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Pesquisa e análise de dados: Antonio Oviedo, Estevão Senra, Cícero Augusto, Ricardo Abad, Thaíse Rodrigues e William Pereira Lima
Reportagem: Oswaldo Braga de Souza, Clara Roman e Isabel Harari
Edição: Oswaldo Braga de Souza
O governo de Jair Bolsonaro consolidou um novo patamar de destruição das áreas protegidas da Amazônia, assim como no caso do desmatamento em geral. Embora o ritmo da devastação tenha desacelerado, 2020 foi o segundo pior ano para Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs) desde 2008. Os 188 mil hectares de florestas destruídas nesses territórios ‒ extensão maior que a cidade de São Paulo ‒ só perdem para os quase 200 mil hectares registrados em 2019. Além disso, representam 90% a mais que a média entre 2009 e 2018.
A análise considera o intervalo entre agosto de um ano e julho do outro e foi feita pelo ISA com base na taxa oficial preliminar do Programa Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Divulgada em novembro, a taxa deste ano ficou em 1,1 milhão de hectares, 9,5% a mais que o período anterior - a maior desde 2008-2009.
“Diminuiu o ritmo de aceleração, mas continuamos numa direção catastrófica, porque a área que está sendo desmatada é muito grande”, avalia o pesquisador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da UFMG Raoni Rajão.
O desastre de 2018-2019 coincide com o momento entre a campanha eleitoral e o primeiro semestre da atual gestão, quando Bolsonaro e seus aliados amplificaram o discurso contra as políticas ambientais, alimentando expectativas sobre a extinção ou redução de TIs e UCs.
O detalhamento dos números corrobora a ideia de que, apesar da redução do ritmo das derrubadas, o governo ultrapassou um limite perigoso. Neste ano, o desmatamento aumentou 6% nas UCs federais, caiu 25% nas TIs e 1% nas UCs estaduais. Na comparação com 2017-2018, no entanto, os mesmos índices apresentam um acréscimo de 87%, 37% e 29%, respectivamente.
Apesar do ataque sem precedentes, essas áreas continuam sendo fundamentais para proteger a floresta. Todo o desmatamento realizado em seu interior soma menos de 20% do desmatamento total da Amazônia, pouco acima do registrado no ano anterior (18%) (veja tabela abaixo). Os desmates seguem concentrados em poucas áreas e regiões críticas (saiba mais abaixo).
Para pesquisadores, representantes da sociedade civil e de movimentos sociais, não resta dúvida do “efeito Bolsonaro” na manutenção do alto grau de invasões por grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais nas áreas protegidas.
“O desmatamento de 2020 não é uma surpresa, mas fruto de ações do próprio governo Bolsonaro que incentivam a ilegalidade”, aponta Antonio Oviedo, assessor do ISA. Ele lista entre essas ações: pareceres para liberar madeira ilegal, projetos legislativos que ameaçam áreas protegidas, baixa execução do orçamento para fiscalização, redução das autuações e embargos por crimes ambientais, deslegitimação dos órgãos de monitoramento e baixa efetividade das operações militares de combate ao desmatamento.
O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foram retirados da coordenação da Operação Verde Brasil 2, iniciativa da Vice-Presidência da República para combater os desmates e queimadas na Amazônia em 2020. A medida é vista como um dos fatores que contribuíram para a ineficácia das ações de fiscalização ambiental, que passaram a ser conduzidas pelas Forças Armadas. Os militares sempre apoiaram operações dessa natureza, mas não têm a experiência e conhecimento técnico necessários e nem mesmo a prerrogativa legal de aplicar multas ambientais.
Enquanto parte dos recursos federais para essas ações foi transferida ao Ministério da Defesa, os orçamentos executados para o mesmo fim do Ibama e do ICMBio despencaram 71% e 58%, respectivamente, entre 2020 e 2019, conforme dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) do governo. As autuações ambientais lavradas pelo Ibama caíram 46% na Amazônia Legal, conforme informações do próprio órgão ambiental. Os dados comparam todo o ano de 2019 com os meses de janeiro a outubro de 2020, além de uma projeção para novembro e dezembro deste ano.
