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Comunidades quilombolas lutam para garantir o respeito à cultura e aos modos específicos de uso e ocupação da terra na inscrição de seus territórios tradicionais no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SiCAR). Oito anos após a implementação do principal instrumento do Código Florestal (lei nº 12.651/12), os desafios vão desde a falta de informações sobre a ferramenta entre as comunidades até o uso do cadastro para a grilagem de territórios tradicionais.
O CAR é um registro eletrônico obrigatório para imóveis rurais no Brasil. Ele integra, em uma mesma base, informações georreferenciadas com o objetivo de viabilizar a regularização ambiental e garantir, entre outras questões, o controle e monitoramento do desmatamento. No CAR, se faz o registro das áreas desmatadas, da Reserva Legal (RL), das Áreas Preservação Permanente (APPs), das áreas de Uso Consolidado, das de Uso Restrito e das que devem ser ambientalmente recuperadas.
A necessidade do cadastro faz com que as comunidades tenham de se adequar a um instrumento que foi elaborado com base na lógica de imóveis privados e sem levar em conta os aspectos tradicionais e coletivos do uso da terra e manejo da biodiversidade. O registro no SiCAR é requisito para o acesso a políticas públicas, como programas de aquisição de alimentos e obtenção de crédito rural junto a instituições financeiras.
“Em Pernambuco existem relatos de que famílias deixaram de acessar a política de créditos por não terem condições de realizar o CAR. O cuidado dos animais e a manutenção de suas propriedades deixaram de acontecer”, conta Francisco das Chagas Sousa, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (Cecoq) e da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Comunidades tradicionais têm o direito de obter apoio do poder público na realização do cadastro. Na prática, entretanto, há dificuldades. Uma delas é obter informações sobre a política e as especificidades do cadastramento de áreas de povos e comunidades tradicionais (PCTs). A Conaq e o ISA trabalham para informar as comunidades sobre o instrumento (saiba mais no box abaixo).
Os estados são responsáveis por realizar a inscrição dos territórios tradicionais localizados em suas áreas. Alguns usam a própria estrutura estatal, como São Paulo com a Fundação Instituto de Terras (Itesp), ou contratam empresas para fazer o cadastramento, como o Maranhão.
“[As empresas] não têm a dimensão do território, de trabalhar com a questão do coletivo, do uso comum da terra. Não é uma dificuldade só das empresas, foi uma das coisas que mais a gente brigou com o SFB [Serviço Florestal Brasileiro] e o MMA [Ministério do Meio Ambiente] quando foi formulado esse módulo, para que pudesse contemplar minimamente os PCTs”, avalia Célia Cristina, coordenadora estadual da Conaq no Maranhão.
Ela se refere à elaboração do módulo específico do SiCAR para os territórios de povos e comunidades tradicionais, desenvolvido pelo governo federal após luta da Conaq e do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Um Grupo de Trabalho (GT) foi criado em 2016, no âmbito da Secretaria de Desenvolvimento Rural Sustentável do MMA, com a participação da Conaq, do CNPCT, ONGs e órgãos públicos. O GT se reuniu por dois anos e, apesar de persistirem muitos desafios na implementação do CAR das comunidades tradicionais, o espaço de debate já não existe.
Um dos principais resultados do GT foi a construção de um módulo do SiCAR voltado às demandas dos PCTs, permitindo a inclusão de 28 segmentos de PCTs, do autorreconhecimento e da inclusão de todos os moradores das comunidades nos cadastros, feito de modo coletivo. Foi uma vitória, mas não solucionou todos os problemas de acesso.
Um levantamento do Observatório do Código Florestal (OCF) revelou que, no final do ano passado, 19 estados brasileiros não utilizavam o módulo do CAR para PCTs. Seis utilizavam o módulo desenvolvido pelo governo federal e apenas um, a Bahia, desenvolveu um modelo próprio.
Para Fernando Prioste, assessor jurídico do ISA, o principal desafio, ainda hoje, é realizar a inscrição dos territórios tradicionais no sistema, e a ausência de utilização do módulo específico. “É a prova de que não há ações significativas para atender às demandas das comunidades tradicionais. Corre-se o risco de CAR individuais de terceiros serem validados dentro dos territórios tradicionais sem que estejam inscritos no sistema. Esse quadro é uma expressão do racismo ambiental”.
