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Oswaldo Braga de Souza, reportagem e edição. Texto atualizado em 9/5, às 12:02
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin impôs duas derrotas importantes ao governo de Jair Bolsonaro e à bancada ruralista. Na quarta (7), em decisão liminar, suspendeu todos os processos judiciais do país que possam afetar a demarcação de Terras Indígenas (TIs), pelo período que durar a pandemia de Covid-19 ou até o julgamento na corte do recurso com “repercussão geral” do caso da TI Ibirama La Klãnõ (SC), do povo Xokleng, ainda sem data para acontecer. Esse tipo de recurso unifica a jurisprudência e tem efeito vinculante, ou seja, obrigatório sobre todas as decisões judiciais e administrativas relacionadas, no caso, às demarcações.
Na prática, a decisão suspende todos os processos judiciais contra procedimentos demarcatórios, inclusive ações de reintegração de posse contra comunidades indígenas. “A manutenção da tramitação de processos, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agrava a situação dos indígenas, que podem se ver, repentinamente, aglomerados em beiras de rodovias, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus”, disse Fachin.
Ontem, o ministro atendeu a outro pedido feito na mesma ação e suspendeu, também provisoriamente, os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma foi editada na administração de Michel Temer, mas vinha sendo usada principalmente pela atual gestão para paralisar, reverter e até anular demarcações. Nesse caso, Fachin determinou que a liminar seja remetida ao plenário da corte para que seja confirmada ou não. Ainda não há data marcada para o julgamento.
O Parecer 001/2017 estabeleceu critérios para a formalização das TIs e orienta a atuação dos órgãos federais, como a consultoria jurídica do Ministério da Justiça e a procuradoria especializada da Fundação Nacional do Índio (Funai), para citar duas instituições diretamente envolvidas no assunto.
O parecer reproduz e distorce parte da decisão do STF sobre a TI Raposa-Serra do Sol (RR) de 2009. Entre outros, a norma prevê o chamado “marco temporal”, pelo qual os índios só teriam direito às áreas que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. As únicas ressalvas da tese, defendida por políticos ruralistas, são os casos em que já houvesse processo judicial movido em nome das comunidades para garantir seu direito à terra ou quando elas foram reconhecidamente retiradas contra a vontade do território e se mantiveram em conflito para retornar a ele, situação muitas vezes difícil de comprovar. O marco temporal desconsidera o histórico de expulsões e outras violações graves cometidas contra essas populações.
Desde as eleições, Bolsonaro vem fazendo o possível para abrir as TIs ao garimpo e a grandes projetos econômicos, paralisar definitivamente a oficialização dessas áreas e enfraquecer a legislação indigenista.
“Esse parecer é extremamente nocivo. A que ponto chegamos, de a Advocacia-Geral da União - que tem a missão de defender as Terras Indígenas, porque elas são um bem da União - tornar-se advogada do agronegócio?”, questiona Luís Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Na parte que suspende as reintegrações de posse e [ações] anulatórias nesse contexto de pandemia, [a decisão] é justamente para prevenir que agentes externos tenham acesso a essas comunidades, ainda que estejam em contexto de ocupações precárias. Então, essas decisões vêm atender direitos mínimos dos povos indígenas”, acrescenta.
“A decisão é importantíssima porque demonstra que o Parecer 01 da AGU é inconstitucional, na linha do que o ISA e diversas entidades já vinham denunciando desde a sua edição. Espera-se que o plenário mantenha a decisão e garanta a efetividade dos direitos dos índios previstos na Constituição”, afirma a advogada do ISA Juliana de Paula Batista. “A decisão também é importante porque impede que a Funai anule demarcações durante a pandemia causada por Covid-19 com fundamento no parecer. Essa possibilidade poderia agravar a contaminação de comunidades já extremamente vulnerabilizadas pela demora do Estado em promover as demarcações e retirar os invasores das áreas”, menciona Batista.
“De consequência, determino à FUNAI que se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU até que seja julgado” o mérito da matéria, afirmou Fachin em seu segundo despacho.
O ISA e a Apib foram duas das várias organizações da sociedade civil que entraram na ação para apoiar a causa da comunidade Xokleng e fizeram os pedidos agora atendidos por Fachin na qualidade de “amigos da causa” (amicus curiae).
A bancada ruralista protestou contra as duas decisões, principalmente por serem monocráticas. Em nota, manifestou "perplexidade" e acusou Fachin de "abuso de poder judicial" e de violar o princípio de separação dos poderes. "O STF é o principal órgão do Poder Judiciário brasileiro e possui a legitimidade de analisar a constitucionalidade de atos dos demais poderes. Contudo,
os membros do Tribunal devem respeito ao seu órgão máximo, o Plenário da Corte,
bem como a separação de Poderes da República", diz o texto.
Em pelo menos 20 casos, o governo Bolsonaro usou o parecer como justificativa para atravancar ou tentar extinguir processos demarcatórios. Entre outubro e março, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, determinou que o órgão deixasse de defender judicialmente as comunidades das TIs Palmas (SC/PR), do povo Kaingang; Ñande Ru Marangatu (MS), do povo Guarani Kaiowá; e Tupinambá de Olivença (BA), do povo de mesmo nome. Em janeiro, o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, devolveu à Funai 17 demarcações, sendo que cinco já tinham portarias declaratórias e estavam prontas para receber os decretos presidenciais de homologação, última fase do complexo e demorado procedimento demarcatório.
Além disso, entre o segundo semestre de 2019 e o início de 2020, a Funai recebeu mais de 40 requerimentos de particulares pedindo a anulação de demarcações com base no Parecer 001.
No governo Temer, entre agosto de 2017, quando a norma foi editada, e fevereiro de 2018, 12 processos retroagiram com justificativa na norma, sendo que seis deles já estavam prontos para receber o decreto de homologação. Mais de 30 requerimentos de anulação de TIs foram encaminhados ao órgão indigenista. Os números foram apurados pela reportagem com servidores da Funai.
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