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Ercolino Desana e os conhecimentos dos indígenas do Rio Negro contra a Covid-19

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Benzedor conta como benzimentos e tratamentos tradicionais convivem em harmonia no combate ao novo coronavírus em São Gabriel da Cachoeira
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Em novembro de 2019, o mundo ainda não sabia da existência da Covid-19. Mas naquele mês, seu Ercolino já sabia que algo de ruim vinha se aproximando. Ele sonhou com uma espécie de areia, que caía do ar e soterrava as pessoas. O sonho não era de todo ruim: nele aparecia seu avô, mostrando uma água que poderia ser usada contra a areia. O benzedor Ercolino Jorge Araújo Alves, de 60 anos, indígena da etnia Desana, vive em São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas. “A água significava o benzimento para mim”, diz ele, que vem sendo procurado para benzer pessoas durante a pandemia.



Foi nos antigos conhecimentos indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas, que seu Ercolino se amparou para fazer seus benzimentos. A varanda de sua casa, no Bairro Areal, ficou cheia de gente querendo proteção. “As pessoas diziam que estavam rezando para eu não adoecer e ajudá-las”, conta Ercolino. Ele chegou a atuar junto com médicos no atendimento a pacientes.

São Gabriel da Cachoeira é a cidade com maior concentração de população indígena do país. No município, há cerca de 45 mil habitantes, sendo 90% indígenas. Aproximadamente 27 mil pessoas vivem fora do núcleo urbano, em comunidades às margens do Rio Negro e afluentes. O município foi fortemente atingido pela Covid-19: até 15 de setembro eram 4.199 casos com 54 mortes. Mas os indígenas consideram que o número de mortes não foi maior devido ao uso de práticas tradicionais.

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Os dois primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus foram confirmados na cidade no final de abril. E, mesmo antes da chegada da doença à cidade, os povos já estavam usando e trocando informações sobre quais plantas usar e como prepará-las contra a Covid-19. O uso de chás, defumações e banhos foi reforçado dentro das casas. Essas práticas não dispensam os benzimentos.

Aos 13 anos, seu Ercolino decidiu que queria ser benzedor. Passou então a estudar com seu avô, três tios e um irmão. Se formou seis anos depois, fazendo muito jejum e usando o paricá, uma mistura feita com casca de árvore (normalmente da árvore paricá) semelhante ao rapé e que tem o poder de abrir a mente. Atualmente, seu Ercolino já tem bastante experiência e não precisa mais usar o paricá.

Ele atendeu pacientes indígenas ao lado de médicos na Unidade de Atenção Primária Indígena (UAPI) Cachoeirinha dos Padres, mantida em São Gabriel em ação entre Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN), Instituto Socioambiental (ISA), Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e Expedicionários da Saúde (EDS). “Primeiro o médico estranhou a minha presença. Depois viu que estava dando resultado”, relembra. As UAPIs são estruturas implementadas no território indígena para atender casos leves e moderados da Covid-19, oferecendo suporte de oxigênio e evitando remoções.

Seu Ercolino tem o apoio de sua esposa, Carmem Figueiredo Alves, da etnia Wanano. É ela quem prepara os chás que serão benzidos. Quando via a casa cheia durante os momentos mais críticos da pandemia, dona Carmem preocupava-se. Depois acabou ficando tranquila. “Não tinha para onde fugir”, diz. Todos os integrantes da família tiveram a Covid-19, mas ninguém apresentou quadro grave.



No início de setembro, na mesma varanda em que seus pacientes esperaram pelo benzimento, seu Ercolino contou um pouco sobre atuação dele na pandemia. Ficou emocionado e, por uns momentos, silenciou-se com lágrimas nos olhos para falar dos companheiros que perdeu para a doença: Higino Tenório (Tuyuka), Feliciano Lana (Desana), Laureano Cordeiro (Piratapuya) e Severiano Castilho (Desana) todos grandes conhecedores das tradições indígenas da região do Rio Negro.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Seu trabalho como benzedor foi muito procurado durante a pandemia?

Muito mesmo. Até com covid, o pessoal assentava nesse banco. E falavam “nós rezamos muito para o senhor não pegar esse covid, para nos ajudar a melhorar a nossa saúde.” Com o poder que pediram eu estou aqui ainda. Deus quis assim para mim.

Como a chegada da Covid-19 alterou seus benzimentos? O senhor teve que mudar sua forma de trabalhar por conta dessa doença nova?

