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“O que eu quero pro futuro é que isso continue preservado. Não só para os índios mas para a população do entorno, que é beneficiada pela floresta”, afirmou Rieli Franciscato. No vídeo, gravado em maio de 2018, ele e seus colegas observam a floresta da Serra da Porta, na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia.
Desde a década de 1980, Rieli trabalhava para proteger esse território e garantir a existência dos povos indígenas isolados. São povos que rejeitaram o contato com os brancos e mesmo com outros povos indígenas. Eles precisam da floresta preservada. Dela, retiram tudo o que precisam para viver.
Nesta quarta-feira (9/9), porém, a morte engoliu palavras. Rieli foi flechado no peito fazendo o que fez durante toda a vida: buscava protegê-los. O incidente ocorreu no município de Seringueiras (RO), que tem área sobreposta à TI Uru-Eu-Wau-Wau, a cerca de 560 quilômetros da capital Porto Velho.
Mateiro experiente, avesso a holofotes, o sertanista era discreto e realizava seu trabalho com afinco. Liderou grandes expedições para encontrar vestígios da presença de povos isolados, como a realizada em 2009 no Vale do Javari pela Funai em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI).
Rejeitava os desembarques nas cidades durante o percurso. Caminhava na mata fechada, GPS na mão, feliz por estar na floresta.
No ano seguinte, 2010, assumiria a Frente de Proteção Etnoambiental da Fundação Nacional do Índio (Funai) na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, onde trabalhou até sua morte, consequência direta do contexto político e do aumento de invasões.
Abalados, indigenistas e indígenas parceiros de Rieli Franciscato responderam que precisavam, antes de falar sobre a trajetória do sertanista, conter o choro.
“Ele foi morto pelas pessoas não se conscientizarem. Todas vez que um isolado chegava nas bordas, a população local soltava cachorros, xingava”, afirma Ricardo Ossak, da Comissão Pastoral da Terra e que fazia expedições com o sertanista. “O Rieli soube que os isolados haviam aparecido e foi lá para ver. Os indígenas não sabem quem é amigo, quem é inimigo”, continuou.
Um vídeo, publicado pelo jornal Folha de S.Paulo, mostra que horas antes do incidente um morador de Seringueiras gritava para um grupo de isolados, chamando-os de “cambada de vagabundos” e “sem-vergonha”.
Existem cinco registros (três confirmados e duas informações) de povos indígenas isolados na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
“O Rieli passou 30 anos da da vida dele fazendo a defesa dos índios isolados. É superimportante nesse momento que a gente entenda isso e que a gente lute para que fique claro o que está acontecendo no Brasil”, afirma Ivaneide Bandeira, da organização Kanindé.
Franciscato, ao lado de outros sertanistas históricos como Jair Candor, Altair Algayer e Antenor Vaz, implementou a política do não-contato com povos isolados no Brasil. Nessa nova política, o Estado, por meio da Funai, garantiria o território desses povos para manter seu modo de vida e preservar a decisão do não-contato. Mas essa política está ameaçada com a entrada do missionário Ricardo Lopes Dias para dirigir a Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC).
“Eu, Rieli e Altair desenvolvemos metodologia para definir o território desses povos a partir dos vestígios”, relatou Antenor Vaz.
“Ele basicamente sozinho era responsável pelos povos isolados”. Para ele, o Estado deve ser responsabilizado pela morte do sertanista.
“Este é o legado do Reli, é a defesa dos povos indígenas. O que aconteceu foi uma fatalidade e é bom que que isso fique muito claro para todos nós”, lamentou Bandeira, que trabalhou com o sertanista na demarcação de terras indígenas em Rondônia.
Franciscato considerava que se houvesse o contato com os os índios isolados haveria um genocídio na região. E sua morte representa o risco de extinção dos sertanistas brasileiros.
“Eu perdi um grande amigo e companheiro de mato. A morte do sertanista Rieli Franciscato, atingido por flecha em Rondônia, não poderia ocorrer em momento mais difícil para todos nós. Os isolados perderam uma das últimas garantias de sua existência. Ele foi um professor”, afirmou Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
A história de Rondônia, e de sua colonização violenta, se confunde com a história do próprio Rieli Franciscato. Nasceu no Paraná e, ainda criança, migrou para o Mato Grosso. Em 1985, mudou-se para Rondônia. “A maioria das pessoas que vinha para cá era em busca de terras”, explicou, em depoimento colhido em 2019 para o livro Cercos e Resistências: Povos Indígenas Isolados no Brasil. Veja a entrevista completa aqui.
Os assentados muitas vezes caíam no meio da floresta, distantes das cidades, com poucos recursos dos brancos. Foi o caso de Franciscato, que adquiriu uma terra próxima à Terra Indígena Rio Branco. “Era uma época de difícil acesso, e acabamos estabelecendo uma relação legal com os índios de lá e outros”, contou. “Essa relação foi se estreitando, a gente se ajudava porque era um local muito difícil. Tinha uma boa relação com eles e com as pessoas da Funai”.
Foi a partir dessa aproximação que, em 1988, Franciscato foi chamado para um trabalho de localização na área que se tornaria a Terra Indígena Massaco. “Fui chamado por conhecer bem a região e dominar bem a mata. Aí foi adaptar essa questão do rastreio de vestígios”.
A Terra Indígena Massaco foi a primeira terra demarcada sem estabelecer contato com os indígenas, respeitando o isolamento do grupo. “Foi um trabalho sistemático de levantamento, igarapé por igarapé, toda a área de ocupação do grupo”, disse.
Desde então, Franciscato passou por várias áreas da Funai - trabalhou com os contatados Uru-Eu-Wau-Wau e Amondawa, na Frente do Purus, no Vale do Javari - a segunda terra indígena demarcada sem estabelecer contato com os grupos. Em 2010, ele assumiu a Frente de Proteção na Uru-Eu-Wau-Wau.
O sertanista sempre reforçou o propósito de nunca estabelecer contato e evitar colocar os isolados numa situação de sobressalto, para que eles não se sintam ameaçados com a sua presença. “Tem que ter muita atenção, quando a gente vê o perfil a gente recua”, diz. “A gente está pensando em desenvolver uma forma de comunicação com eles, para que eles possam associar um vestígio nosso ao de pessoas que tratam eles com respeitos”, contou. “Desenvolvendo algumas formas de comunicação com eles, para dar tranquilidade quando eles veem nossos vestígios”.
“Eu acho que a nossa sociedade ainda não está preparada para receber o índio no meio dessa sociedade tão perversa. Quem sabe um dia lá no futuro a gente possa estar preparado para receber esses povos”, concluiu.