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Atenção

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Rio Negro combate Covid-19 com cooperação entre autoridades e sociedade civil

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Na contramão do cenário nacional, o município mais indígena do Brasil, no Amazonas, se apoia em aliança interinstitucional para evitar catástrofe humanitária
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Enquanto a TV exibe imagens de fogos de artifício atirados contra o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) na capital federal, em São Gabriel da Cachoeira (AM), município mais indígena do Brasil, militares, funcionários de organizações não governamentais, lideranças indígenas e funcionários públicos estão juntos em mais uma reunião do Comitê de Enfrentamento ao Covid-19, criado por decreto municipal logo após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia.

O encontro ocorre diariamente dentro de uma maloca rionegrina, a Casa do Saber da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e é coordenada pelo cacique Marivelton Barroso, do povo Baré, jovem presidente da Foirn, de 29 anos. Barroso tem sido um dos principais porta-vozes sobre a pandemia na região amazônica, sendo chamado para entrevista com Pedro Bial, e também para participar de lives com personalidades e representantes dos três poderes.



Essa aliança interinstitucional chama atenção em tempos de polarização. Quem chega ao município fronteiriço do Noroeste Amazônico logo parabeniza os membros do Comitê pela diversidade e trabalho em parceria. O que deveria ser regra numa sociedade democrática, acaba virando exceção em um país acometido por distúrbios de radicalismo, ataque às instituições e negacionismo científico terraplanista.

“Ver o ISA, o Greenpeace, a Funai, os militares, os indígenas, a Igreja Católica, os Médicos sem Fronteiras, o prefeito, o Dsei/Sesai e outros funcionários públicos sentados lado a lado trabalhando é algo louvável e surpreendente de ver nos dias atuais”, brincou o fotógrafo e documentarista amazonense, Christian Braga, que esteve em São Gabriel documentando os trabalhos do Comitê na semana passada.

Logo após cada encontro na Maloca, os participantes recebem a ata da reunião, que conta com pauta previamente pactuada pelo grupo de Whatsapp dos membros do Comitê – que inclui general, bispo, prefeito, cacique, ambientalistas, indigenistas, profissionais da saúde e professores. Além disso, diariamente, a população de São Gabriel recebe também pelo celular o boletim com informes do Comitê, que vão desde os decretos municipais com as medidas sanitárias tomadas, até informações sobre benefícios sociais, dicas de prevenção, doações recebidas pelo município e demais assuntos relacionados aos dados epidemiológicos na região.

Criado como medida para combater fake news, o boletim tornou-se uma ferramenta essencial para garantir informação de qualidade e dar transparência aos trabalhos do Comitê, uma vez que não existe imprensa sediada em São Gabriel. A esse informativo somam-se também os trabalhos dos comunicadores e mobilizadores indígenas da Rede Wayuri que produzem podcasts e circulam diariamente com carro de som pelas ruas da cidade levando informações nas línguas oficiais no município, como Baniwa, Tukano, Nheengatu e Português.

Até o Doutor Drauzio Varela já enviou áudios para circularem especialmente nesse carro com caixa de som estilo paredão. Como diz a jornalista Eliane Brum, “para refundar o Brasil é preciso perceber que as periferias são o centro”.

Mobilização e estratégia

Dia 26 de abril de 2020 os dois primeiros casos do novo coronavírus foram confirmados em São Gabriel da Cachoeira (AM).

Sem leitos de UTI — como todo o interior do Amazonas —, com apenas seis respiradores, nenhum médico intensivista e a usina de oxigênio quebrada no único hospital da cidade (HGU), o cenário no fim de abril era preocupante e levava a crer que a pandemia poderia ser devastadora para os 23 povos indígenas do Rio Negro.



Uma resposta rápida precisava ser dada e as equipes de saúde precisavam de apoio em suas necessidades urgentes — 90% da população é indígena e está distribuída em área urbana, periurbana e em 733 comunidades nas terras indígenas demarcadas.

“Para piorar, a capital, Manaus, estava com o sistema de saúde colapsado e enterrando pessoas em vala comum, com covas abertas por trator. A gente sabia que se precisasse de transferência para a capital a gente aqui do interior não ia achar leito. Nós estávamos realmente prevendo um cenário devastador para nossos parentes”, lembrou Barroso.

