, será feita a recomendação de um boletim de ocorrência padrão que possa coletar mais dados, como etnia e procedência, para apoiar no entendimento dos casos de violência registrados.
Atualmente, a rede de mulheres que se consolidou a partir das rodas de conversa mantém um grupo no WhatsApp para trocar informações de interesse geral, mas também violência de gênero. Essa dinâmica apoia um maior enfrentamento, estimula a autogestão do cuidado e nutre uma rede de proteção e acolhimento. “A gente se sente muito mais fortalecida agora que sabemos que estamos juntas e temos objetivos em comum. Agora seguiremos nosso trabalho com nossos parceiros para melhorar a vida das mulheres dos 23 povos indígenas do Rio Negro”, concluiu Elizângela.