Quilombolas do Vale do Ribeira (SP) lutam por representatividade nas eleições municipais

Lideranças quilombolas do Vale do Ribeira, em São Paulo, avaliam que há um crescimento inédito da participação quilombola nas eleições municipais da região, que engloba 22 municípios paulistas e 33 comunidades quilombolas. De acordo com a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), o aumento nas candidaturas às câmaras municipais também aconteceu em âmbito nacional.

No município de Eldorado (SP), Oriel Rodrigues (PT) é um dos dois únicos candidatos quilombolas a prefeito nos 5.570 municípios brasileiros. O outro é Vilmar Kalunga (PSB), que disputa em Cavalcante (GO). No total, o Brasil tem 19.343 candidaturas às prefeituras. A Conaq estima que há 16 milhões de quilombolas no Brasil, vivendo em cerca de 6,3 mil comunidades em todos os estados.

Eldorado é também a cidade em que Jair Bolsonaro (sem partido), que manifestou abertamente ideias racistas contra quilombolas do município em 2017, passou a infância e adolescência e onde até hoje vivem familiares do presidente. Na época, o movimento quilombola apresentou denúncia de racismo contra o então deputado federal, rejeitada no ano seguinte pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Bolsonaro, após ser eleito presidente, transferiu para o Ministério da Agricultura a atribuição de regularizar os territórios quilombolas e de opinar sobre o licenciamento ambiental de empreendimentos que os afetem, além de subordinar o Instituto de Colonização e Reforma Agrária à pasta. Para o movimento quilombola, as medidas visam enfraquecer direitos conquistados. Exemplo disso é a paralisação das titulações de territórios pelo governo federal.

“Tenho uma trajetória de vida forjada em movimento social. Todo o meu histórico de vida está relacionado à busca de políticas públicas para quilombos no país. O movimento local indicou o meu nome e eu aceitei ser o candidato representante desse povo”, disse Oriel Rodrigues. Ele participou do podcast do Instituto Socioambiental (ISA) Copiô, parente, onde expôs propostas, sua trajetória nos movimentos sociais, os desafios para uma gestão quilombola e a necessidade de aumentar a participação política das comunidades.

Conforme sublinha André Luiz Pereira de Moraes, do quilombo André Lopes, localizado entre os municípios de Iporanga e Eldorado, na estrutura administrativa do município é onde “começam as mudanças” e o acesso às políticas públicas “que nos dizem respeito no dia-a-dia”. Moraes foi candidato nas duas últimas eleições e acompanha de perto as candidaturas desse ano. Ele chama atenção para a desigualdade na competição com políticos tradicionais da região, “que muitas vezes estão com a máquina [política] na mão: é um processo longo de desconstrução”, lembrou.

Mudanças nas regras eleitorais, implementadas pelo TSE pela primeira vez em 2020, buscam diminuir a desigualdade de competição entre candidaturas negras e brancas por meio da divisão proporcional de recursos e do tempo de propaganda eleitoral. Levantamento do portal G1 mostra, no entanto, que a maioria dos partidos não segue as regras estabelecidas pelo tribunal.

"Enfrentar essas desigualdades é combater o racismo, e justamente por essa razão é uma tarefa de todos e todas que estão comprometidas com a construção de uma sociedade justa e solidária”, avaliou o assessor jurídico do ISA Fernando Prioste.

Desafios no Vale do Ribeira

O Vale do Ribeira concentra 33 das 50 comunidades quilombolas do estado de São Paulo. Levantamento da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE) indica que 4.602 quilombolas vivem na região. As comunidades estão localizados nos municípios de Barra do Turvo, Cananéia, Cajati, Eldorado, Iguape, Itaóca, Iporanga, Miracatu, Jacupiranga e Registro.

As populações do Vale também convivem com a dificuldade de acessar políticas públicas. Lideranças ouvidas pela reportagem relatam precariedade nas políticas e serviços de saúde, educação, saneamento e transporte, para citar alguns. As políticas para essas comunidades devem respeitar as especificidades da cultura quilombola - como é o caso da educação diferenciada, por exemplo. Representações próprias pode contribuir para o enfrentamento das questões. O panorama desigual motivou as propostas de candidatas e candidatos quilombolas às câmaras municipais da região.

“As candidaturas quilombolas se devem à falta de representatividade no contexto público. Isso contou muito para a gente ter nossas candidaturas próprias”, comentou Nany Furquin (PT), moradora da comunidade Pedro Cubas de Cima, no município de Eldorado, e candidata pela primeira vez em 2020. “A gente vê que as rendas dos municípios ficam na cidade, não vão para os bairros, não vão para as comunidades remanescentes de quilombos”, afirmou.

“Os municípios do Vale ainda esbarram na lógica do coronelismo. Precisamos ter alguém que nos represente, alguém a quem a gente tenha acesso, alguém que tenha uma ideia diferente da que já está aí”, defendeu Rodrigo Marinho Rodrigues da Silva, articulador da EAACONE e quilombola da comunidade de Ivaporunduva, em Eldorado. Segundo ele, o trabalho de discussão das representações quilombolas nos municípios e as conversas com pessoas interessadas em se candidatar começaram há cerca de dois anos, o que contribuiu para o aumento das candidaturas.

“A pluralidade das ideias e da construção de um Vale do Ribeira de bem viver depende da efetiva contribuição de quem chegou primeiro aqui, escravizado, e até hoje resiste, cultiva a terra e conserva a Mata Atlântica e saberes ancestrais de como cuidar dos municípios”, disse Raquel Pasinato, coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA. Ela ressalta a necessidade de implementação de um verdadeiro processo democrático, com participação de mulheres, negros, indígenas, quilombolas e a sociodiversidade.

Invisibilidade

Outro desafio quando se fala em candidaturas quilombolas é o mapeamento. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) permite a autoidentificação das candidatas e candidatos segundo a cor/raça branca, parda, negra, amarela e indígena. Não há, porém, a possibilidade de se identificar como quilombola.

A Conaq tenta suprir a lacuna por meio de monitoramento próprio feito pelas equipes estaduais. O levantamento indica um total de mais de 500 candidaturas quilombolas em 2020, sendo 350 candidatas e candidatos ligados diretamente à pauta política da Conaq, em todos os estados. Aqueles com mais participação quilombola nessas eleições são Pernambuco, Bahia, Maranhão e Minas Gerais, todos com mais de 40 candidaturas cada.

A Conaq estima um aumento de 45% em relação às eleições de 2016. Em Pernambuco, por exemplo, o número dobrou em quatro anos. “A gente vinha fazendo um trabalho interno na Conaq de incentivar nosso povo a se candidatar ou indicar pessoas nos territórios, nessa linha de marcar um posicionamento político, de mostrar que temos força política”, explicou Antônio João Mendes, do quilombo de Conceição das Crioulas, em Pernambuco, coordenador do levantamento.

Apesar da maior representatividade, a avaliação é a de que ela poderia ser melhor. Silva e Furquin afirmam que os trabalhos de base continuarão nos municípios do Vale do Ribeira, com o intuito de envolver a juventude, as mulheres e demais interessados em participar das próximas eleições. “Talvez a eleição deste ano mude para sempre o nosso cenário, para que a gente tenha mais força e participação das comunidades”, concluiu Nany Furquin.