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Desde a chegada do novo coronavírus no Brasil, o país experienciou conflitos entre as recomendações da ciência e de organizações sanitárias e as medidas do governo federal. A relutância no enfrentamento da pandemia envolveu, até agosto, a saída de dois ministros da saúde, três meses com um ministro interino com trajetória não compatível com a Saúde, baixa transparência dos dados e vetos presidenciais a medidas legais de prevenção e disseminação da Covid-19 junto aos povos indígenas, quilombolas, e comunidades tradicionais. Até 24 de agosto, mais de 3,5 milhões de casos e 114 mil mortes pelo novo coronavírus foram computadas oficialmente no Brasil, de acordo com com o dado oficial do Ministério da Saúde, desconsiderando as sabidas subnotificações.
Se o contexto é complexo em todo o território, diante das características da doença e da negligência do governo federal, o impacto sobre os povos tradicionais é ainda mais drástico. Essas comunidades, já historicamente pressionadas e marginalizadas, estão mais uma vez vulneráveis e sofrem com os impactos negativos da pandemia e da negligência do Estado. Diversos estudos têm sido divulgados no intuito de alertar níveis de atenção sobre a gravidade e dispersão da doença, e como essas informações podem subsidiar planos de ação. Políticas de transparência e publicização de dados dos órgãos governamentais, especialmente em um momento como esse, são extremamente importantes no sentido de fornecer dados para a pesquisa e planos de ação.
Dessa maneira, fazer a previsão de cenários possíveis que a pandemia do novo coronavírus pode alcançar no caso dessas populações é urgente e constitui importante instrumento para adequação de estratégias e políticas públicas. Foi nesse contexto que o Instituto Socioambiental se propôs a examinar as dimensões da Covid-19 nas Unidades de Conservação (UC) no Brasil. Foram estudadas as 84 UCs de uso sustentável com famílias residentes cadastradas pelo ICMBio, das quais 80 têm o número de famílias contabilizado e as outras 4 apresentam uma estimativa. Nessas UCs há pelo menos 75.544 famílias residentes, o que considerando a média do número de pessoas por família nas UCs federais brasileiras, totaliza 377.720 pessoas residentes. O órgão não disponibilizou informações sobre residentes em UCs de proteção integral.
O mapa abaixo ilustra a distribuição espacial da vulnerabilidade ao novo coronavírus nas UCs federais com comunidades residentes confirmadas pelo ICMBio. O modelo de vulnerabilidade à Covid-19 das comunidades residentes nas UCs apresenta um índice no qual os valores se situam entre 0 a 1, sendo que quanto mais próximo de 1, maior grau de vulnerabilidade da comunidade.
Apesar de consideradas isoladas, as comunidades tradicionais residentes nas UCs estão conectadas às áreas urbanas através da rede viária e hidrográfica da região, mantendo vínculos econômicos e de acesso a serviços essenciais. Esse fluxo, aliado à falta de infraestrutura de saúde básica adequada tornam as comunidades das UCs de uso sustentável suscetíveis à Covid-19.
A vulnerabilidade das populações tradicionais à Covid-19 pode ser ainda mais intensificada em decorrência da paralisação de atividades econômicas, da desinformação, do encarecimento dos preços dos alimentos e da falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para redução do contágio.
Na Amazônia, especialmente na região Norte, a liberação precoce das atividades econômicas, além da histórica desigualdade regional e a maior distância a ser percorrida até um hospital tem feito a população desta região sofrer com a pandemia. Só no Norte são 2.757 casos de Covid-19 a cada cem mil habitantes, o que representa uma taxa 59,92% maior do que a média nacional e 91,86% maior do que a região mais populosa do País, Sudeste. O Estado do Amazonas, por exemplo, o maior estado brasileiro, possui 59,6% de seu território destinado a áreas protegidas e apresentou uma escalada de casos da Covid-19, especialmente em abril, e não possuía UTIs suficientes de acordo com os parâmetros da Organização Mundial para Saúde.