“Não adianta levar o Exército, dar suporte para operações, pois o ministério que cuida de fato da fiscalização, que é o Ministério do Meio Ambiente, não está tomando a liderança e trabalhando”, critica Raoni Rajão. “Seria a mesma coisa que fazer uma operação médica, montar toda uma logística para levar atendimento às regiões mais distantes do Brasil, e não ter médicos para atuar”, diz.
A diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar, acredita que a devastação avançou menos em 2020 pela incapacidade do governo de mudar a lei, a repercussão da crise ambiental no Brasil e a resistência dos movimentos sociais. Para ela, esse cenário pode ter repercutido no campo e arrefecido a onda de invasões às áreas protegidas iniciada no fim de 2018.
“O governo Bolsonaro de fato tentou implementar seu plano estratégico de liberar as terras da Amazônia para a exploração desenfreada e reduzir ao máximo as restrições ambientais para que isso aconteça, mudando leis - o famoso ‘passar a boiada’. Mas acho que ele esbarrou em vários aspectos legais e de visão da sociedade”, analisa.
Rajão e Alencar apostam que algumas grandes operações de fiscalização realizadas em áreas e momentos estratégicos podem ter ajudado a reduzir a taxa de desmatamento nas TIs, a exemplo de ações nas TIs Ituna-Itatá e Apyterewa (PA), no início do ano. Ambas frequentam há anos as listas das TIs mais desmatadas. Por outro lado, o enfraquecimento do ICMBio e a sobrevivência do discurso contra as UCs, sem o contraponto de um movimento tão forte como o indígena, explicariam a manutenção das altas taxas de desmates nesse tipo de área.
O vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Mário Nicácio, reconhece que a queda no ritmo de destruição nas TIs é boa notícia, mas diz que seu patamar ainda é “preocupante”. “O governo Bolsonaro não leva a sério essa agenda e prejudica a gente, os povos indígenas, os ribeirinhos, toda população que trabalha com a garantia do equilíbrio ambiental”, afirma.
Nicácio crê que as denúncias e as iniciativas de fiscalização realizadas pelas próprias comunidades indígenas também contribuíram para o decréscimo da taxa de desmatamento nessas áreas. Ele menciona como exemplos a campanha #ForaGarimpoForaCovid, dos Yanomami (AM/RR), e os grupos de “guardiões da floresta”, dos Awa Guajá (MA).
Nicácio não tem dúvida de que os invasores foram responsáveis pela disseminação da Covid-19 entre os povos indígenas. Até 21/12, o Comitê pela Vida e Memória Indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) contabilizava quase 900 indígenas mortos e mais de 42,5 mil contaminados pela doença. Até agora, 161 povos foram afetados pelo novo coronavírus.
Foto: derrubada ilegal na TI Trincheira-Bacajá (PA), em agosto de 2019. Crédito: Lalo de Almeida
Bacia do Xingu, sudoeste do Pará
Apenas dez TIs concentram quase 80% de todo o desmatamento registrado nesses territórios em 2020. As quatro áreas mais devastadas somam quase 60% do total e estão todas na Bacia do Rio Xingu, no sudoeste do Pará, a principal frente de avanço da fronteira agropecuária da Amazônia há 20 anos.
“A gente está ameaçado. O desmatamento vai acabar com nosso território”, diz Mobu Odo Arara, cacique da aldeia Cachoeira Seca, da TI de mesmo nome e campeã de desmatamento neste ano. O resultado não é novidade: a área está entre as mais desmatadas do país nos últimos sete anos. Os Arara são um povo de recente contato.
Em 2020, a Cachoeira Seca acumulou quase 20% de todo desmatamento em TIs. Desde 2009, mais de 33,4 mil hectares de floresta foram derrubados, uma extensão maior que o município de Cuiabá. A ausência de regularização fundiária nas áreas protegidas do entorno, somada ao roubo de madeira, tem ampliado as invasões e a grilagem.
O problema é agravado pelo descumprimento do plano de proteção para as TIs na área de influência da hidrelétrica de Belo Monte. O plano é uma das medidas de compensação socioambiental do empreendimento e deveria funcionar logo após a assinatura do contrato de concessão da usina, em 2010. Depois de cinco anos da emissão da licença de operação, os territórios indígenas seguem em risco (leia a nota técnica do ISA).
