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“Os mais velhos contaram para nós o que aconteceu, que tipo de destruição aconteceu no passado com a chegada das epidemias e como nosso povo descobriu estratégias para não se acabar”, conta Karin Yudja. Foi pensando nisso que os Yudja e outros povos do Território Indígena do Xingu (TIX), no Mato Grosso, se isolaram quando perceberam a chegada da Covid-19 nos territórios próximos, em março deste ano.
A alta mortalidade por doenças contagiosas não é novidade para os povos da floresta, que há muito tempo convivem com crises sanitárias. Mas o avanço do novo coronavírus assusta as comunidades, que viviam em relativo isolamento com contatos frequentes com os municípios do entorno. Já são ao menos 2.707 casos e 34 mortes em Terras Indígenas e Unidades de Conservação na bacia do Xingu, número que sobe para 54.986 casos e 1.012 óbitos nos municípios do entorno.
Assista ao vídeo sobre a importância do isolamento, com locução de Bela Gil
Ainda em março, os Yudja traçaram seu próprio plano de isolamento para que a Covid-19 não chegasse em suas aldeias. Foram realizadas conversas com a comunidade e a partir de orientações dos mais velhos eles começaram a abrir os acampamentos. Os indígenas pretendem retornar às suas aldeias somente quando não houver mais riscos de contágio.
“Descobrimos esse meio de nos prevenir, de se proteger da doença e de não ir para a cidade. Todos estão sabendo e estamos lutando, colocando na cabeça de todos, no coração, no pensamento, falando da importância da nossa proteção para proteção da própria natureza”, conta Karin.
Muitos povos indígenas têm memórias vivas de outras epidemias e de medidas usadas para combater as doenças, como se isolar no mato. “Isso não é algo novo, porque outras doenças como gripes comuns e sarampo, quando chegaram em comunidades isoladas e de recente contato fizeram grandes estragos. Os indígenas sabem essas estratégias”, conta o médico sanitarista Douglas Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Projeto Xingu.
Assim como os Yudja, os Ikpeng fizeram acampamentos no mato para evitar o contágio. Já foram construídos 14 acampamentos, e é para lá que os anciões das aldeias foram levados para ficarem longe do fluxo de circulação do vírus. Os indígenas restringiram seus deslocamentos apenas para as roças, garantindo a segurança alimentar com a colheita de alimentos durante esse período.
“Já morreu muito Ikpeng no passado e quem sobrevivia não conseguia enterrar as pessoas queridas. Quando essa pandemia chegou no TIX, houve uma reunião com as lideranças, pajés, agentes de saúde e professores. Decidimos que ninguém iria sair por um período de 30 a 60 dias para a cidade, e em seguida nos isolamos na mata, como os nossos mais velhos orientaram”, conta Kumare Ikpeng, coordenador técnico local da Funai (CTL) Pavuru.
Sem perspectiva de quebrar o isolamento, os Ikpeng estruturaram uma campanha de arrecadação de produtos para garantir a segurança alimentar, limpeza e higiene dos indígenas.
“Num primeiro momento, a notícia do isolamento dos Ikpeng até chega a preocupar, pois para nós, não indígenas, refugiar-se na floresta nos parece uma medida extrema”, comenta Marcus Schmidt, engenheiro florestal e doutorando do programa de pós-graduação em ciência ambiental.
Entretanto, a possibilidade de montar acampamentos na floresta, “é uma volta às origens, um reencontro com os antepassados, um momento de aprendizados e novas experiências”, comenta o pesquisador. “Temos ainda muito o que aprender com os povos da floresta, que em sua resiliência estão sempre encontrando estratégias de fortalecimento do seu modo de vida”, conta.
Os Khĩsêtjê, povo que vive na Terra Indígena Wawi, no TIX, também desenvolveram estratégias para garantir o isolamento. Winti Khĩsêtjê, coordenador técnico local da Funai (CTL) Wawi, conta que desde o início da pandemia seu povo não tem ido até os municípios do entorno e, junto com a associação, traçou um protocolo seguro para aquisição de itens de básicos de higiene e alimentação.
