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Reportagem e edicão: Oswaldo Braga de Souza, com informações da Apib e Coiab
Texto atualizado em 9/5, às 13:13
Em dois dias, entre quinta e sexta (8/5), o número de indígenas mortos por Covid-19 saltou quase 45%, passando de 38 para 55 em todo país, segundo levantamento independente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O epicentro da epidemia segue no Amazonas, com um total de 42 mortes. A situação é pior em Manaus, com 21 óbitos, e na região do Alto Rio Solimões, com 17.
Ainda segundo a Apib, havia 223 casos de indígenas contaminados, com 30 povos diferentes afetados. As informações estão sendo obtidas de familiares das vítimas, profissionais de saúde, organizações indígenas locais e regionais, além de agregar os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.
Como acontece com o restante da população brasileira, a estatística oficial é altamente subnotificada entre os índios. O número divulgado pela Sesai, na noite desta sexta, era de apenas 15 óbitos, mais de três vezes menor. Segundo a secretaria, os casos confirmados eram 206, com a maioria deles no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Solimões (100), no da região ao redor de Manaus (25) e no de Parintins (25), também no Amazonas e que agrega os municípios de Parintins, Maués, Barreirinha, Nhamundá e Boa Vista, a leste de Manaus.
A Sesai está considerando ocorrências apenas nas áreas dos Dseis, que são a ela vinculados e em geral cobrem apenas a zona rural. A secretaria afirma que os indígenas que vivem nas cidades devem ser atendidos pelos serviços convencionais do Sistema Único de Saúde (SUS). A posição é criticada pelo movimento indígena e o Ministério Público Federal (MPF).
Tampouco o Ministério da Saúde, órgãos estaduais e municipais têm dados sistematizados da evolução da epidemia entre as comunidades urbanas. Daí a dificuldade extrema de checá-los. Segundo o IBGE, dos 896,9 mil indígenas do país, 324,8 mil ou 36% viviam em cidades em 2010, quando foi realizado o último censo no Brasil.
Há vazio de informações mesmo em lugares como São Gabriel da Cachoeira (AM), onde 90% da população do município é indígena e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) já conseguiu identificar quatro mortes, uma ainda fora da lista da Apib. Também não há estatísticas oficiais na capital amazonense, onde vivem cerca de 30 mil índios, segundo a Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime).
A Associação dos Indígenas Kokama (AKIM) informou, só na quinta-feira, mais 10 óbitos, totalizando 20 só entre essa população, a maior vítima da crise sanitária até agora.
Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), ela já atinge 23 povos na região: Apurinã, Arapiun, Baniwa, Baré, Borari, Kokama, Galibi (Kalinã), Hixkaryana, Huni Kuin, Karipuna, Mura, Munduruku, Macuxi, Zoró, Palikur, Sateré-Mawé, Tariano, Tembé, Tikuna, Tupinambá, Tukano, Yanomami e Warao. As mortes foram registrados entre 13 povos: Kokama (20), Tikuna (8), Tukano (3), Apurinã (2), Warao (2), Baniwa (2) e, com um óbito cada, Baré, Borari, Mura, Palikur, Sateré Mawé, Tariano, Yanomami. Há ainda cinco mortos sem etnia identificada.
“A situação está piorando em todas as regiões da Amazônia. É importante continuarmos pedindo aos parentes para ficarem nas suas aldeias. Se o sistema de saúde está crítico nas cidades que tem uma certa estrutura, imagina nas aldeias que não têm equipe médica, nem posto de saúde”, relata Angela Kaxuyana, da coordenação da Coiab.
“Os números apurados pelo movimento indígena, quando comparados aos da Sesai, revelam uma discrepância absurda. Além da negligência do Estado brasileiro, há um racismo institucionalizado”, critica Sônia Guajajara, da coordenação da Apib. “O movimento indígena está preocupado em registrar minuciosamente os dados e exigir sua oficialização, para que daqui a 30 anos não tenham que ser revelados os ‘desaparecidos pela Covid-19’”, completa.
“A Sesai diz que não somos indígenas. No atestado de óbito, colocam que somos pardos, mas somos indígenas, Kokama! Não precisamos do papel do branco para sermos reconhecidos como Kokama pelo nosso povo”, critica Milena Kokama, diretora da Federação Indígena do Povo Kokama.
Os indígenas que vivem em Manaus sofrem como ninguém com a situação caótica provocada pela epidemia no Amazonas. Eles sempre estiveram no fim da fila da assistência médica por causa das distâncias entre a periferia, onde moram, e as unidades de atendimento, além do preconceito e da ineficiência de políticas de prevenção em saúde. Agora, a situação agravou-se.
Em todo o Estado, só há leitos de UTI na capital e os sistemas hospitalar e funerário da cidade colapsaram há mais de um mês. O Dsei confirmou que pacientes que vieram à Manaus para tratar de outros problemas de saúde, na Casa de Apoio de Saúde do Índio (Casai) e em hospitais municipais ou estaduais, acabaram se contaminando. Alguns retornaram a seus locais de origem e transmitiram o vírus.
Há relatos de muitas pessoas morrendo em casa, após não conseguir atendimento. Há duas semanas, circulou nas redes sociais a imagem do professor e músico Aldenor Tikuna, que, após falecer com sintomas da doença em sua residência, teve que ser deixado por algumas horas no salão de uma igreja pela demora do serviço funerário. Entre as vítimas, também está o médico Cleubir Tikuna.
O Amazonas está na quinta posição entre as unidades da federação no número de mortos e casos, mas é o campeão em termos relativos. Estimativas da Fundação de Medicina Tropical de Manaus baseadas nos dados de enterros diários, no entanto, dão conta que a quantidade de óbitos no Estado pode ser até quase cinco vezes maior que o registrado oficialmente.
“Estou vendo meu povo morrendo. Sou líder e não consigo fazer nada. Enquanto o governo está preocupado com política e economia, vidas indígenas estão se perdendo”, lamenta Milena Kokama. Ela explica que, em Tabatinga, no noroeste do Estado, há três dias tentam remover um doente e não conseguem porque não há UTI aérea no município.
Por causa de desvantagens econômicas, sociais, de acesso à saúde e saneamento, além do modo de vida coletivo e da prevalência de doenças como hipertensão e outras infecções respiratórias, os povos indígenas podem ser considerados grupos de risco para a pandemia. Segundo os epidemiologistas, após o novo coronavírus entrar nessas comunidades, pode se espalhar de forma muito rápida e difícil de conter.
O movimento indígena avalia que falta prioridade ao governo federal para combater a epidemia entre as populações nativas, além de articulação entre a Sesai, o SUS, órgãos estaduais e municipais. Lideranças também relatam a falta de itens básicos nos Dseis, como luvas, álcool gel e máscaras (saiba mais).