A principal demanda hoje é pela retirada dos ocupantes não indígenas da área e a efetiva implementação de um plano de proteção no território. Somente agora, por meio de uma ordem judicial, o governo deverá promover a retirada de invasores. “A grilagem de terra e o desmatamento estão mais acelerados desde que Belo Monte chegou. A regularização da nossa área é uma das condicionantes [da usina], mas a desintrusão ainda não aconteceu. Com a demora, quem sai perdendo somos nós”, diz Mobu Odo.
A TI Apyterewa (PA), segunda mais desmatada no período, também sofre com a ineficácia do plano de proteção territorial de Belo Monte. É o segundo ano seguido que a área é a vice-campeã no ranking de TIs mais desmatadas. Apenas 20% do território está sob a posse dos indígenas, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai).
A terra sofre pressões de invasores, desmatamento e, mais recentemente, da mineração ilegal. O desmatamento explodiu após o cancelamento, ainda não justificado, das ações de fiscalização do Ibama, que vinham tendo sucesso até maio. A devastação aumentou 393% no mês seguinte à suspensão das operações, e continuou crescendo: entre julho e outubro, foram desflorestados 4,4 mil hectares. Os dados são do Sirad X, sistema de monitoramento do desmatamento na Bacia do Xingu, da Rede Xingu +, e seguem a tendência indicada pelo Prodes.
“O nosso território está cada vez mais desmatado, com mais garimpo ilegal, com mais madeira ilegal, os fazendeiros fazendo mais pasto. As invasões estão cada vez mais perto do nosso território, da nossa aldeia, desmatando mais a floresta onde tiramos nossos alimentos, caça, pesca. Estão poluindo nossos rios com mercúrio”, denuncia Xakarovara Parakanã, jovem liderança apyterewa. “Nós queremos a desintrusão já!", diz.
As TIs Ituna-Itatá e Trincheira-Bacajá (PA) ficaram em terceiro e quarto lugar no ranking de desmatamento, respectivamente. No total, foram destruídos mais de 8,5 mil hectares nas duas áreas, resultado da invasão de grileiros e madeireiros.
Na Trincheira-Bacajá, território dos Xikrin, o desmatamento também aumentou após o fim das operações do Ibama. São ao menos três frentes de invasão, cada vez mais próximas das aldeias. “Esse desmatamento acelerado nessa frente de invasão revela a determinação dos invasores em ocupar e explorar os recursos florestais da TI Trincheira Bacajá”, diz a denúncia da Associação Bebô Xikrin do Bacajá (Abex) (saiba mais).
Na bacia do Rio Tapajós, a TI Mundurucu (PA) também está entre as campeãs do desmatamento. O território sofre historicamente com o garimpo ilegal e a contaminação por mercúrio utilizado na extração do ouro. A construção da ferrovia Ferrogrão, para escoamento de soja e milho, e a perspectiva da chegada da mineradora Anglo American na região estão atraindo grande número de trabalhadores, garimpeiros e madeireiros.
"A mineração nas Terras Indígenas do médio Tapajós é bem grave, principalmente porque algumas [dessas áreas] não estão homologadas, como Sawré Muybu. Já tem balsa, maquinário grande. Outra coisa é a retirada de madeira. Em Sawré, já tem serraria, aumentou presença de madeireiro", afirmou Alessandra Munduruku à agência Amazônia Real.
Foto: Desmatamento ilegal na TI Mundurucu, em setembro de 2020. Crédito: Marizilda Cruppe / Amazônia Real
TI Urubu Branco
Na TI Urubu Branco (MT), o povo Apyãwa, conhecido como Tapirapé, sofre com a invasão de fazendeiros e grileiros. Queimadas são cada vez mais frequentes. Mesmo a floresta não desmatada muitas vezes se encontra em processo de degradação. Em julho, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli restabeleceu uma decisão da Justiça Federal em Mato Grosso que determinou a retirada de não índios. Foi a terra com maior variação percentual de desmatamento este ano: 12.474%!