Apesar de o CAR não ter caráter fundiário, há registros de uso na tentativa de apropriação de terras públicas e imóveis rurais. Operações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), como a Rios Voadores e a Castanheira, verificaram que criminosos usavam o recibo de cadastro no SiCAR como prova da posse de terras. É uma situação que, diante do imenso número de sobreposições de cadastros de terceiros sobre os territórios quilombolas, preocupa lideranças e especialistas ouvidos pela reportagem.
Um levantamento do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) mostra o tamanho do problema: em 2019, a área de territórios de PCTs com imóveis rurais sobrepostos chegava a 90% no Espírito Santo, 78% no Mato Grosso e 65% em Santa Catarina. Em todo o país, 12% das áreas de PCTs cadastradas no SiCAR possuíam sobreposição.
“Nas 34 comunidades do Vale do Ribeira em São Paulo, se tiver cinco que não têm CAR de terceiros, é muito. Algumas têm mais de uma sobreposição. É um problema sério. Estão tentando inviabilizar as comunidades”, diz Rodrigo Marinho Rodrigues da Silva, da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE).
É constante a preocupação de que nos locais em que há mais dificuldade de obter informações, proprietários se aproveitem do desconhecimento das populações tradicionais para apresentar o recibo da inscrição no SiCAR como documento comprobatório da posse da área.
Francisco Chagas avalia que as sobreposições são hoje um dos maiores desafios para as comunidades. “O governo diz que o CAR não pode ser usado [como documento fundiário], mas a realidade é outra. Existem pessoas apresentando recibos de CAR como posse daquela área dentro do quilombo”, denuncia.
Maria Luiza Grabner, Procuradora Regional da República e Coordenadora do GT Quilombos da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), conta que ainda não houve relatos ao GT de comunidades que sofreram agressões físicas ligadas às sobreposições com o CAR, mas afirma que “a situação de violência existente em certos estados contra os quilombolas, inclusive com assassinatos de lideranças, pode ganhar ainda mais força a partir desse uso indevido do cadastro”.
Outra prática já observada, de acordo com Raoni Rajão, coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da UFMG, é o que ele chama de “grilagem verde”: a inscrição por grandes produtores de áreas de comunidades tradicionais como RL e APP dos imóveis privados. “Se você tem um cadastro sobreposto a uma área tradicional e aquilo é eventualmente validado, permite pegar crédito agrícola e ter uma série de vantagens em relação àquela área”, explica.
“Há CARs nas comunidades quilombolas do Pará que nós não sabemos nem de quem é. Há uma preocupação de que esse CAR de terceiros possa estar sendo usado para acesso a políticas de investimento, de crédito”, confirma Raimundo Magno Cardoso Nascimento, da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu).
O SFB, questionado sobre o problema, respondeu via assessoria de imprensa que “a solução para sanar essas sobreposições encontra-se na análise das informações declaradas pelos proprietários, identificando aquelas situações em que a sobreposição do cadastro não deveria existir” e que apoia os estados na realização desta análise. Destaca ainda a existência de filtros automáticos, que alertam para o caso de imóveis sobrepostos a Terras Indígenas e Unidades de Conservação.
Estudo apresentado pelo MPF aos membros da Plataforma de Povos e Comunidades Tradicionais, aponta "algum tipo de sobreposição em 9901 Registros de Inscrição de imóveis rurais no CAR sobre Terras indígenas no Brasil. A maioria (91,7%) das Terras Indígenas que possuem sobreposição com registros do Cadastro Ambiental Rural – CAR, são as Regularizadas". Os cadastros ainda continuam ativos, o que significa que o proprietário encontra-se em dia com a regularização ambiental de suas propriedades, pelo menos até que a análise seja realizada.
“Sobre os filtros automáticos, na prática, avaliamos que eles não funcionam. Destaco que o módulo de análise nunca foi apresentado e dialogado com os movimentos de PCTs, o que evidencia mais problemas nesta etapa, violando os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais”, critica Milene Oberlaender, assessora do Programa de Política e Direito Socioambiental (PPDS) do ISA.
