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Reportagem e edição: Oswaldo Braga de Souza
Texto atualizado às 15:15 em 27/10/2020
Representantes de órgãos federais acabaram refutando o discurso do presidente Jair Bolsonaro e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sobre o Fundo Amazônia e a crise do desmatamento e das queimadas, em audiência do Supremo Tribunal Federal (STF), ontem (26).
O diretor de Crédito e Garantia do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Petrônio Duarte Cançado, disse que os projetos apoiados pelo fundo são analisados e monitorados com rigor e que contribuíram para a contenção do desmatamento até 2018. O BNDES gerencia o mecanismo financeiro.
“Todos os projetos apresentados no âmbito do fundo e que foram apoiados no passado eles possuem indicadores e metas pactuados previamente. E, uma vez realizado o processo de desembolso, eles são avaliados sistematicamente”, afirmou. “Temos um apreço muito grande por medir a efetividade de todas as ações e divulgar todas as informações e os resultados aferidos ao longo do tempo”, acrescentou.
De acordo com Cançado, uma auditoria externa levantou evidências de que só as iniciativas financiadas para apoiar o Cadastro Ambiental Rural (CAR), entre 2014 e 2018, evitaram a destruição de 8,6 mil quilômetros quadrados de florestas, o equivalente a taxa de um ano inteiro de desmatamento e nove vezes a extensão do município de São Paulo.
Realizada na última sexta e ontem, a audiência reuniu informações para subsidiar o julgamento de uma ação que apura possível omissão e responsabilidade do governo na paralisação de novos financiamentos pelo fundo (saiba mais no quadro no fim da notícia). Reportagem do ISA revelou que quase R$ 3 bilhões estão parados no BNDES. Nos últimos anos, parte dos recursos vinha sendo usada para combater crimes ambientais e poderia ser aplicada com o mesmo fim neste ano. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) alega não ter verbas para isso.
Na sexta, sem apresentar provas, Salles repetiu que a maioria dos projetos apoiados tem impactos insignificantes e irregularidades. “Muitas [organizações não governamentais] com praticamente nenhum resultado. E mais: muitas com prestações de contas com extrema fragilidade."
Em abril de 2019, foi o ministro quem tomou decisões que levaram à suspensão da análise de novos projetos, mas, agora, ele voltou a culpar pelo problema os governos norueguês e alemão, principais doadores do mecanismo financeiro. Salles extinguiu os comitês técnico e orientador do fundo e tentou alterar suas regras sem avisar os dois países. O próprio BNDES reconheceu que as medidas implicaram quebra de contrato. Igualmente sem apresentar indícios consistentes, Salles já havia acusado de irregularidades organizações da sociedade civil beneficiadas com os recursos. Também no início do ano passado, chegou a anunciar a suspensão unilateral de todos os repasses federais da área ambiental para essas instituições, mas voltou atrás porque as regras contratuais não o permitiam. As medidas desencontradas e desinformações geraram uma crise diplomática. Os governo estrangeiros rejeitaram propostas de um novo desenho de gestão feitas pelo Brasil. O impasse provocou a interrupção da avaliação de 40 iniciativas, no valor de R$ 1,4 bilhão.
O Fundo Amazônia foi criado, em 2008, para financiar ações de governos, sociedade civil e instituições de pesquisa de combate ao desmatamento, conservação e fomento a atividades econômicas sustentáveis. Já foram aprovadas até hoje 103 iniciativas. As aprovadas até o fim de 2018 e ainda em vigência continuam sendo monitoradas e recebendo recursos.
Na sexta, na audiência, o representante do Conselho Nacional da Amazônia, embaixador Juliano Féres, reconheceu que o desmatamento está em ascensão, também contrariando o discurso de Bolsonaro.
“Infelizmente, as dificuldades encontradas no terreno, somadas à intensidade da pandemia do Covid-19, inviabilizaram a esperada inversão de tendência [do desmatamento]”, comentou. Ele assumiu que o problema coloca o país em posição desfavorável na negociação da reativação do Fundo Amazônia. Féres informou que as tratativas com noruegueses e alemães teriam sido retomadas, em setembro, com a discussão de um “documento de projeto” com o novo desenho da gestão.
O presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Eduardo Bim, também contradisse o discurso de Bolsonaro, que defendeu, no ano passado, que o Brasil não precisava do dinheiro da Alemanha para preservar a floresta. Bim ressaltou que o fundo tem “papel fundamental” para o órgão ambiental, informou que, desde 2014, ele já recebeu cerca de R$ 212 milhões e não disse mais nada. O gestor usou dois minutos dos 20 que tinha para falar.
