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Rio Negro: pandemia de Covid-19 se agrava e chega à Terra Indígena Yanomami

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Embora tenha sido uma das primeiras a entrar em isolamento, a comunidade de Maturacá, na região do Pico da Neblina, registrou a primeira morte pelo novo coronavírus
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São Gabriel da Cachoeira (AM) já é uma das cidades mais atingidas pelo novo coronavírus. Em um mês (26/04-26/05), os casos confirmados da Covid-19 saltaram de dois para 929, uma alta de 46.350%, com o registro de 21 mortes. O aumento do número de casos se deve também à ampliação da testagem, feita pela secretaria municipal de Saúde de São Gabriel.

Desses óbitos, ao menos 12 (57%) são indígenas das etnias Baniwa, Baré, Tukano, Wanano, Desano, Piratapuia e Tariano. Além de atingir os moradores da área urbana, o novo coronavírus avança no território indígena.

Nesta segunda-feira (25/05) foi registrada a primeira morte dentro da Terra Yanomami, na comunidade de Maturacá. O óbito tinha sido registrado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) até o fechamento dessa matéria, mas foi confirmada pelos profissionais de saúde que atuam na região.



Conforme boletim epidemiológico da Sesai, um dia depois, na área do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN) há 25 casos confirmados, com três mortes. O Dsei-ARN atende a uma população de 28.858 indígenas que vivem em comunidades nos municípios de São Gabriel, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. Também de acordo com a Sesai, no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei Yanomami) há 43 casos confirmados, com uma morte, em comunidades do Amazonas e Roraima onde vivem 26.785 pessoas.

Lideranças acreditam que o número de contaminados deve ser bem maior que o apontado no boletim oficial da Sesai, já que o número de testes para a Covid-19 é reduzido. Por outro lado, crescem casos de pessoas com sintomas gripais. Algumas estão recorrendo a remédios caseiros para atenuar os sintomas.

Em Maturacá, a Covid-19 matou Flacido Yanomami, 68 anos, animador de festas tradicionais. A suspeita é que ele tenha se contaminado pelos chamados “toyoteiros”, motoristas fretados que não respeitam os bloqueios montados nas estradas para impedir a entrada em Terras Indígenas.
A morte de Flacido coincide com o aniversário de 28 anos da homologação do território e acontece um mês após a perda de um adolescente Yanomami de 15 anos, também vítima da Covid-19, que faleceu em Boa Vista (RR).

“Xawara”

Em abril, algumas famílias seguiram para dentro da floresta, na tentativa de se protegerem contra a “xawara”, como os Yanomami denominam as epidemias. Mas não teve jeito: a doença chegou ao território. Presidente da Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), José Mário Góes informou que uma equipe do Dsei chegou à comunidade na terça-feira (27) levando testes rápidos para a Covid-19.

Ele disse que havia pessoas com sintomas da doença em Maturacá, mas que só poderia falar sobre números após o resultado dos testes. “As pessoas estão se tratando com chá caseiro e outros remédios indígenas”, disse. Na comunidade vizinha de Nazaré, três casos já tinham sido confirmados.

Vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, com sede em Boa Vista (RR), Dario Kopenawa ressalta que um dos grandes vetores da Covid-19 entre os Yanomamis é a circulação ilegal de garimpeiros na TI.



Ele alerta que o cenário da doença entre seu povo, nos próximos meses, é imprevisível. “Isso é bastante grave. Morreu um senhor de 68 anos, então já entrou na Terra Yanomami e começaram as mortes. Não sabemos ainda como vai ser”, lamentou. Ele cobra reforço no atendimento médico e maior testagem para Covid-19 entre os indígenas.

Sete portas do contágio

Outra forma de contato com a doença é o que ele denomina de sete portas, que são as sete cidades com as quais os indígenas têm mais contato. No Amazonas estão São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. Já em Roraima são Caracaraí; Iracema, Mucajaí e Alto Alegre.

Com o pagamento do auxílio emergencial pelo Governo Federal, muitas pessoas se dirigiram a essas localidades para pegar o dinheiro e fazer compras. “A maioria nós bloqueamos e avisamos: não pode ir para a cidade para ir buscar essa doença. Tem muito parente cabeça dura. E muito homem branco cabeça dura também. Difícil bloquear”, desabafou.

Além do pagamento do auxílio emergencial, lideranças de associações indígenas do Alto Rio Negro indicam uma série de fatores que propiciaram o avanço da Covid-19 pelo território indígena, como a demora de ação por parte do poder público, costumes indígenas de vida em coletivo e o trânsito intenso entre as aldeias e cidades.

Em São Gabriel da Cachoeira, o pagamento do auxílio emergencial atraiu indígenas de vários pontos do Alto Rio Negro para a cidade de São Gabriel. A movimentação começou em 22 de abril, quando o município ainda não havia confirmado casos de contaminação pelo novo coronavírus, o que poderia dar a falsa impressão de segurança. Mas duas confirmações de contágio aconteceram logo em seguida, em 26 de abril. Ou seja, quem esteve na cidade para receber o auxílio enfrentou aglomerações em fila, aumentando a chance contrair a doença e levar para a aldeia no retorno para casa.

A prefeitura da cidade e Dsei, com apoio do Exército, montaram barreiras sanitárias para conter esse movimento. Ainda assim, não foi possível barrar totalmente a circulação.



Içana

A liderança indígena André Baniwa, vice-presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi), está em Manaus e acompanha de lá o avanço da pandemia em território indígena.

Com preocupação, ele relata que até o momento a doença já causou sete mortes de indígenas da etnia Baniwa.

