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Tragédia anunciada: contaminações por Covid-19 disparam na Terra Yanomami

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Lideranças Yanomami e Ye'kwana e rede de pesquisadores lançam relatório inédito que detalha o avanço da pandemia no território indígena e indica que um em cada três Yanomami já pode ter sido contaminado pelo novo coronavírus
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“Por dentro, não estamos bem. Estamos todos adoecidos. Nossa floresta adoeceu”. O relato de uma Yanomami da região de Kayanau, em Roraima, fala de um desastre anunciado. Quase oito meses após a primeira morte por Covid-19 entre os Yanomami, o cenário sanitário na Terra Indígena Yanomami é de total descontrole. De acordo com o relatório Xawara: rastros da Covid-19 na Terra Indígena Yanomami e a omissão do Estado, lançado nesta quinta-feira (19/11) e elaborado pela Rede Pró-Yanomami e Ye'kwana e pelo Fórum de Lideranças da TIY, o número de casos confirmados no território saltou de 335 para 1.202 entre agosto e outubro — um aumento de mais de 250% de casos nos últimos três meses. Segundo o monitoramento da Rede Pró-YY, até o final de outubro já se somaram 23 óbitos por Covid-19, entre confirmados e suspeitos.



Já existem casos confirmados em 23 das 37 regiões da terra indígena, localizada entre os estados de Roraima e Amazonas e lar de cerca de 26,7 mil indígenas, incluindo grupos isolados — ainda mais vulneráveis a doenças.

O relatório aponta que 10.000 pessoas, mais de um terço da população total, já tenham sido expostas ao vírus. Desde junho, o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana pede pela retirada dos milhares de garimpeiros ilegais que atuam no território e são vetores da doença. A campanha #ForaGarimpoForaCovid, que tem o apoio de aliados brasileiros e internacionais, já conta com mais de 410 mil assinaturas em apoio à luta indígena.

A divulgação desses novos números representa o capítulo mais recente de uma história de dimensões históricas e sugere que o governo brasileiro permitiu e por vezes até encorajou atividades que expuseram os povos Yanomami e Ye’kwana à uma doença mortal, ao mesmo tempo em que prejudicou a capacidade dos indígenas de proteger suas terras de garimpeiros ilegais que destroem as florestas e envenenam os rios da Amazônia.

“Dados do Ministério da Saúde (MS) indicam que há 11 regiões da TIY onde menos de 10 testes foram realizados pelo Dsei-Y e outras três onde nenhum teste foi feito, ou seja, em mais de um terço das regiões há pouquíssima informação sobre a chegada da Covid-19, reforçando as denúncias dos indígenas de que em realidade o número de contaminados pode ser muito maior. Essas informações revelam que, até meados de outubro, 70,5% dos testes feitos pelo Dsei-Y resultaram positivo. Na região do Demini, por exemplo, uma das mais testadas na TIY, quase 90% da população foi confirmada para a Covid-19. O número de testes realizados pela [Secretaria Especial de Saúde Indígena] Sesai até 23 de outubro em toda a TIY é insignificante: 1.270 entre positivos, negativos e descartados, ou seja, menos de 4,7% da população total foi testada”, denunciou o relatório, citando o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena, órgãos ligados ao MS.




Para Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami e porta-voz da campanha, o relatório é um instrumento que joga luz no descaso do governo na Terra Yanomami durante a pandemia. Ele afirma que a investigação representa um passo importante para “não só os Yanomami e Ye’kwana, mas todos os povos indígenas que protegem a nossa Terra Mãe e mantêm a floresta em pé” demonstrarem às autoridades a força e unidade da luta indígena no Brasil. “Temos parceiros que apoiam nossa luta. Pedimos urgência da retirada dos invasores da nossa terra”, disse.

“Queremos protocolar esse documento perante as autoridades brasileiras. É um instrumento de denúncia dos problemas da invasão dos garimpeiros, da contaminação do meio ambiente como os nossos rios e ainda sobre as doenças, essa xawara [epidemia], que tem matando muita gente”, completou Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara.

Sequência de violências

Além de denunciar o atual descontrole da pandemia na Terra Indígena Yanomami, o relatório apresenta em detalhes como ela avançou na maior terra indígena do Brasil devido à omissão das autoridades. Um dos principais trechos da publicação é uma linha do tempo de episódios que ilustram o descaso e a sequência de violências cometidas contra os indígenas durante todo esse período.

