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Com esse texto, chega ao fim o desafio da Rainha Branca: pensar seis coisas impossíveis antes do café da manhã. No meu caso, pensar uma coisa impossível, que pode se materializar e transformar o futuro pós pandêmico em algo melhor, a cada semana. Registro aqui que não foi fácil e que a Rainha Branca tem absoluta razão, pensar em coisas impossíveis requer prática. Imaginar novas formas de estar no mundo, em meio às monoculturas da mente, requer criatividade e desapego.
A força de aceitar o desafio da Rainha Branca, comecei a pensar em coisas impossíveis antes durante e depois do café da manhã. Coisas simples, mas que no contexto que vivemos parecem, de fato, impossíveis. Percebi, nesse trajeto, também, que não estou sozinha, muitos cogitam ideias impossíveis que transformariam o mundo, se se tornassem possíveis.
Bruno Latour é um deles. Em um artigo ao jornal Le Monde, em março deste ano, ele desvela o imenso abismo que existe entre um Estado que afirma proteger seus cidadãos da vida e da morte na circunstância de uma infecção viral e outro que ousaria dizer que protege seus cidadãos da vida e da morte, porque mantém as condições de habitabilidade de todos os viventes de que as pessoas dependem. Ora, para tanto um governo teria que se comprometer em deixar as árvores de pé, proibir os agrotóxicos, deixar o ouro, o petróleo e o gás no subsolo, eliminar as culturas extensivas, acabar com as fazendas de produção de proteína animal, descobrir soluções para o descarte de plástico, assegurar que todos tenham o que comer e condições de realizar o que desejam e muitas outras coisas. Impossível? Não, mas parece…
Como transformar essas impossibilidades em possibilidades? Talvez a resposta esteja numa ideia impossível que pode ser tornar possível: a recusa ativa de quem tem o mundo a seu favor, de quem usufrui da exploração capitalista, de quem tem sua vida assegurada, de quem não é massacrado pelo colonialismo e pelo racismo nosso de cada dia. Usar seu privilégio para proteger os outros, para desmontar o sistema, para dizer não por quem não pode dizer nesse momento e nesse contexto. Recusar a continuidade da vida cotidiana diante dos assassinatos de pessoas negras, de índios, de crianças nas periferias das cidades, dos feminicídios.
Dizer não, não seguimos, não vamos trabalhar, não vamos comprar, não vamos viajar, não, nada, até que isso pare. Recusar a corrente da vida enquanto as florestas continuarem sendo destruídas, o Cerrado degradado, o mar poluído, os rios contaminados, os solos envenenados. Recusar a rotina, o dia a dia, enquanto nada for feito para desacelerar a crise climática, para garantir a mínimo para cada pessoa do planeta, para criar condições para a vida de todos.
Uma das revelações da pandemia é que as coisas podem ser diferentes, não são como são por falta de opção e sim por escolha. A combinação entre o ceticismo climático e o discurso conciliador do desenvolvimento sustentável criou a ilusão de que bastariam remendos e tapa-buracos na nossa forma predatória de estar no mundo e estaríamos prontos para seguir nessa toada de crescimento infinito. O infinito aqui se refere também ao espaço que separa os poucos beneficiados desse crescimento do resto da humanidade. Ao volume de destruição impingida a grande parte dos outros organismos com quem compartilhamos o planeta. Ao infinito descaso que os arautos de tal crescimento têm pelos que não são partícipes elegantes da globalização.
Agora, como se isso fosse uma descoberta recente, anuncia-se: há limites! O mundo não pode crescer infinitamente. Alguns já propõem modelos, onde pessoas e empresas aceitariam tais limites. Um exemplo é a cidade de Amsterdã que, inspirada em um modelo da economista Kate Raworth, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, pretende desenvolver uma nova economia pós-Covid 19, levando em conta os limites do planeta. A pergunta que emerge imediatamente é quem convenceria ou obrigaria pessoas, estados e empresas a atuar dentro de tais limites. Como seria possível evitar que empresas limitadas pelas novas políticas de Amsterdã não se mudem para Belo Horizonte, Maputo, Doha ou Nova Déli?
Seria preciso construir uma ética da inaceitabilidade. Mas não seguindo uma lógica desenhada pela geografia, ou seja, a naturalização de que há coisas que são inaceitáveis em Amsterdã mas podem ser aceitas facilmente aqui. Uma ética da inaceitabilidade deveria ter uma escala planetária. Um exemplo, ainda que não perfeito, de algo assim, é o trabalho escravo. Os defensores da escravidão no Brasil diziam que não era possível abolir essa prática abominável, mas, por fim, a escravidão foi abolida e hoje, apesar de haver ainda muitas pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão, essa se tornou moralmente inaceitável. A ideia impossível aqui é transformar um conjunto de práticas em inaceitáveis, catalisada pela recusa das pessoas em compactuar com elas.