“Estamos esperando passar um pouco para conversarmos com os parentes, homenagear essas pessoas”, afirmou. Só na comunidade de Tunuí Cachoeira foram duas mortes na semana passada.

A associação estima que 80% das comunidades do médio Içana já tenham casos da Covid-19 devido a relatos de pessoas apresentando sintomas.

Entre essas comunidades estão Boa Vista, Auxiliadora, Nazaré do Médio Içana, Ambauba, Castelo Branco, Belém, Tayaçu, Tunuí, São José do Médio Içana II, Warirambá (Cuiari); Santa Marta; Bela Vista; Tucumã Ripitá; Jandu Cachoeira; Mauá Cachoeira; Aracu Cachoeira; São José do Ayari; Xibaru e Foz do Miriti.

Na avaliação de André Baniwa, a busca do auxílio também foi determinante para o avanço da doença do Içana. Outro fator pode ter sido os encontros religiosos. A região é predominantemente evangélica, com promoção constante de estudos bíblicos. Como bastante difundido pelo Ministério da Saúde, o vírus é de alta transmissibilidade e qualquer tipo de aglomeração deve ser evitado.
Segundo o líder baniwa, no Içana os indígenas estão usando os remédios tradicionais, inclusive porque não há muito acompanhamento médico.

“O profissional da saúde vai à comunidade de helicóptero, faz o acompanhamento, e volta. Há poucas equipes em área. Se fosse possível, deveria ter equipes de saúde equipadas, com condição de viagem de bote, voadeira, com motor. Com medicamentos e proteção para médicos e enfermeiros. E agentes de saúde treinados na comunidade. Mas isso não está acontecendo. O governo quer o fim dos povos indígenas”, disse.

Iauaretê

No Distrito de Iauaretê já são cinco casos confirmados nas comunidades de São Miguel, Cruzeiro, Dom Bosco e Santa Maria. O primeiro paciente a ter a confirmação da Covid-19 foi tratado por equipe do Dsei-ARN e está curado. Os outros quatro estão estáveis e sendo monitorados.
“Essa pandemia está chegando ao interior. A maioria está se tratando com remédio caseiro. Em Iauaretê, achavam que era uma simples virose. Até que veio essa confirmação do primeiro caso”, contou a presidente da Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iauaretê (Amidi), Margarida Sodré Maia, da etnia Tukano.



Ela está em São Gabriel da Cachoeira, de onde acompanha a situação em sua comunidade. Por enquanto, não pode retornar ao distrito, pois há decreto municipal suspendendo o trânsito entre as aldeias e a cidade. “A tendência, a partir desses casos, é aumentar. E isso me deixa mais preocupada ainda porque já está sendo considerado como contaminação comunitária”, continuou.
A liderança aponta que o distrito tem um hospital, mas sem estrutura para atendimento adequado. A comunidade reivindica reforço na estrutura médica, aumento nas equipes de saúde e maior número de testes. “O Dsei sozinho não vai dar conta da demanda. No hospital, muitos profissionais são idosos, estão no grupo de risco”, alertou.

Margarida Maia preocupa-se com a situação da comunidade e de toda a região. Levando-se em conta apenas Iauaretê são 2.500 moradores. Mas a Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê (Coidi) abrange comunidades do Papuri, Médio e Alto Uaupés, Rio Japu e outros igarapés, com um total aproximado de cinco mil pessoas.

“A região da Coidi é de difícil acesso, com muitas cachoeiras. Pode ser que o Dsei não tenha condição de buscar os pacientes mais graves usando barcos. Mesmo se for de aeronave pode ter dificuldade”, disse.

Ela aponta uma preocupação especial com a etnia Hupd’ah, grupo vive em região de mais difícil acesso – muito em pequenos igarapés - e com comunicação ainda mais precária que outras comunidades. Caso a doença chegue até a etnia, o impacto pode ser bastante grave.

Referência hospitalar

Em caso de agravamento do quadro de saúde e necessidade de remoção para hospital, a maioria dos indígenas atendimentos pelo Dsei-ARN e parte daqueles sob responsabilidade do Dsei Yanomami devem ser conduzidos para São Gabriel da Cachoeira.

Mas a cidade tem apenas o Hospital de Guarnição do Exército (HGU), que já está com sua capacidade esgotada. Assim, se os indígenas das comunidades precisarem de remoção ao hospital, pode não haver vaga.

Uma das principais propostas do Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira é a implantação, em território indígena, de enfermarias de campanha, onde pessoas com problemas respiratórios leves possam receber atendimento. Essa medida pode reduzir a necessidade de remoção. Outro ponto reivindicado é a implantação de um hospital de campanha na cidade.

Na terça, uma equipe de sete pessoas dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) chegou à cidade para atuar no combate à Covid-19. As principais preocupações da organização humanitária são a saúde em Terra Indígena e a redução do ritmo de contágio da doença. Por meio de articulação do Instituto Socioambiental (ISA) e em sinergia com o Comitê de Crise da Covid-19, os especialistas do MSF irão traçar essa semana uma estratégia de ação em apoio às estruturas de saúde do município.



Reuniões com profissionais de saúde e lideranças indígenas acontecem até sexta, para que o MSF possa apoiar as estruturas, assim como os Expedicionários da Saúde (EDS), que também estão trabalhando em parceria com os Distritos na montagem das enfermarias avançadas, através de doações para a compra de concentradores e cilindros de oxigênio, além de outros insumos e equipamentos necessários.

É urgente também reparos nas pistas de pouso nas Terras Indígenas, para que o resgate dos pacientes graves possa ser realizado com agilidade.

Ana Amélia Hamdan, com colaboração de Juliana Radler
ISA
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