O trabalho estratégico de comunicação, articulação de parcerias, mobilização de recursos e pressão do poder público para dar respostas mais rápidas, claras e eficazes diante da crise, fez com que São Gabriel montasse uma estratégia de ação para a saúde indígena que hoje se expande para terras indígenas em outros estados do Brasil, como o Pará, Amapá, Mato Grosso e Roraima.




Com a parceria dos Expedicionários da Saúde, organização médica humanitária que atua em campanhas de saúde no Rio Negro e outras partes da Amazônia, foram criadas e implementadas as Unidades de Atenção Primeira Indígena (Uapis), como foram batizadas pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) as enfermarias de campanha idealizadas pelo EDS em parceria com o Dsei-ARN (Distrito Sanitário Especial Indígena) e posteriormente adotadas como política pública.

Quase dois meses depois da chegada da Covid-19 na região, os esforços de instituições membro do Comitê, como Foirn e ISA, conquistaram doações de cerca de R$ 800 mil para estruturar nove Uapis em parceria com o Dsei-ARN. Essas unidades são capazes de atender pacientes indígenas de baixa complexidade, tendo como principais equipamentos os concentradores e cilindros de oxigênio para estabilizar doentes de Covid-19 com problemas respiratórios.

“Cada Uapi custa cerca de R$ 70 mil, sendo que 25% do custo da estrutura é para a compra dos concentradores de oxigênio”, contou o chefe de operações do Expedicionários da Saúde, Luis Francisco de Macedo.

“Primeiro, o insumo mais importante é o EPI para a equipe de saúde. Fizemos, então, uma primeira doação com apoio logístico da FAB. Depois, como se trata de uma síndrome respiratória, verificamos a oferta do oxigênio, que não pode faltar”, explicou.

Ao fazer o levantamento, Macedo percebeu que haveria dificuldades no fornecimento de oxigênio no município, uma vez que o HGU estava com problemas em suas usinas de abastecimento, o que levava a unidade a depender dos cilindros de oxigênio vindos de Manaus, com logística dispendiosa e complexa. “Não teríamos como, no curto prazo, providenciar a usina de oxigênio ou trabalhar com o fornecimento de cilindros de oxigênio para as terras indígenas”, disse. A solução mais simples encontrada por Macedo foi o uso de concentradores de oxigênio, que são miniusinas facilmente transportáveis, inclusive para as terras indígenas. “Briguei por essa solução, para mostrar que era viável”, relatou.

Ele explica que era necessário estruturar um suporte em território indígena, para evitar um grande número de remoções para uma cidade onde o sistema de saúde já estava sobrecarregado. “É uma forma de segurar o paciente (na aldeia) porque se todos forem para a área urbana de São Gabriel, não encontrarão vagas no HGU”, afirmou. Além disso, pacientes de baixa e média complexidade podem ser atendidos dentro do seu próprio contexto cultural, tornando o tratamento menos traumático e cansativo para o paciente. O EDS, com apoio do ISA, Foirn e doadores do setor privado, adquiriu 110 concentradores de oxigênio que já estão em uso nas Uapis da área de atuação do Dsei Alto Rio Negro e uma em Maturacá, Terra Indígena Yanomami.

As unidades estão localizadas em sete comunidades indígenas estratégicas, considerando localização geográfica, estrutura já existente e densidade populacional. As comunidades são: Iauaretê, Taracuá, São Joaquim, Tunuí Cachoeira, Assunção do Içana e Pari-Cachoeira, na TI Alto Rio Negro, Cucuí, na TI Cué Cué Marabitanas, e Maturacá, na TI Yanomami, área do Dsei-Y. A área urbana também conta com uma Uapi: é o Centro de Referência Cachoeirinha dos Padres, em espaço cedido pela Diocese Católica. A ideia está sendo ampliada também para polos base localizados em Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro, municípios vizinhos e de atuação do Dsei-ARN.