Roraima, segundo dados do CONASS, ocupa o 1º lugar em termos de maior mortalidade por conta da Covid-19 no país, com uma métrica de 95,6 mortes a cada cem mil habitantes. Seguido pelo Amazonas, em 4º lugar, cuja mortalidade é de 85,8 a cada cem mil habitantes. Outros estados da Amazônia, como Amapá (74,5), Mato grosso (72,0), Pará (70,3), Acre (67,8) e Rondônia (59,7), também apresentam uma proporção de mortes pelo novo coronavírus maior que a média brasileira, de 54,4 mortes por cem mil habitantes.
Essa situação alerta ao risco que as populações dessas UC enfrentam para manutenção de sua cultura e vida. Conota, ainda, a escassa implantação de medidas efetivas de distanciamento, somada à alta circulação do vírus, que culmina na perda de muitas vidas humanas. Em termos da disseminação da Covid-19 nas UCs, o estudo projetou 3 cenários de contaminação. Caso cada uma das 84 UCs com pessoas residentes apresentem ao menos um caso inicial, o número de pessoas infectadas simultaneamente pelo novo coronavírus no cenário mais precavido poderia chegar a 4.709. Em um cenário mais drástico e de menores medidas protetivas, 142.065 pessoas poderiam vir a se contaminar ao mesmo tempo. O número de pessoas que poderiam se infectar com o novo coronavírus nas UCs poderia ser ainda maior, já que há UCs com famílias sem esse registro do ICMBio, como é o caso do PARNA do Jaú, que sobrepõe-se ao Quilombo Tambor.
Dentre as 84 UCs com registro do ICMBio, 11 apresentam sobreposição com 14 Terras Indígenas e 1 apresenta sobreposição com um Quilombo, e 51 apresentam registro de pressões e ameaças no Sistema de Áreas Protegidas (SisArp) do ISA, com maior incidência de madeireiros. Estudos sobre o comportamento de madeireiros e garimpeiros, que transitam por cidades e áreas remotas na floresta, em um movimento pendular, caracterizaram padrões espaciais de transmissão de doenças como a malária. Infecções e mortes relacionadas à malária foram facilitadas pela implementação de atividades de mineração ilegal de ouro e extração de madeira no sul do Estado do Pará, aumentando drasticamente a população de áreas remotas sem infraestrutura de saúde. Dessa forma, tais condições podem aumentar a intensidade de transmissão da Covid-19 nas UCs.
Acessando os dados de desmatamento consolidados para o ano de 2019 (MAPBIOMAS), é possível, ainda, verificar que parte das UCs mais vulneráveis figuram também como as mais impactadas pelo desmatamento, como é o caso da RESEX Chico Mendes. Isso mostra que as pressões e ameaças nessas áreas protegidas são múltiplas e impactam negativamente na manutenção de sua sociobiodiversidade. A pandemia configura-se como mais uma dessas pressões e ameaças especialmente à sociodiversidade local.
Além da perda de vegetação nativa, há também outras pressões e ameaças, que incidem não só sobre a biodiversidade, mas sobre as comunidades associadas a essas áreas protegidas. Um estudo na TI Yanomami mostrou o potencial de impacto da presença de garimpeiros na sobrevivência de seus habitantes. As comunidades próximas das invasões garimpeiras são mais vulneráveis ao contágio por conta da circulação dos garimpeiros. Muitos garimpeiros recorrem às aldeias para trocar alimentos ou aliciar trabalhadores indígenas. O mesmo pode ocorrer com outras comunidades.
Os resultados reiteram a necessidade de políticas públicas que atendam também a essas comunidades, fazendo cumprir o acesso a seus direitos e protegendo seus territórios de invasões e outras pressões, que comprometem a saúde dessas pessoas, além de implicarem em sabidos impactos socioecológicos.
* Para acessar a versão completa do estudo clique aqui.