Uma das mais dramáticas — e que gerou revolta nas redes sociais em junho — foi o sumiço, por quase um mês, de três crianças que morreram com suspeita de Covid-19. Os bebês foram enterrados em um cemitério da capital Boa Vista (RR) sem o conhecimento dos pais ou de representantes dos Yanomami. Na cultura desse povo indígena, enterrar os mortos é algo inaceitável. Apesar da revolta e dos protestos, os restos mortais dos bebês seguem sepultados na capital roraimense, a milhares de quilômetros de suas comunidades.

Em julho, outro capítulo tétrico marcou o avanço da pandemia na Terra Yanomami e é esmiuçado no relatório. Três meses após a primeira morte de um Yanomami por Covid-19 — de um jovem de 15 anos —, o Governo federal levou em uma missão comandada pelo Exército 16 mil comprimidos de cloroquina para os pólos base e mais 33 mil comprimidos para o Dsei-Y. As autoridades argumentaram que o lote serviria para o combate da malária, não da Covid-19, como havia sido dito anteriormente pela Sesai. As versões conflituosas sobre o propósito da distribuição massiva da cloroquina evidenciaram a explosão de malária no território, que já vinha sendo denunciada pelas lideranças indígenas como impacto direto da invasão garimpeira.



O novo relatório também apresenta relatos dos Yanomami e Ye’kwana sobre o avanço da Covid-19 no território. Os depoimentos narram como a pandemia avançou, sobretudo pela ação garimpeira. “Por dentro, não estamos bem. Estamos todos adoecidos. Nossa floresta adoeceu. Assim ficou o rastro dos garimpeiros, por que muitos aviões pousam ali. Quando chega um avião, muita gente desce dele e como descem muitos aviões, hoje essa doença chegou! Tem doença forte!”, contou em julho de 2020 uma Yanomami de Kayanau, onde fica a segunda maior zona de garimpo da terra indígena.

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Francisco Yanomami, da região do Marauiá, alertou também naquele mês para a falta de testes para os indígenas. “Não era pra gente estar morrendo disso, por causa de doença forte, né. […] Agora tá acontecendo, tá aumentando sintoma de Covid-19, tá aumentando. O que a gente pode fazer? Como a gente vamos saber se é realmente Covid-19? Como que a gente pode descobrir? Se é de Covid-19 que a gente tá morrendo? A gente tem que saber qual doença está nos matando. Se não tiver esse teste, a gente não tem nem como descobrir que essa doença tá matando a gente!”.

O relatório também narra como a Casa de Saúde Indígena Yanomami (Casai-Y), em Boa Vista, se tornou o principal foco de contaminação da Covid-19 entre os indígenas logo nos primeiros meses de pandemia. “Nós não estamos aqui lutando à toa! Vocês brancos, que estão dentro do Distrito, que trabalham pela saúde, por terem complicado a situação, vocês nos deixaram muito tristes! (...) Por que vocês só ficam fazendo coisas ruins para nós?”, protestou na época Gerson Blene, liderança do Marakana/Toototopi.



Por fim, o relatório inclui artigos assinados por especialistas sobre o desrespeito aos rituais funerários dos Yanomami, do antropólogo francês Bruce Albert, o retrato sanitário da TIY, pelo médico sanitarista Paulo Basta, da Fundação Oswaldo Cruz, e sobre a responsabilidade do Estado brasileiro na tragédia, assinado pelos advogados do ISA, Juliana Batista e Luiz Henrique Pecora.

Ao lado dos Yanomami desde 1975, Bruce Albert conclui sua análise fazendo um paralelo entre a profanação dos mortos Yanomami pela Covid-19 e os desaparecimentos na ditadura cívico-militar brasileira — ambos expressão de “amnésia coletiva” e apagamento social. E que perduram até hoje. “De fato, apoderar-se dos mortos alheios para apagá-los da memória coletiva e negar o trabalho de luto dos seus familiares sempre foi a marca de um estágio supremo de barbárie alicerçado no desprezo e negação do Outro, étnico e/ou político”.

* A campanha #ForaGarimpoForaCovid é uma iniciativa do Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana e da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye'kwana (SEDUUME), Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima (TANER), Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), Associação Kurikama Yanomami (AKY) e Hwenama Associação dos Povos Yanomami de Roraima (HAPYR). A campanha conta com o apoio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Instituto Socioambiental (ISA), Amazon Watch, Survival International, Greenpeace Brasil, Conectas Direitos Humanos, Anistia Internacional, Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Instituto Igarapé, Fundação Rainforest US e Fundação Rainforest Noruega.

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