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Riquezas do Rio Negro, alimentos indígenas chegam à merenda escolar

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Com articulação interinstitucional, valor das compras de produtos das comunidades disparou em 2020, beneficiando comunidades indígenas e estudantes da rede pública de São Gabriel da Cachoeira (AM)
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As riquezas das roças, rios, quintais e florestas dos povos indígenas do Rio Negro, reconhecidas como patrimônio imaterial do Brasil, estão começando a promover uma virada nutricional e de autoestima na merenda escolar de municípios do Amazonas.

Os resultados positivos são fruto do esforço interinstitucional da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa) e instituições dos governos federal, estadual e municipal, movimentos e lideranças indígenas e de comunidades tradicionais, e organizações da sociedade civil.

Criada em 2016, a Catrapoa, finalista do prêmio Innovare, elaborou uma nota técnica sobre alimentação escolar indígena, trabalhou na adequação dos editais, no mutirão de cadastramento de produtores e na elaboração de projetos de venda de produtos.

O que diz a lei

A lei federal 11.947/2009 obriga que Estados e municípios usem 30% do recurso do PNAE para a compra da produção da agricultura familiar em todo o país, com prioridade para assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas.

Caso não cumpra, o gestor pode responder por improbidade administrativa. Segundo dados de 2016 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), dos 47 municípios do Amazonas apenas 10 cumpriam a lei. Em 2018, com a atuação da articulação e da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), o número aumentou significativamente.

Saiba mais no Guia Prático para Alimentação Escolar Indígena.

O objetivo: o cumprimento da lei que obriga que Estados e municípios usem 30% dos recursos federais do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para a compra da produção da agricultura familiar, com prioridade para alimentos produzidos em assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas. (saiba mais no box).



“Temos apoiado esse trabalho de articulação para que os agricultores indígenas possam vender seus produtos via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e PNAE porque acreditamos que essas políticas podem contribuir muito para o desenvolvimento socioeconômico da região”, ressalta Nildo Fontes, do povo Tukano, diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).

“Vamos fortalecer esse processo para que mais agricultores indígenas se beneficiem desse trabalho também”, continua.

Assim, aos poucos, começam a sair de cena das despensas das escolas indígenas o arroz, o macarrão, o óleo de soja e os produtos ultraprocessados, como carnes enlatadas, biscoitos e refrescos em pó, contraindicados pelo próprio Ministério da Saúde, e passam a fazer parte das merendas os frutos da resistência e da cultura indígena rionegrina.

Em São Gabriel da Cachoeira, as aulas estão suspensas por conta da pandemia da Covid-19, mas a distribuição de alimentos foi mantida após decreto do governo federal e regras estabelecidas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação.

Em julho, a prefeitura apresentou o resultado da chamada pública para agricultura familiar que contemplou, ao todo, 152 produtoras e produtores de comunidades indígenas dos rios Negro, Tiquié, Içana, Xié, Uaupés e Ayari para fornecer alimentos para atendimento dos alunos da rede pública municipal de ensino.

O valor direcionado para compra dos produtos foi de aproximadamente R$ 1,7 milhão, 14 vezes superior ao aplicado no ano passado, e está em processo de liberação e acompanhamento.

Neste ano, por exemplo, a Associação Indígena da Etnia Tuyuka de Moradores de São Gabriel da Cachoeira (Aeitu) aumentou suas vendas via PNAE em relação a 2019.

“Durante a pandemia percebemos que as famílias receberam as cestas de alimentos e por isso houve um aumento dos pedidos”, conta Pastor Marques Lima, coordenador geral da associação e principal articulador dessas políticas públicas junto ao seu povo Tuyuka.

“Os resultados mostram que, com políticas públicas adequadas, os produtos da Amazônia têm um alto potencial para geração de renda para as populações rurais a partir das práticas agrícolas tradicionais e sustentáveis”, disse Natalia Pimenta, assessora do ISA.

Merenda escolar e eleições municipais

Com as eleições em vista, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) corre o risco de se enfraquecer ou perder a continuidade com a nova gestão, mas é também um momento crucial para a adesão de novos municípios à iniciativa.

A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), em parceria com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), elaborou um documento de apresentação do PNAE aos candidatos e candidatas às eleições de 2020 para todo o país.

O documento, além de explicar o funcionamento do PNAE, propõe ações para o fortalecimento e aperfeiçoamento da sua gestão, com ideias para políticas públicas que fomentem a alimentação escolar, o direito humano à alimentação adequada e a valorização do produtor local.

Ao final, candidatos podem assinar uma carta-compromisso com a iniciativa.

Clique para baixar.

Além da geração de renda, oferecer comida de qualidade para as crianças indígenas da região é um passo importante para a valorização e salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

“Onde tem aluno, onde tem escola, onde tem merenda, existe a possibilidade de venda da produção local. Não podemos deixar retroceder essa política pública. Mudar a lei do PNAE poderia simplesmente quebrar todo esse esquema”, afirmou Fernando Soave, procurador da República no Amazonas (MPF-AM) e coordenador da Catrapoa.

Segundo ele, o caminho é avançar no Amazonas e em outras regiões do país para sensibilizar os gestores e promover um apoio técnico de extensão rural diferenciada, que reconheça os cultivos tradicionais e garanta o acesso às compras públicas.

“Nesse contexto de pandemia, a compra de produtos indígenas para a alimentação escolar traz adequação ao contexto das comunidades, em que a produção é mais nutritiva, geralmente orgânica. Eu não vejo nenhum ponto negativo nessa solução”, disse.

A articulação para inserção de produtos da agricultura familiar na merenda escolar no Rio Negro conta com a participação do Ministério Público Federal, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Secretaria Municipal de Educação (SEMED) de São Gabriel da Cachoeira, do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (IDAM) e do Instituto Socioambiental, com apoio da União Europeia.

O que é o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro?

O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, conjunto de práticas e saberes milenares dos povos do Rio Negro, agricultores por excelência, foi reconhecido há 10 anos como patrimônio imaterial brasileiro pelo Iphan.

Estão catalogadas, ao todo, mais de 300 variedades de plantas cultivadas pelos 23 povos indígenas que vivem na região há milênios, além de 32 espécies de peixes comestíveis, conforme dossiê.

Fazem parte do sistema as técnicas de manejo dos espaços de cultivo (roça e quintais); do sistema alimentar; dos utensílios de processamento e armazenamento; e, por fim, da conformação de redes sociais de troca de sementes e plantas que se estende de Manaus, no Amazonas, a Mitu, na Amazônia Colombiana.

O cultivo da mandioca brava, por meio da técnica de queima, plantio e manejo de capoeiras (conhecido como coivara), é a base desse sistema, compartilhado pelos povos indígenas da região.

“Nosso sistema agrícola persiste porque é nossa cultura, é a cultura do povo do Rio Negro que não acaba do dia pra noite. Cultura não é programa de governo. O sistema agrícola é uma cultura do povo”, afirma Sandra Gomes, presidente da Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (Acimrn).



Roberto Almeida e Juliana Radler
ISA
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