Só neste ano, Salles anunciou duas vezes a paralisação do combate ao fogo e ao desflorestamento justificando uma suposta falta de verbas. Na primeira vez, em agosto, foi desmentido pelo vice-presidente, Hamilton Mourão. Na semana passada, após o Ministério da Economia prometer liberar recursos, o ministro de Meio Ambiente voltou atrás de novo. Ontem, disse que parte do orçamento para controlar as queimadas está retida por um erro da Secretaria de Tesouro Nacional.
Ontem, na audiência, o professor da UFMG Raoni Rajão informou que, até setembro, o Ibama havia gasto apenas 30% dos recursos autorizados para 2020. Em 2019, o índice teria sido de 55%. O pesquisador reforçou que decisões do governo - como a de suspender a oficialização de unidades de conservação e terras indígenas e os efeitos das multas ambientais, com um novo sistema de “conciliação” com os autuados - têm estimulado diretamente a destruição ambiental.
“As áreas que tiveram o maior salto do desmatamento, entre 2018 e 2019, foram exatamente as áreas, os municípios da Amazônia que tiveram a maior redução do comando e controle, maior redução dos autos de infração”, avaliou.
Rajão contestou a fala do diretor de Programas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Anaximandro Almeida, de que a titulação de terras reduz o desmatamento. Almeida tentou justificar o discurso do governo de que a regularização fundiária, por si só, vai reduzir a derrubada da floresta ao permitir a identificação dos donos de terra que cometem crimes ambientais. Conforme Rajão, o desmatamento em áreas tituladas seria 20% maior do que em áreas não tituladas, considerando a proporção bem menor das primeiras.
A especialista em políticas públicas do Observatório do Clima (OC) e ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, apontou que a suspensão dos novos financiamentos do Fundo Amazônia faz parte de uma “inação calculada” e uma “antipolítica ambiental” do governo.
“[A paralisação do fundo] é um crime que todos os responsáveis por essa inação deveriam responder. Não há explicação razoável para o desmonte do Fundo Amazônia”, criticou. Para ela, Salles não gosta de organizações governamentais e tenta interromper qualquer investimento público nessas instituições. “Criticou-se a composição do Cofa [conselho orientador], em essência, porque ele incluía controle social. Criticaram-se os projetos para sociedade civil de forma irresponsável, inclusive nomeando pessoas, sem prova de irregularidades”, condenou.
“A existência de problemas foi negada pelas embaixadas da Noruega e da Alemanha, que são os governos que são os principais doadores. A auditoria do TCU, já citada hoje, realizada por solicitação do Congresso Nacional, declarou não haver indícios de irregularidade na gestão do fundo. Mais do que isso: afirmou que o fundo vem cumprindo seus objetivos”, continuou.
“No caso da Fundo Amazônia, é importante constatar que, sob o comando pessoal do ministro Ricardo Salles, se implodiu a maior experiência de aplicação no mundo, reconhecidamente bem-sucedida, de pagamento por redução de desmatamento evitado”, complementou.
Ela adicionou que, enquanto isso, o governo perdeu protagonismo e adotou um “tom de chantagem” nas negociações ambientais internacionais. “Em alguns discursos de autoridades, não apenas do ministro Salles, o tom é de chantagem: ‘ou pagam ou liberaremos a escalada da degradação ambiental’, como se essa degradação ambiental não nos afetasse”, concluiu.
Araújo informou que o governo publicou, sem publicidade ou qualquer esclarecimento, um documento em substituição ao antigo Plano de Ação de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia (PPCDAM). "[Esse plano] não tem definição de metas, não tem cronograma, não tem indicadores e não tem formas de monitoramento. Esse plano não é um plano. Esse plano é parte do desmonte das políticas públicas ambientais promovido pelo atual governo”, criticou.
A audiência foi convocada pela ministra Rosa Weber no âmbito de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), de número 59, apresentada pela Rede, PT, PSol e PSB, em junho. Os partidos acusam a administração federal de omissão e de ser responsável pela suspensão da análise de novos projetos do Fundo Amazônia. Weber é a relatora do processo.
As legendas argumentam que o governo fere o Artigo 225 da Constituição, que estabelece o dever do Poder Público de proteger o meio ambiente. Elas pedem que o STF determine à União que avalie os projetos em fase de análise no prazo de 90 dias, que mantenha o funcionamento do fundo e não utilize seus recursos para outros fins.
Na audiência, secretários estaduais de Meio Ambiente da Amazônia, pesquisadores e organizações da sociedade civil pediram a retomada imediata da análise de novos projetos, sob pena dos índices de desmatamento aumentarem ainda mais. Alguns secretários defenderam que a avaliação seja reiniciada sob os antigos parâmetros de gestão, enquanto as negociações entre Brasil e governos estrangeiros acontecem.