Outro desafio que surgiu na montagem das Uapis foi quanto à energia, que não está disponível em alguns pontos estratégicos escolhidos, mas é necessário para o funcionamento dos concentradores de oxigênio. Para resolver o problema, o EDS, com apoio da Foirn, adquiriu geradores, que também já estão sendo entregues em São Gabriel da Cachoeira. Além disso, cada Uapi receberá dois cilindros de oxigênio para serem usados caso haja alguma emergência e a energia não funcione. A parte logística do plano conta com o apoio da FAB e do projeto Asas da Emergência, do Greenpeace, além dos voos da própria Sesai.



Toda a parte de recursos humanos para operação das Uapis vem do Dsei, único autorizado a atuar em terra indígena. O médico Guilherme Monção, do Dsei-ARN, participou ativamente da parceria EDS, ISA e Foirn e foi um dos idealizadores das Uapis. “Em cada comunidade as lideranças foram consultadas sobre a implantação das unidades em seus territórios. Apenas uma comunidade mostrou resistência, temendo que um número grande de infectados se concentrasse no local. Em todos os outros pontos, após as explicações do projeto serem dadas, houve aceitação. Querem saber o que estamos fazendo, querem entender. E sabem que é importante. Abraçaram a ideia”, contou.

Uma das aldeias visitadas pelo médico Guilherme Monção foi a de São Joaquim, que fica em área isolada, no Alto Rio Içana, e não registrou casos da Covid-19. Foi ele quem postou nas redes sociais, em 30 de maio, a imagem emocionante de dois indígenas carregando cilindros de oxigênio rumo à aldeia na fronteira com a Colômbia. “Eu fico muito feliz de ver tanta mobilização pelas comunidades indígenas. E esse equipamento vai ser decisivo para a vida de uma pessoa. Eu fico muito realizado com essa ação”, disse. A equipe do Dsei-ARN tem 18 médicos para atender a uma população de cerca de 28 mil indígenas.

“O grande legado desse momento tão desafiador que a gente está vivendo, está mais do que claro, são as parcerias. Sabemos que sozinhos não conseguiremos enfrentar a pandemia. É uma característica do ISA buscar fazer mais e melhor com muitas mãos. A gente atua com essa premissa”, comentou Carla Dias, antropóloga do ISA, que participou ativamente das mobilizações.

Pela sua localização estratégica e extensa área de fronteira com a Colômbia e a Venezuela, São Gabriel conta com 2,5 mil militares. Recém-chegado à região para comandar a Segunda Brigada de Infantaria de Selva, o general Alexandre Ribeiro de Mendonça, destaca a importância do Comitê Interinstitucional e a presença do Exército no enfrentamento à pandemia.

“Os militares brasileiros continuam protegendo e mantendo a soberania na região amazônica, sendo o principal ente do Estado brasileiro presente na área. Há que se ressaltar que pela característica da pandemia, a sinergia conseguida pela ação de diversos órgãos é imprescindível. Dessa forma, a criação do Comitê Municipal de Combate ao Covid-19, em São Gabriel da Cachoeira, tem aproveitado a capacidade de cada órgão participante e essa relação interinstitucional tem buscado um efeito catalisador na solução dos problemas. O mais importante dessa ação integrada é fazer com que a ajuda chegue até aqueles mais atingidos pela pandemia, principalmente, às comunidades indígenas da região da Cabeça do Cachorro”, enfatizou o general.



O primeiro balanço do número de atendimentos realizados pelas Uapis foi solicitado pelo ISA ao Dsei-ARN essa semana e será informado nos próximos dias. O último boletim epidemiológico divulgado nesta segunda-feira (15/06) registra 2.403 casos confirmados de Covid-19, com 2.149 pessoas recuperadas, 215 em monitoramento, oito pessoas internadas em estado grave e 31 óbitos, sendo as etnias Baré e Tukano as mais afetadas pelo vírus, incluindo os dados da área indígena e urbana. Das 23 etnias do rio Negro, 15 já registram casos positivos e dos 25 polos base do Dsei-ARN, 17 possuem notificações, o que equivale a cerca de 70% do território indígena do rio Negro com contaminação por Covid-19 confirmada.