Quem não conhece diz que é nova, mas já aconteceu disso. Na época muitos dos idosos foram embora. Até perdi o meu avô, grande pajé que era paricado em Cruz da Redenção [perto do Distrito de Iauaretê] antes que os padres viessem nesse lugar no Alto Rio Negro. Eu estava na Colômbia na época de 1968 [São Gabriel da Cachoeira fica na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela], no afluente do Igarapé Arara. Lá teve essa doença que o pessoal chama nova agora atualmente. Os sintomas eram os mesmos. O meu avô foi-se embora. História muito grande.

[A região é marcada por epidemias de doenças como coqueluche, sarampo e malária, que atingiram fortemente os povos indígenas.]

Como o senhor faz o benzimento?

O benzedor benze o remédio. Fazia de capim-santo e referia tudo através do capim-santo. Eu mencionei todas as plantas que o pessoal usou aqui no Rio Negro contra a Covid-19. Só uma matéria-prima é visível, o resto é invisível, mencionado pelo benzedor. O benzedor não tem algumas coisas. Pega alguma coisa do remédio para mencionar outra que não está usado. Na mente dele, ele menciona todas essas ervas. Pede à mãe natureza para, por meio desse remédio, poder proteger, poder cuidar. É assim que funciona o benzimento. Cada benzedor tem sua oração própria, específica para abrir a mente.

Eu por mim não posso pegar na matéria para poder benzer. Alguém tem que me ajudar para fazer esse trabalho. A minha esposa sempre me ajuda. Minha mulher é quem todo dia pega as plantas no quintal, faz o chá. O que sobra, joga fora. Trabalhamos juntos. Ela é maior lutadora que luta comigo pela saúde. Trabalho, na doença, na tristeza e alegria. Tudo a gente compartilha.

Tá vendo como é a vida de um benzedor? O benzedor não pode dizer: me dá que vou benzer. O próprio paciente vê o benzedor e pede: me ajude, me benze. A pessoa traz o material, o suco dela. Porque não fala que eu preparei e coloquei veneno. Não vai dizer nada, pois ela que prepara. Só fico na frente dela rezando.

Os doutores têm um remédio. Para saber o remédio, ele vai folheando. Para o benzedor, não. A gente pergunta para a pessoa, para o paciente, como ele está se sentindo. E o benzedor pensa: ‘é desse jeito que vou benzer’. O meu finado tio Venceslau me falava que antes de começar o benzimento mascava padu [coca] e fumava tabaco. Dizia que estava abrindo a mente dele. “Vou folhear meu livro da ciência”, dizia.

Não é só essa máscara que protege. O nosso corpo é cheio de furo. A proteção também precisa de defumação, quando invisivelmente o benzedor coloca essa máscara.

Contra a Covid-19 tem alguma substância diferente mencionada?

Tem uma coisa nova que puxei daqui do material que se usa, paricá do cigarro. O paricá o pajé coloca no nariz. Usa osso do gavião, do jaburu e do mutum para colocar o pó no nariz.

Com o paricá, o mundo vira a nossa cabeça, a gente sai do nosso corpo, mais do que bebida. O mundo cai como se fosse um campo. Caiu tudo. A gente vê do nascente ao poente, do leste ao oeste. Durante a covid não precisei do paricá. O meu corpo já estava protegido. O que mais puxei foi sobre limão, tangerina, laranja, limas e tudo isso aqui mencionado pelo benzedor. Uma coisa que a gente já vem benzendo se tem tosse é uirapixuna.

De onde veio o conhecimento que o senhor utilizou para fazer os benzimentos durante a pandemia?

Quando eu estava com 13 anos eu comecei a estudar a nossa tradição própria, que sou Desana Duhpotiro [pronuncia-se dipótiro e refere-se à sexta geração desse clã], que o pessoal chama. Aí eu fui lá interessado em estudar com meus avós. Foi passado para meus pais e depois pelo meu tio, outro tio... Então tenho cinco professores. Meu pai, três tios e meu irmão.

Até agora, o que se sabe é que a Covid-19 surgiu na China e está ligada ao consumo do morcego. O senhor relatou anteriormente sobre um conhecimento de casas de morcego. Como é isso?