“Nos reunimos com a comunidade e decidimos reservar um recurso com a contribuição de cada um para que a nossa associação pudesse adquirir itens importantes para as aldeias durante o período da pandemia. Criamos a nossa própria cantina com protocolos de higienização. Dessa forma todos podem adquirir o que desejam sem precisar sair da aldeia”, explica Winti. As compras que chegam da cidade passam por um período de três dias de quarentena, e só depois de serem higienizadas são disponibilizadas na cantina.
A estratégia deu certo: até o momento não há nenhum caso positivo para Covid-19 nas aldeias Khĩsêtjê , que garantem que vão permanecer com o protocolo de isolamento até o fim da pandemia.
“A nossa associação foi fundada para proteger a nossa comunidade. É dessa forma que o povo Khĩsêtjê está enfrentando a pandemia do novo coronavírus, e esperamos que todos compreendam a importância do isolamento para evitar a circulação do vírus em nossas aldeias”.
A Associação Terra Indígena Xingu (Atix) lançou em abril uma campanha para garantir que iniciativas como essas dos Khĩsêtjê, e dos outros 15 povos que vivem no TIX, possam continuar em suas aldeias, se protegendo do avanço da pandemia do novo coronavírus.
O Dsei Xingu, Funai, ISA, Projeto Xingu da Unifesp, Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e Atix se organizaram no Grupo Interinstitucional de Enfrentamento a Covid-19 no TIX, e tem apoiado a produção de materiais de comunicação e desenvolvido estratégias conjuntas de saúde, a fim de tratar de forma adequada e frear o avanço da Covid-19 no Território Indígena do Xingu.
A alta mortalidade dos anciões coloca em risco a transmissão de conhecimentos que os mais velhos carregam. Essa é a principal preocupação de Yanama Kuikuro. Agente Indígena de Saúde (AIS) da aldeia Ipatse. “Para controlar o vírus isolamos as famílias que foram infectadas e cuidamos delas dentro de suas casas, de acordo com o plano de combate que traçamos. É assim que estamos vencendo a Covid-19”, relata Yanama.
Quando a Covid-19 chegou ao TIX, os Kuikuro organizaram um sistema de monitoramento diário, com informações sobre as saídas e entradas no território e construíram um espaço de isolamento aliado a ações de prevenção realizadas pelos AIS.
A atuação do cacique Afukaka Kuikuro também foi fundamental, pois houve o apoio imediato nas ações de prevenção. O chefe Kuikuro está presente a todas reuniões virtuais que acontecem semanalmente entre os indígenas e Pennywise Foundation, Peoples Palace, Projeto Xingu e os pesquisadores Bruna Franchetto, Carlos Fausto e Michael Heckenberger, mediando e apoiando a circulação de informações dentro da aldeia.
Parte da estratégia pensada com os Kuikuro é a prevenção. Em junho foi montada uma Unidade de Atenção Primária Indígena (UAPI) a na aldeia Ipatse para o atendimento da população indígena dentro do território. Ao todo já foram implementadas outras 12 UAPIs no TIX, espaços que acolhem pacientes com manifestações leves e moderadas da doença, que podem receber o tratamento mais próximos de suas comunidades e evitar o deslocamento para as cidades
“Faz diferença estar preparado, faz diferença ter o medicamento adequado em quantidade, faz diferença ter EPI, e faz diferença isolar!” afirma Carlos Fausto, professor de antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Até o momento não houve nenhum óbito de Covid-19 entre os Kuikuro.
A possibilidade de relacionar saberes diferentes aliados ao monitoramento de casos de Covid-19, garantiu que a visão Kuikuro pudesse ser a protagonista na estratégia de atenção e cuidado. Para os Kuikuro, o isolamento individual é perigoso, pois pessoa isolada está destinada a morrer se os parentes não estão perto dela. Junto com os AIS, caciques e parceiros, propuseram medidas de isolamento que conciliam essa visão às recomendações médicas: o isolamento é feito nas casas, que foram transformadas em uma “unidade pessoa”, onde famílias fazem o isolamento coletivamente, relata Fausto.