Na área urbana do município foi promovida uma semana de testagem, com cerca de 3 mil testes rápidos realizados, no qual se apontou 68% de casos positivos, alguns já curados e fora do período de transmissão. Esse número colocou São Gabriel em primeiro lugar em casos confirmados de Covid-19 em municípios brasileiros com até 100 mil habitantes. Por um lado, o número reflete também um melhor controle por testagem.

As autoridades de saúde do município acreditam que o pico da doença já passou na parte urbana, tendo ocorrido em meados de maio, mas que o risco agora desloca-se para o interior, nas aldeias indígenas, onde o desafio logístico é imenso e precisa contar com uma ampliação urgente das equipes e dos mecanismos de resgate aéreo.

O desafio no momento é manter a população em isolamento social e continuar com as ações de prevenção, como uso obrigatório de máscara e cuidados redobrados com a higiene. Após o dia 23 deste mês a Secretaria de Saúde (Semsa) calcula poder avaliar os resultados da flexibilização do lockdown. “Precisamos continuar trabalhando para evitar a contaminação. O povo tá sem medo agora porque se projetavam centenas de óbitos na região, o que graças a Deus não ocorreu até o momento. Por isso, a Semsa e o Dsei precisam unir forças para evitar o pior”, comentou Ângelo Quintanilha, gestor de saúde coletiva da Semsa.

Médicos Sem Fronteiras na Amazônia

Além da estratégia das Uapis, uma equipe dos Médicos sem Fronteiras (MSF) está na cidade estruturando uma enfermaria com até 50 leitos para atendimento de casos moderados e intermediários da Covid-19, em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira.

Através da articulação do ISA e dos seus esforços em dar visibilidade à extrema vulnerabilidade dos povos indígenas da região, o MSF fez uma primeira visita ao município para um diagnóstico da situação em meados de maio.

Coordenador do MSF em São Gabriel da Cachoeira, Sasha Matthews destacou a parceria ISA, Foirn, prefeitura e EDS, que se mostraram abertos para que a organização humanitária implantasse uma estrutura médica em São Gabriel. “É uma operação conjunta”, define ele, que tem experiência em trabalhos com epidemias na África e na Índia, entre outras regiões.

Segundo Matthews, o MSF fez o levantamento sobre qual seria a melhor forma de atuação em São Gabriel e definiu pela estruturação de uma enfermaria, que está sendo instalada em prédio anteriormente ocupado pela Secretaria Municipal de Educação (Semed).

O secretário municipal de Saúde de São Gabriel, Fábio Sampaio informou que foi assinado termo de cooperação com o município para que o MSF pudesse estruturar a enfermaria. “O município tem sido receptivo às parcerias, tem aberto diálogo. As parcerias têm sido muito importantes para fortalecer o sistema de saúde como um todo e também para aumentar a cobertura de saúde, detecção e tratamento precoce dos pacientes. Essa rede de cuidados é muito importante”, diz.

Em São Gabriel, a equipe do MSF é composta por sete pessoas entre médicos, enfermeiros, pessoal de logística e administrador financeiro. A organização humanitária alugou uma sede própria e também está contratando pessoal na região para trabalhar no projeto.

Outra operação que o MSF já está se mobilizando para implantar em São Gabriel é a remoção de pacientes de alta complexidade para Manaus, sem precisar passar por São Gabriel da Cachoeira. Essa ação torna o socorro mais ágil e evita a sobrecarga do HGU, que não tem UTI e adaptou sua enfermaria para entubar pacientes graves. Para isso, o MSF está em contato, na capital, com o sistema responsável pelas transferências. “O caso moderado pode ficar grave rapidamente. Com a evacuação direta, sem passar pelo HGU, é uma etapa a menos nesse processo”, contou Matthews.

Por fim, o MSF irá atuar em conjunto com o ISA e a Rede Wayuri em ações de promoção à saúde, reforçando a comunicação criativa e intercultural para que as mensagens cheguem a todos. “Esse é um componente chave: melhorar mensagens de prevenção, de acordo com a realidade local. Para isso, serão usados todos os meios de comunicação disponíveis, como radiofonia, internet, rádio”, explicou.

E mais uma vez, o combate à Covid-19 demanda a união de forças e recursos.

Juliana Radler e Ana Amélia Handam
ISA
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