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Por Antonio Oviedo, Nurit Bensusan e Silvia Futada
O programa federal Adote um Parque parece mais uma cortina de fumaça para encobrir o desmonte da área ambiental do Estado brasileiro. Lançado no início de fevereiro, o programa permite que empresas “adotem” uma Unidade de Conservação, doando um aporte de dinheiro para aquela área. O envolvimento da sociedade brasileira com a manutenção dos parques nacionais e outras unidades de conservação é um desejo nutrido por todos que trabalham com essas áreas. Assim, pode parecer que o “Adote um Parque” é uma ótima ideia. Mas não é.
O programa nasceu quando nossos parques e unidades de conservação deixaram de ter o apoio do estado. Os órgãos ambientais têm sido sistematicamente desmontados e desmoralizados. A gestão e a fiscalização dessas áreas protegidas vêm sendo abandonadas e as unidades invadidas, desmatadas e incendiadas.
Analisando o orçamento do ICMBio, em especial as despesas liquidadas, a ação de Apoio à Criação, Gestão e Implementação das Unidades de Conservação Federais sofreu redução de 44% entre os anos de 2019 e 2020. Se compararmos ao orçamento anterior ao governo Bolsonaro (comparando 2018 a 2020) a redução também é de 44%. Para a ação de Fiscalização Ambiental e Prevenção e Combate a Incêndios Florestais, a redução entre 2019 e 2020 foi de 67%, e quando comparado ao período anterior ao governo Bolsonaro (2018 a 2020), a redução foi de 42%.
Dentre os órgãos do Ministério do Meio Ambiente, o ICMBio é o que sofreu o maior corte orçamentário em 2021. Esse é o órgão responsável pela gestão das unidades de conservação (UCs) federais. O valor previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) indica uma redução de 46%, caindo dos R$ 649 milhões de 2020 para R$ 348 milhões. Em proposta aprovada pelo Congresso na última quinta-feira (25/3), o valor para este ano ficou em R$ 352 milhões. Ainda podem ser adicionados ao orçamento autorizado R$ 260 milhões após aprovação legislativa. Mesmo assim, a soma total ainda seria 31% menor do que o autorizado no ano passado.
Quando analisamos o desmatamento nas áreas protegidas (terras indígenas e unidades de conservação federais e estaduais) o efeito Bolsonaro é mais devastador ainda. Levando-se em conta a média dos dez anos anteriores ao seu governo, o desmatamento cresceu 78%. Ou seja, entre 2009 a 2018, a média registrada pelo Inpe foi de 109.166 hectares por ano, e durante o governo Bolsonaro a média foi de 194.084 hectares por ano.
Olhando apenas as unidades de conservação federais, em 2020, 70 UCs federais apresentaram desmatamentos, totalizando 48.256 hectares. São 51 UCs de uso sustentável (incluindo duas Áreas de Proteção Ambiental -APAs) e 19 UCs de proteção integral. Segundo as estimativas do PRODES em 2020, o desmatamento nas UCs federais em 2020 foi 6% maior em comparação com o ano de 2019, e representa 5% do desmatamento total na Amazônia legal. Ao compararmos o desmatamento nas UCs federais durante o governo Bolsonaro, em comparação com o período anterior a este governo (2018), o aumento é de 87%.
Atualmente no Brasil, há 329 UCs confirmadas na Amazônia legal, sendo 145 federais. Estas, somadas a 184 UCs estaduais, compõem uma extensa rede formada por 117 UCs de proteção integral e 212 UCs de uso sustentável. Este sistema foi arduamente construído por meio da regulamentação de um Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e iniciativas de conservação da biodiversidade, patrimônio do povo brasileiro.
Um aspecto preocupante é a sobreposição de UCs listadas no Programa Adote um Parque com terras indígenas, incluindo territórios com a presença de grupos isolados, onde a extensão total de sobreposição é de 66.410 km2, mais de 43 vezes a extensão do município de São Paulo. Considerar a concessão de terras indígenas, ou porções deste território, para a iniciativa privada é inconstitucional, e fere o artigo 231 da Constituição. As terras indígenas são de usufruto exclusivo dos indígenas. São terras da União, mas que só podem ser utilizadas pelos povos indígenas. O setor privado não pode se apropriar delas por nenhum mecanismo.
Não se trata aqui de imaginar que a iniciativa privada brasileira não tenha compromisso com a manutenção do meio ambiente, trata-se de entender que a parte do setor privado verdadeiramente aliada à conservação da natureza não pode aderir a um programa desses, sob risco de cometer Greenwashing: usar a causa ambiental para melhorar a imagem mas sem impacto efetivo no chão. O maior motivo é que quem vem acompanhando o desmonte da área ambiental do país sabe que a iniciativa privada não poderá contar com apoio do poder público na garantia da integridade dos parques, especialmente em políticas públicas de combate ao desmatamento e incêndios florestais. Assim, empresas que estão de fato comprometidas com a preservação da nossa biodiversidade não podem aceitar tomar parte nesse jogo que ao invés de juntar forças, agregando a iniciativa privada às ações do poder público, transforma unidades desprotegidas em objeto de leilão. Este é um resultado perverso, pois o programa não conseguirá manter a integridade das áreas e a responsabilidade será transferida para as empresas que adotaram áreas.
Paralelamente correm as concessões de serviços e também das áreas de visitação dos parques à iniciativa privada. Tais concessões deveriam ser vistas também sob a mesma ótica: uma estratégia complementar a do poder público. Justo imaginar que com recursos limitados, faz sentido procurar parcerias para melhor receber os visitantes, que são os verdadeiros donos desses parques, patrimônio de todo o povo brasileiro. Mas se as áreas se degradam, por falta de gestão e de fiscalização derivada do desmonte dos órgãos ambientais, qual é o sentido de promover a visitação? Acolher pessoas em unidades de conservação é uma forma de ajudá-las a compreender o valor dessas áreas e transformá-las em parceiras das iniciativas de conservação.
O Programa Adote um Parque é mais uma iniciativa do governo federal que atenta contra o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, seguindo a tendência de normativas e ações que desde o início do governo Bolsonaro tem desestruturado o Sistema Nacional de Meio Ambiente. O Programa representa mais uma proposta desarticulada do governo federal, que surge repentinamente sem debate ou participação com a sociedade civil, bem com os servidores dos órgãos envolvidos ou comunidades diretamente impactadas, ferindo o princípio não apenas da transparência e democracia, mas também da eficácia com base na ciência. Ainda, um Programa que surge sem metas claras nem mecanismos de monitoramento apresenta mais dúvidas do que garantia de sucesso ou impacto positivo. É difícil apostar nesses programas no momento em que as unidades de conservação enfrentam seu pior cenário.