Mas, quantos de nós, de fato, abrem mão de produtos, até mesmo supérfluos, como o chocolate e a baunilha, quando sabemos que são derivados de cadeias produtivas manchadas de sangue? Quantos de nós, mesmo com condições financeiras, consentem em pagar mais pela carne sem sofrimento animal? Quantos estão dispostos a mudar seu padrão de consumo, a se mobilizar contra a crise climática, a exigir programas de renda mínima, a usar seus privilégios para desmontar o racismo? Será que a maior dificuldade da recusa ativa reside no conformismo e na acomodação ou em um descaso semiconsciente que se traduz numa falta de solidariedade com os outros habitantes do planeta, humanos e não humanos?
É nesse momento, onde mais de um terço da humanidade está ou esteve em quarentena, onde há uma possibilidade de pesar as consequências de nossas ações, seja compreendendo as relações entre a pandemia e as formas com que lidamos com a natureza, seja enxergando, enfim, as tremendas desigualdades da nossa civilização, que obriga alguns a se expor demasiadamente aos riscos, para que outros se protejam, que deveríamos nos recusar a voltar a uma pretensa normalidade que faz com que os significados da palavra “normal" tenham que ser revisitados.
O conjunto de ideias impossíveis, articulado nesse exercício de atender ao desafio da Rainha Branca, poderia ser mobilizado para sustentar uma recusa à volta à “normalidade” e a construção da ética da inaceitabilidade. Usar a natureza e sua diversidade como inspiração até às últimas consequências, reformando nossos sistemas produtivos, entendendo como sistemas naturais descentralizados funcionam e examinando as soluções que espécies e ecossistemas engendram para lidar com seus problemas.
Isso forneceria soluções para muitos dilemas e alternativas para muitas das práticas que são inaceitáveis. Assumir a responsabilidade que cada um de nós, de fato possui, com o mundo e com os mais vulneráveis, encontrando dentro de si um cerne ético, pode nos dar fôlego e energia para a iniciar um processo de transformação em direção a um mundo mais solidário, que inclua todos seus habitantes. Isso inclui agir contra o racismo e o colonialismo, que tornam vidas descartáveis e naturalizam a necropolítica.
Não é possível que ajamos como Alice, que simplesmente acorda de um sonho vívido e conta à sua irmã suas aventuras. Não é possível que apenas voltemos à “normalidade" como quem sai de um sonho ou de um pesadelo e contemos, em algum futuro, aos nossos filhos e netos o que aconteceu na pandemia nossa de cada dia. Impossível mesmo é a ideia de que viveremos, no futuro, se futuro houver, a mesma vida que vivíamos antes, depois de ter vivido o impossível no país da pandemia.
Nas linhas finais do livro Alice através do espelho, Alice se pergunta quem sonhou aquela aventura, se ela mesma ou os personagens da história que sonharam com ela e com sua jornada pelas estranhas terras do outro lado do espelho. Quem será que pode sonhar com novos mundos e novas possibilidades? Nós mesmos ou deixaremos que os personagens dessa nossa jornada sonhem por nós?
Na jornada de Alice ao outro lado do espelho, ela se encontra com a Rainha Branca que a desafia a acreditar em algo impossível. Quando Alice diz que não se pode acreditar em coisas impossíveis, a Rainha contesta dizendo que o problema era a falta de prática de Alice e afirma, orgulhosa, que na idade da menina, algumas vezes chegou a acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã.
O desafio a que eu me lancei é imaginar seis coisas que parecem impossíveis mas que se colocadas em prática poderia fazer do futuro pós pandêmico algo melhor. Logo percebi que a Rainha Branca tinha razão, não temos o hábito de pensar em coisas impossíveis, estamos de tal maneira mergulhados nessa nossa forma de viver que pensar em outros mundo possíveis já é quase uma impossibilidade. Assim, que o desafio é imenso. Recomendo que vocês também se exercitem, mas não antes do café da manhã, para evitar o risco de morrer de fome. Só assim poderemos criar alternativas. Aqui está o texto que deu origem ao desafio: Alice no país da pandemia.
Esse é o sexto e último texto desse desafio. Abaixo um pequeno resumo das ideias impossíveis que tive e sobre as quais escrevi com o link para os textos:
Coisa impossível 1: levar a inspiração da natureza até as últimas consequências, tanto na diversidade que compõe o mundo, como nas soluções que ela encontra para os problemas que se colocam. Inspiração até as últimas consequências.
Coisa impossível 2: assumir as responsabilidades do que fazemos, como humanidade, pensando nas dimensões da responsabilidade do mundo e da responsabilidade com o mais frágil. Responsabilidade do outro lado do espelho.
Coisa impossível 3: entender que com esse sistema de produção de alimentos, que guarda dentro de si tanta destruição, viveremos num mundo onde eventos imprevisíveis epidemiológicos e climáticos se sucederão com mais frequência e tomar uma atitude de recusa diante de seus produtos. Sementes da morte.
Coisa impossível 4: resistir e desmontar o racismo que naturaliza o genocídio e o etnocídio e que nos leva a perder, como humanidade, importantes conhecimentos para revisitarmos nosso lugar no planeta. Sobre becos e fissuras.
Coisa impossível 5: resgatar o potencial transformador do movimento ambientalista. Sabemos para onde vamos?