TI Manoki
No oeste do Mato Grosso, a TI Manoki, do povo Iranxe Manoki, continua no ranking das mais desmatadas. Já havia figurado nesta lista no ano passado. Cerca de 500 indígenas estão cercados por fazendas de soja. No segundo semestre de 2019, incêndios criminosos foram denunciados pelos indígenas. Além da destruição, a fumaça causa problemas respiratórios. A demarcação ainda não foi concluída.
TI Karipuna
Com uma população de 54 pessoas, os Karipuna vivem assombrados pelo fantasma do extermínio, que, em março, ficou mais presente pela contaminação de dois idosos por Covid-19. Ambos seguem isolados em Porto Velho. Cercada por frentes de grilagem, a TI Karipuna sofre enorme pressão ao longo de seus limites. Na parte oeste, pelo menos nove pontes dão acesso ao território, conectando a malha viária que serve às fazendas do distrito de União Bandeirantes, possibilitando o transporte de árvores extraídas ilegalmente e o abastecimento das frentes de desmatamento.
Sudoeste do Pará
Cerca de 15% de todo o desmatamento registrado na Amazônia em 2019-202 ocorreu em UCs. O sudoeste do Pará concentra a grande maioria dos ataques a essas áreas. “Há anos, a região é palco de atividades ilegais e expropriação de patrimônio público como roubo de madeira, grilagem de terras públicas e garimpo”, lembra a assessora do ISA Sílvia Futada.
As três UCs federais mais desmatadas no período estão todas na região e somam 56% de todos os desmates realizados nesse tipo de área protegida. São elas as Florestas Nacionais (Flonas) do Jamanxim e de Altamira e a Área de Proteção Ambiental (APA) de Altamira.
Historicamente, as UCs estaduais concentram a maior parte dos desmates. Neste ano, não foi diferente. Somente a APA Triunfo do Xingu, na mesma região, foi responsável por 43,1% de todo o desmatamento realizado em UCs estaduais. A área repetiu o feito do ano passado e liderou o ranking entre as UC mais desmatadas - estaduais e federais -, com 43,86 mil hectares de floresta destruídos. Mais de um terço de sua área florestal já foi convertida para outros usos, sobretudo pecuária.
O desmatamento acumulado na APA Triunfo do Xingu, na Floresta Extrativista Rio Preto-Jacundá (RO) e na Reserva Extrativista Jaci-Paraná (RO) alcançam 85% de todo o desmatamento realizado dentro das UCs estaduais.
Foto: Garimpo ilegal na APA Triunfo do Xingu. Crédito: Ascom / Sema-PA
A reportagem entrou em contato com a Vice-Presidência da República, o ICMBio, a Funai e o Ministério da Defesa. Apenas o último respondeu por meio de uma nota com dados gerais sobre a Operação Verde Brasil 2, mas nenhuma informação sobre as áreas protegidas. A operação foi iniciada em maio e vai até abril de 2021.
“Houve redução de 45% nos avisos de desmatamento na Amazônia Legal no mês de novembro em relação ao mesmo período de 2019, segundo dados do Inpe. Entre os meses de agosto a novembro de 2020, a redução total registrada foi de 19%, quando comparada ao ano anterior”, diz o texto.
Ainda conforme a pasta, os alvos da operação são selecionados pelo Grupo Integrado de Proteção da Amazônia (GIPAM), que é composto por Ibama, ICMBio, Inpe, Polícia Federal, Funai e Agência Brasileira de Inteligência (Abin), entre outros. “O GIPAM aplica metodologia científica própria para a priorização das áreas de interesse para atuação das equipes, empregando meios para sensoriamento remoto, como satélites, radares e aerolevantamento, além de critérios de campo, na seleção das áreas alvo”, segue o texto.
Segundo o ministério, o valor total alocado para a operação é de R$ 410 milhões. Já teriam sido investidos R$ 340 milhões. “Foram emitidos 263 autos de prisão em flagrante delito (APFD) e aplicados mais de 4 mil termos de infração. O valor total das multas ultrapassa R$ 1,8 bilhão”, continua a nota.
Leia a íntegra da nota da assessoria do Ministério da Defesa
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