Quando eu vi pelo jornal que essa doença veio dos morcegos, a minha cabeça funcionou. Os meus avôs me disseram que a casa do morcego tem a doença mais contagiosa, mais brava de tudo. Ninguém pode mexer nessa casa. Essa é a minha história. Eu “folheei” na minha cabeça sobre a época que eu estava estudando. Nessa época de 13, 14, 15, 16 e 17, até 19 anos. Aí eu terminei meu curso dos antepassados. Eu escutei dessa doença e já sabia como era benzimento. Já me ensinaram. Até agora ninguém passou muito mal aqui na minha casa. Eu benzi, protegi tudo, benzendo com água, com suco. Tudinho. Assim que foi.

As novas gerações se interessam por aprender as práticas de benzimento?

O benzedor é mais estudado, mais jejuado. Eu não era desse jeito no meu corpo. Era fininho na minha cintura. Eu estava comendo só maniuara [formiga]. Não comia comida quente, churrasco não comia. Enquanto estudava, tudo isso era jejum para ser o doutor.

Mas neste momento é mais difícil para os jovens. Agora as músicas eletrônicas estragam demais. Lá no interior eu aprendi tocando cariçu, tocando japurutu, tomando caxiri, mascando padu. Não me arrependo de ser doutor. Por outro lado, é mais fácil aprender agora com o benzedor. O celular já vai gravar o que eu estou falando. Mas ao invés de escutar o som e a música, pode escutar várias vezes o que o benzedor fala, vai repetindo e aprendendo.

Durante a pandemia o senhor atendeu na Unidade de Atendimento Primário Indígena da Cachoeirinha dos Padres (Uapi) em conjunto com os médicos do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (Dsei-ARN)?

Primeiro consultaram o Comitê [de Enfrentamento e Combate à Covid-19] para saber se eu podia ir lá atuar. Todos concordaram. Todo dia o médico vinha me buscar. Outro médico perguntava: 'o que ele vai fazer agora?'. Depois de três dias, ele foi reconhecendo o trabalho, vendo que também sou doutor na minha tradição. Por 15 dias eu trabalhei na Cachoeirinha dos Padres.

Eu benzi e dei dicas de como tomar o chá. Um velho já estava lá nas últimas, tinha 83 anos. Sobreviveu, já está por aí. Ele veio me agradecer. Quando cheguei lá, falou: “Já estou nas últimas”. Eu disse: “Não pense disso que vou te ajudar, vou segurando a sua vida.” Peguei água e o capim-santo que eu preparei e segurei. No outro dia, quando cheguei, ele disse que tinha melhorado. Eu uso o cigarro também. Cada grupo étnico tem doença diferente.

Na área dos médicos, eles agem da forma que aprenderam. Eu vou fazer do jeito que eu aprendi. Juntando duas peças nós vamos curar mais rápido. Quando a gente anda de mãos dadas, a sabedoria tradicional e a medicina ocidental, fica mais fácil curar.

O senhor está repassando seus conhecimentos?

Meu filho já é um benzedor tradicional. Quando ele não sabe, ele volta e pergunta. Dois meses atrás ele estava aqui. Ele curou muitos também dessa Covid-19, também lá no Papuri.

Para o senhor, o que está sendo mais marcante nessa pandemia?

Para mim o marcante, o mais emocionante, foi que perdi [silencia-se e chora] quatro companheiros meus. Seu Higino, seu Feliciano Lana, seu Laureano e seu Severiano Castilho. Grupo muito unido tratando desse benzimento, entrando de casa em casa, casas de transformações [lugares sagrados]. A gente se via discutindo. Esse me marcou a minha vida. Isso que me dói.

O senhor teve algum aviso sobre essa doença?

No meu sonho eu sonhei assim, antes desse covid vir para cá. Sonhei em novembro. Sonhei que vinha como se fosse no deserto, areia vinha caindo em cima da gente. Aí o meu avô apareceu na minha costa dizendo: 'pega essa água'. Tinha seis baldes atrás de mim. 'Joga essa água lá na areia, vai parar'. Dito e feito. Eu peguei no meu sonho e joguei na areia que estava soterrando as pessoas. Eu joguei e parou. Só que alguma coisa passou assim do lado. Acordei e pensei: agora acho que consegui. Vai passar tranquilo, não vai matar muita gente. Era essa doença do covid que vinha, soterrando e matando muita gente. Mas tinha uma solução. A água significava o benzimento para mim.

Ana Amélia Hamdan
ISA
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