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Qual é a relação entre a iluminação pública de Londres e os povos originários da Terra do Fogo? E a relação entre caçadores de coelhos australianos e a águia imperial espanhola? O carimbo tradicional japonês, o hanko, e os elefantes? A ocupação italiana da Somália no século XIX e os parques do Quênia? Qual é a relação entre o desmatamento no Congo, os morcegos na China e os casos de sarampo?
As intrincadas relações entre as espécies e as paisagens na natureza estão se tornando mais conhecidas nessa pandemia nossa de cada dia. Poderíamos, por exemplo, acrescentar à lista de perguntas qual seria a relação entre os pangolins do mercado de Wuhan, na China, e os preços do barril de petróleo. A resposta para essa questão está mais fresca, porém, as outras -- apesar de serem menos conhecidas -- também moldaram o destino de espécies, paisagens e comunidades humanas.
Os povos originários da Terra do Fogo, no extremo sul da América do Sul, faziam fogueiras para se aquecer, o que deu nome à ilha. Eles caçavam lobos-marinhos para sua subsistência. Com o crescimento das cidades no século XIX, antes da eletricidade, a iluminação urbana dependia de combustível. Caçadores navegavam mundo afora em busca de animais como baleias e lobos-marinhos, que possuem uma grande camada de gordura, fonte de óleo de iluminação pública e matéria-prima para velas. Dessa forma, os lobos-marinhos minguaram e os povos originários da Terra do Fogo, privados de uma importante fonte de alimentação, minguaram junto. As fogueiras da ilha foram se apagando, enquanto cidades, como Londres e Paris, se iluminavam.
Não existiam coelhos na Austrália, mas existiam caçadores que queriam caçar coelhos. Assim, em meados do século XIX, um deles teve uma ideia para resolver esse problema: levou 24 coelhos para caçar na Austrália. Aparentemente, ele não era um bom caçador, pois não caçou todos e os que escaparam se reproduziram em massa, gerando milhões de animais. Claro que a quantidade exorbitante de coelhos provocaria grandes impactos, sobretudo erosão, desertificação e perdas significativas na agricultura.
Para tentar conter os coelhos, o governo australiano recorreu a cercas e, obviamente, fracassou. Depois, importou raposas vermelhas, que além de se reproduzirem descontroladamente, atacaram a fauna nativa de marsupiais e aves, gerando mais um problema. Em 1951, a Austrália adotou a guerra biológica contra a praga de coelhos: importou um vírus de uma doença desses animais no Uruguai. O plano deu resultados, com a morte de milhões de coelhos. Depois, porém, vieram os sobreviventes, resistentes a doença, e geraram novas gerações de coelhos imunes. Como se fosse pouco, a doença se espalhou e acabou matando uma quantidade enorme de coelhos em outros continentes.
Mais recentemente, a Austrália passou a usar uma nova variante do vírus de uma doença hemorrágica, mortal para os coelhos. O problema é que, como sabemos, os vírus não conhecem fronteiras, nem precisam de vistos, assim sendo, a qualquer momento esse vírus pode se espalhar pelo mundo, e chegar, por exemplo à Península Ibérica, onde se tenta proteger os coelhos. Ali, a escassez desses animais ameaça espécies como o lince ibérico e a água imperial espanhola. Outro risco é que o vírus se torne mais letal ou que comece a infectar outras espécies, história que conhecemos bem depois da Covid-19. Ou seja, o que um capricho de um mau caçador de coelhos pode causar…
No Japão, um dos problemas enfrentados na quarentena dessa nossa pandemia é burocrático: todo documento deve ter um carimbo pessoal, o “hanko”, que não pode ser substituído por uma assinatura eletrônica. Assim, as pessoas precisam ir ao trabalho para carimbar seus documentos, com seu carimbo pessoal, e isso atrapalha o teletrabalho e o confinamento. Um dado que chama a atenção é que tradicionalmente esses carimbos eram feitos de marfim, principalmente os da elite japonesa. Por muito tempo, foi a produção de “hankos” que alimentou a demanda de marfim e incentivou o tráfico de presas de elefantes, ameaçando muitas populações desse grande mamífero.
No caso da ocupação da Somália e os parques africanos, a história data de 1889, quando os italianos, para alimentar suas tropas, importaram gado infectado com peste bovina da Índia e do sul da Rússia. Trata-se de uma doença virótica, altamente contagiosa, que causa, na grande maioria dos casos, a morte dos animais. Os rebanhos nativos, até então não expostos ao vírus, rapidamente sucumbiram à doença. Morreram cabras e ovelhas, além de animais selvagens, como girafas, antílopes e gazelas. Em dez anos, a peste bovina cruzou o continente africano, matou cerca de 95% do gado africano e parte significativa dos animais silvestres.
O impacto foi devastador. Além da fome e da mortandade, grandes migrações aconteceram, transformando a paisagem do continente. Áreas abandonadas foram tomadas pela mosca tsé-tsé, causadora da doença do sono, e os casos da doença explodiram no início do século XX. Outra consequência foi que muitas dessas áreas, agora dificilmente habitáveis por causa da presença da mosca tsé-tsé, foram identificadas pelas forças coloniais como regiões de natureza intocada e ali foram estabelecidos parques e reservas naturais.
Já a conexão entre desmatamento e sarampo no Congo tem origem nos surtos de ebola. Estes, por sua vez, estão ligados à abertura de novas áreas de floresta no país. Por causa dos surtos, a vacinação contra o sarampo não aconteceu e o resultado foi um surto de sarampo que já contabiliza 348 mil casos e 6,5 mil mortes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Agora, com a pandemia de Covid-19, 23 países suspenderam a vacinação do sarampo e as consequências podem ser trágicas.
Há diversas histórias que relacionam eventos em um lado do mundo, ligados a uma espécie ou paisagem, que afetam outras, do outro lado do globo ou no planeta todo, como é o caso do novo coronavírus. E mudam definitivamente o destino de povos e países. A história da Terra do Fogo seria outra se seus povos originários tivessem ali permanecido fortes e saudáveis.
A tragédia da colonização na África talvez tivesse sido amenizada se as populações não fossem obrigadas a migrar diante da fome que a peste bovina provocou. Milhares de vidas poderiam ter sido salvas no Congo e em outros países se os surtos de ebola não tivessem desestruturado os frágeis sistemas de saúde.
Assim, em pouco tempo teremos também histórias relacionadas com o que fazemos agora, durante a pandemia nossa de cada dia. Uma possível pergunta será: qual é a relação entre o aumento de espécies marinhas ameaçadas e os equipamentos de proteção individual contra o coronavírus? Isso porque já há relatos do aumento de plástico nos oceanos, à medida que esses equipamentos, como máscaras e luvas, são descartados. A quantidade de plástico nos oceanos já é gigantesca e contribui para a morte de vários animais marinhos. No futuro, talvez, seja possível ligar a extinção de alguns deles ao nosso comportamento durante a pandemia. Como pensar em um outro mundo, se continuamos a ignorar as consequências de nossos atos?