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Morreu na manhã de ontem (9) com suspeita de Covid-19 o cacique José Carlos Ferreira Arara, uma importante liderança da região. Zé Carlos, cacique da aldeia Guary Duan, na Terra Indígena Arara da Volta Grande, foi um importante parceiro na luta contra a hidrelétrica de Belo Monte e deixa um legado de resistência para os povos do Xingu.
Com dificuldade para respirar e cansaço, Zé Carlos foi removido de sua aldeia na segunda feira (8) para receber tratamento em Altamira, no Pará. Após buscar exames na rede privada seu quadro piorou rapidamente e teve que ser levado para o Hospital Geral de Altamira (HGA) já com bastante falta de ar, tosse forte e muita dor de cabeça. Sem vagas disponíveis na UTI do Hospital Regional Público da Transamazônica, não conseguiu ser transferido e faleceu por volta das 10 horas da manhã aos 41 anos. Com um quadro típico de Covid-19, o resultado do exame deve sair nos próximos dias.
Zé Carlos estava muito preocupado nas últimas semanas com andanças de indígenas de seu povo em vilas próximas à Terra Indígena com forte trânsito de garimpeiros ilegais e grandes áreas desmatadas. Chegou a endereçar uma carta ao Ministério Público Federal solicitando apoio na articulação de parceiros para conter essa movimentação.
Ele foi um guerreiro que reuniu seu povo e se articulou na luta com várias outras lideranças na região do Xingu contra a hidrelétrica de Belo Monte. A aldeia Terra Wangã, onde era o cacique na época, foi o ponto de encontro entre lideranças do Xingu e diversos aliados nacionais e internacionais na luta para manter vivo o rio Xingu. Lá estiveram o cacique Raoni e pesquisadores como Philip Fearnside, o saudoso Terence Turner e muitos outros. Parceiros como ISA, o Movimento Gota D'água, Movimento Xingu Vivo para Sempre, CIMI e Amazon Watch também estiveram juntos na aldeia em diversas ocasiões.
A morte de Zé Carlos é uma grande perda. Apesar de todo esforço de instituições governamentais e não governamentais, alertas das próprias lideranças e envios de cestas básicas e ferramentas para apoiar o isolamento social nas comunidades não foi possível conter a chegada do vírus nas aldeias. A Covid-19 é uma realidade no Xingu: já está na Volta Grande do Xingu, no Território Indígena do Xingu e nas Terras Indígenas Cachoeira Seca, Arara, Xipaya, Kuruaya, Trincheira Bacajá e Kayapó.
Estamos em uma fase diferente da briga contra a Covid-19, que é lidar com o luto enquanto a gente luta. E continuamos lutando para manter os que estão vivos, vivos e fortes.
Zé Carlos Arara, fez uma diferença grande na luta contra a hidrelétrica de Belo Monte. Em diversos momentos esteve junto com movimentos sociais e lideranças indígenas para alertar as autoridades sobre o desastre que seria Belo Monte para os povos do Xingu, o rio, a natureza e para a humanidade. “Deu uma aula para mim e para meu pai sobre os impactos esperados de Belo Monte nos peixes. Isso em 2010”, recordou Juarez Pezzuti, ecólogo, pesquisador da região e professor da UFPA.
O cacique recebeu em sua aldeia reuniões muito importantes com diversas lideranças das Terras Indígenas da região. Uma das que marcaram foi a que participou o diretor James Cameron, logo após o lançamento do filme “Avatar”.
Várias pessoas que estavam envolvidas na guerra contra Belo Monte acharam que a história do filme era justamente o que estava acontecendo no Xingu naquele momento, e que era preciso trazê-lo para cá! Esse pensamento se materializou a partir de um contato de Atossa Sotani, da Amazon Watch, com James Cameron, que o convidou para vir ao Xingu e se juntar na luta contra Belo Monte. Naquele momento precisávamos ganhar espaço internacional, já que no Brasil a decisão de construir a hidrelétrica já estava tomada pelo governo do PT, a despeito de todos os estudos e alertas para o desastre que seria para o Xingu e seus povos.
James Cameron voltou outras duas vezes, uma com o ator e ex-governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger e outra com uma equipe da Fox Films e os atores Joe Moore e Sigourney Weaver, quando lançaram o filme “Avatar” no Brasil. Ele ajudou também parte do financiamento de encontros, estudos e ações de comunicação.
Zé Carlos participou de diversos documentários e reportagens na época, como o "A margem do Xingu - vozes não consideradas" que ganhou o prêmio do júri no festival de Paulínia e o mini documentário “Message from Pandora”, produzido por James Cameron e que compõe uma edição especial do "Avatar". Em 2015, participou da primeira edição da “Canoada Bye Bye Xingu”, uma expedição que denuncia os impactos de Belo Monte.
Através desses encontros vieram jornalistas e vários outros apoiadores, o que ecoou a briga de Belo Monte pelo mundo. Foi uma luta incrível e Zé Carlos fez parte de um grupo de lideranças da região que brigou bravamente nesse período. Esse foi um capítulo dessa enorme luta para manter a vida no Xingu.
Belo Monte foi instalada e o ritmo mudou completamente na vida dessas populações. Um dos paredões da usina foi construídos bem próximo a TI Arara da Volta Grande, interrompendo a navegação entre a Volta Grande e Altamira, afetando profundamente o modo de vida dessas populações.
Ocorreram cisões e novas aldeias foram criadas. Muita confusão aconteceu com projetos produtivos que não se tornaram realidade e nem de longe substituíram o modo de vida perdido com a implantação da usina. Alcoolismo e outras doenças aumentaram. Além disso, a pressão de invasores cresceu, assim como a pressão para instalação de novos empreendimentos na região, como Belo Sun Mining.
A Norte Energia tem um passivo enorme com os povos do Xingu, especialmente com os Arara e Juruna da Volta Grande que perderam boa parte de suas águas, desviadas para gerar energia elétrica, esvaindo também boa parte da energia necessária para a vida. É urgente que essa energia seja recuperada para enfrentar a Covid-19 e para criar um futuro diferente do anterior a pandemia.