Outros saberes fundamentais dentro do processos de cuidado Kuikuro são os remédios tradicionais, considerados muito importantes durante recuperação de pacientes com a Covid-19, conta Bruna Franchetto, professora dos programas de pós-graduação em Antropologia Social e em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que acredita que os conhecimentos de cura tradicionais devem ser ainda mais fortalecidos aliados a outros tratamentos de controle do vírus.
É com a chamada “fica no beiradão”, que semanalmente as associações das reservas extrativistas da Terra do Meio produzem em parceria com a Rede Xingu + e o ISA, o áudio informativo do beiradão, que leva aos indígenas e ribeirinhos informações importantes sobre o avanço da Covid-19 na bacia do Xingu e sobre as ações para se proteger do novo coronavírus.
Nesse sentido a Rede de Cantinas tem sido fundamental para a proteção dos ribeirinhos e indígenas, sua segurança alimentar e a continuidade da produção. A Rede é uma articulação de 14 associações de moradores de territórios indígenas, tradicionais e da agricultura familiar, que promove a produção e comercialização de produtos dos povos da floresta. O trabalho com esses produtos como a castanha, o babaçu e a borracha é uma forma de assegurar a permanência dessas povos em suas aldeias e no beiradão.
Durante a pandemia, mais de 20 toneladas de alimentos, combustível e ferramentas foram enviados para abastecer as cantinas da Rede.
“Evitamos a necessidade de deslocamentos até a cidade e garantimos que os extrativistas pudessem continuar com suas produções no contexto da pandemia da Covid-19, por meio do abastecimento das cantinas, reitera o presidente da Associação dos Moradores da Resex Rio Iriri (Amoreri), Francisco de Assis.
Para incentivar a produção, parte dos produtos da floresta foram enviados para famílias em situação de vulnerabilidade social nas cidades do entorno e para a merenda escolar do município de Vitória de Xingu. [Saiba mais]
Para os Xipaya, da Terra Indígena Xipaya, no Pará, a Rede de Cantinas da Terra do Meio teve um papel fundamental na garantia do isolamento. As lideranças Xipaya optaram por doar os alimentos que tinham na cantina para evitar deslocamentos até Altamira e municípios do entorno. Segundo Mitã Xipaya, a decisão fez parte de uma estratégia maior, que envolveu, levar todos os indígenas que estavam na cidade para as suas aldeias.
“Fretamos embarcações para levar todos para a aldeia. Antes de chegar na aldeia, todos passaram por um período de 14 dias de isolamento em um casa que construímos especialmente para receber quem estava chegando da cidade. Convidamos os técnicos de saúde Xipaya que estavam vivendo na cidade a retornar para aldeia”, conta o jovem.
Quando o novo coronavírus chegou às comunidades de outras Terras Indígenas próximas, as aldeias Tukamã e Tukaya perceberam que seria necessário tomar medidas mais efetivas para evitar a circulação da Covid-19 entre os Xipaya.
“Decidimos fazer um isolamento total, combinamos com todas as aldeias que ninguém deveria sair. Fechamos nossas aldeias, ninguém sai e ninguém entra. Fizemos placas na entrada da aldeia avisando que ninguém seria recebido. Estabelecemos recomendações para a entrada da equipe de saúde e higienizamos tudo o que eles trazem na chegada. Adiamos nossos rituais e intercâmbios entre as comunidades, porque sabemos que seria muito arriscado”, explica Mitã. O esforço mostrou resultados, ainda não há casos de Covid-19 nas aldeias Tukamã e Tukaya.
A ações de enfrentamento à Covid-19 nos territórios do Xingu contam com o apoio da União Europeia, Rainforest Foundation Norway, Fundação Moore, Instituto Clima e Sociedade (iCS), Good Energies, Amazon Forest Fund (AFF) e WWF-Brasil.