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Nenhum. Nenhum único. Nada. E já é a segunda vez: na década passada, aconteceu algo semelhante. De 2010 até 2020, não conseguimos cumprir nenhuma das 20 metas globais para a conservação e para o uso sustentável da biodiversidade estabelecidas pela Convenção da Biodiversidade (CDB) (saiba mais no quadro ao final do artigo). As chamadas Metas de Aichi, uma referência à província japonesa onde foi realizada a reunião da convenção em 2010, abrangiam diversos domínios das nossas relações com a biodiversidade.
O fato de nada termos avançado, o que significa por si só que muito retrocedemos, mostra que nossas relações com a diversidade biológica continuam predatórias, irresponsáveis e inconsequentes. Predatórias porque os ambientes naturais continuam desaparecendo rapidamente, cada vez mais espécies estão ameaçadas e os US$ 500 bilhões de subsídios governamentais para atividades que prejudicam o meio ambiente persistem. Um levantamento recente da Forests and Finance, coalizão de ONGs que monitora financiamentos associados à destruição das florestas tropicais do mundo, mostrou que, ao invés de diminuir, o financiamento das commodities associadas ao desmatamento aumentou 40%, desde dezembro de 2015, data de assinatura do Acordo de Paris, tratado internacional sobre mudanças climáticas.
Seguimos irresponsáveis porque a perda de biodiversidade vai se materializar como uma chuva de bigornas sobre nós. Além de tudo que nem saberemos que vamos perder, porque sequer conhecemos, os serviços que a natureza nos concede, gentilmente, fazendo com que esse planeta seja um lugar convidativo para nossa espécie, estão se degradando junto com o desaparecimento da diversidade biológica. Apesar de ter apresentado uma tendência de queda mundial nos últimos anos, o desmatamento voltou a recrudescer. Com ele, não apenas as emissões de carbono aumentam, mas o fim da estabilidade climática precipita-se e as condições para a agricultura e a segurança alimentar se desmancham.
O plástico continua se acumulando. Já são 260 mil toneladas que poluem os oceanos, matando animais e degradando os ecossistemas marinhos. Mais de 60% dos recifes de coral estão ameaçados. As atividades predatórias na agricultura, na aquicultura e na exploração florestal continuam. O lixo eletrônico aumenta a cada dia, casado com o consumo que só cresce. Todos esses dados e muitos outros que mostram nossa irresponsabilidade estão no Global Biodiversity Outlook 5, um relatório lançado pela CDB acerca do estado e das perspectivas do cumprimento das Metas de Aichi na última década.
Continuamos inconsequentes porque nada fizemos e nada mudou, mesmo depois da amostra que a pandemia do coronavírus nos ofereceu do que pode ser um mundo com sucessivas emergências de surtos de doenças letais, um mundo imprevisível, um planeta hostil para a vida humana. Esse cenário é particularmente grave neste momento onde aproxima-se mais uma nova Conferência das Partes da CDB, nome que é dado para suas reuniões bienais, e tudo que se pretende propor para deter a perda de biodiversidade é mais do mesmo.
Duas décadas perdidas deveriam ser suficientes para mostrar que essas estratégias não funcionam. Além disso, temos que considerar também o novo momento que atravessamos. Nesses 28 anos da CDB, um dos tratados assinados na Rio-92, o mundo mudou bastante e o multilateralismo que deu origem às grandes convenções ambientais internacionais está em xeque. Se tais metas não puderam ser cumpridas em um ambiente ainda favorável, com o rumo que estamos tomando as possibilidades de sucesso de estratégias desse teor diminuem radicalmente. Ou seja, se não conseguimos cumprir nenhum objetivo em um cenário um pouco melhor, o que nos resta agora?
Sobram para nós duas opções, a meu ver. A primeira é fazer mais do mesmo e, paralelamente, nos preparamos para encarar nossos filhos e netos e assumir a responsabilidade de não termos conseguido manter o ambiente do planeta adequado para nossa espécie. A segunda é atacar as causas fundamentais da perda de biodiversidade e agir para transformar essa realidade. Por exemplo, não é possível que sigamos convertendo a floresta amazônica em plantações de soja e pasto, sem que essas atividades tenham que embutir no preço de seus produtos a destruição da biodiversidade, a poluição dos rios e dos solos, as emissões de carbono. Ou seja, nada vai mudar se continuarmos apoiando uma economia do despejamento, que transfere todos os seus danos para outros entes da sociedade e lucra com um produto barato que sai caro para todos os habitantes do planeta.
Trata-se, no fundo, de coragem: o que será mais difícil, olhar nos olhos do seu neto, que não pode sair da bolha onde vive, com medo do calor abissal, dos surtos de doenças mortais, dos eventos climáticos extremos, e dizer a ele que um dia nadamos nas cachoeiras, mergulhamos no mar, nos perdemos em trilhas na floresta e escalamos montanhas descuidadamente e que jogamos tudo isso fora? Ou será mais difícil mudar da economia do despejamento para a economia do cuidado para termos pelo menos mais uma chance, talvez a última?
Bom, fico por aqui, pois preciso começar a escrever um pedido de desculpas para meus futuros netos...
O que é biodiversidade?
Diversidade biológica ou biodiversidade é a variabilidade de organismos vivos
de todas as origens, compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres,
marinhos, outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que
fazem parte. Abarca, ainda, a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de
ecossistemas. A definição é da CDB.
O que é a Convenção da Biodiversidade (CDB)?
Assinada na Eco-92, a Convenção da Biodiversidade (CDB) é um um tratado internacional multilateral ratificado por mais de 180 países. O Brasil ratificou a CDB em 1994 e, a partir daí, a convenção passou a compor sua legislação. Ela possui um conjunto de artigos que fornece diretrizes para as políticas públicas nacionais, para a criação de instrumentos de conservação e uso sustentável da biodiversidade e para a implementação de mecanismos, por todos os setores da sociedade, de proteção à biodiversidade e aos serviços ecossistêmicos.
A convenção tem três grandes objetivos: conservar a biodiversidade, promover seu uso sustentável e repartir os benefícios derivados desse uso. A CDB criou um conjunto de metas a serem alcançadas pelos países participantes para a década passada, mas seu grau de implementação foi baixo e a perda de biodiversidade segue crescendo no mundo. Novas metas estão sendo preparadas para as próximas décadas.
A Convenção possui dois protocolos aos quais os membros podem aderir separadamente: o Protocolo de Cartagena sobre biossegurança e o Protocolo de Nagoia. Ambos, quando ratificados, passam a ter força de lei.