Com a criação do módulo CAR PCTs, houve uma mudança importante na possibilidade de inscrição dos territórios tradicionais. Ao invés de cada família inscrever seu imóvel rural, de forma individual – como ocorre com imóveis privados –, todos os ocupantes podem se juntar para, por meio de uma associação representativa, fazer o cadastro coletivamente. Nesta modalidade, podem ser inscritos os CPFs de todos os ocupantes, para garantir o acesso a políticas públicas e crédito.
A informação é crucial. Há relatos de famílias que fizeram o CAR individual por desconhecerem a possibilidade do coletivo. Em outras situações, são os próprios técnicos dos governos, ou das empresas contratadas para a realização do CAR, que não conhecem as especificidades da cultura e das relações dos povos tradicionais com a terra que ocupam.
“O Estado não entende a dinâmica dos povos e comunidades tradicionais, acha que o Brasil é uma coisa só. Por conta disso, muitas agências não queriam aceitar o CAR coletivo”, relata Célia Cristina, em referência a uma situação no Maranhão. No estado, segundo Cristina, algumas agências do Banco do Nordeste, o principal operador regional, se recusavam a liberar crédito para quilombolas com recibo do CAR coletivo. Após reivindicação das comunidades, foram realizados diálogos com a Secretária de Agricultura Familiar estadual e a superintendência do Banco do Nordeste para resolver a situação.
Mesmo quando é possível realizar o cadastro coletivamente, há o receio de que as regras impostas sobre as feições internas, como APPs e RLs, limitem os usos tradicionais do território e as dinâmicas das comunidades. O Guia produzido pela Conaq e ISA explica que é um direito optar por cadastrar apenas o perímetro dos territórios, sem os detalhamentos internos. Se for decidido coletivamente que o cadastro mais detalhado deve ser feito, as comunidades também têm a opção.
Rafaela Miranda, quilombola da comunidade de Porto Velho, no Vale do Ribeira (SP), e advogada da EAACONE, defende que “a autonomia territorial deve ser feita pelas comunidades. A gente está o tempo todo se redefinindo, se reconstruindo, coletivamente”. Ela ressalta que as comunidades são grandes aliadas na preservação florestal. No Vale do Ribeira, por exemplo, está concentrado um quinto de toda a cobertura vegetal restante da Mata Atlântica no Brasil, e as comunidades quilombolas da região têm cerca de 80% de cobertura vegetal preservada.
Problemas na origem
Um problema ressaltado por lideranças quilombolas e especialistas é anterior ao próprio instrumento e está na origem de parte dos problemas atuais. Tanto os quilombolas quanto os demais PCTs no país não foram consultados no processo de elaboração do Código Florestal e criação do CAR.
A ausência de consulta vai contra normas e compromissos internos e internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece a consulta livre, prévia e informada a povos indígenas e comunidades tradicionais no caso de medidas legislativas e administrativas com potencialidade de impactar estas populações.
“O Estado cada vez que resolve agir sem consulta às comunidades, sem observar de forma estrita o ordenamento jurídico interno e internacional aplicado às comunidades, ao invés de resolver o problema, cria mais um problema”, diz o procurador da República Wilson Rocha.
Um reflexo da ausência de consulta foi a construção de uma ferramenta sob a lógica da propriedade privada. Os territórios de PCTs são coletivos. Foi preciso que os movimentos representativos das populações se mobilizassem junto ao governo para possibilitar a construção de um módulo de inscrição voltado às demandas destes territórios.
“Para mim, faltou consulta e falta informação. E informação que tenha uma linguagem adequada para esse público. Com essa falta de regulamentação e informação, você acaba gerando uma série de situações no campo que poderiam e deveriam ser evitadas”, avalia Roberta de Giudice, Secretária Executiva do OCF.
Para apoiar a discussão sobre o CAR das comunidades quilombolas e o trabalho na prática, foi produzido o Guia de Orientações para Inscrição, Análise e Validação do CAR em Território Quilombola. O guia teve apoio do Observatório do Código Florestal (OCF).
O lançamento oficial do Guia será realizado na quinta-feira (19/11), na live Casa-Floresta “Chega de Invisibilidade Quilombola!”, a partir das 18h. O evento trará a discussão sobre os desafios do CAR para os territórios tradicionais, com participação de Deborah Duprat, Subprocuradora-geral da República aposentada, Célia Cristina, coordenadora estadual da Conaq no Maranhão, Francisco Chagas, da Conaq no Piauí, e mediação de Fernando Prioste, assessor jurídico do ISA.