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Movimentos e organizações sociais divulgaram, ontem (13), uma nota pública que alerta sobre os riscos da tramitação acelerada, promovida pela cúpula da Câmara, do Projeto de Lei (PL) 6.764/2002, que pretende substituir a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983), editada na fase final da ditadura militar.
As 67 redes e instituições que assinam o texto, entre elas integrantes do Pacto pela Democracia, como o ISA, ressaltam a importância de se alterar o marco legal sobre o assunto, desde que com um debate aprofundado e ampla participação da sociedade, incluindo ainda juristas e acadêmicos. A nota traz um conjunto de recomendações específicas que deveriam nortear a discussão da proposta.
O receio dos autores do texto é que a tramitação apressada, sem consultas e controle social adequados, realizada num governo de traços claramente autoritários, possa desvirtuar a nova legislação, abrindo espaço para que ameace e agrida o que deveria proteger, ou seja, o Estado Democrático de Direito e a ordem constitucional.
Leia abaixo a íntegra do texto.
A Lei nº 7.170/1983, resquício autoritário da ditadura militar, é incompatível com a democracia restabelecida a partir da Constituição Federal de 1988. A intensificação de sua utilização para respaldar ameaças e intimidações contra vozes críticas ao governo reforça a inadequação de seu paradigma de segurança nacional, anacrônico tanto do ponto de vista internacional, pelo fim da Guerra Fria, como domesticamente frente à redemocratização.
A experiência histórica, no entanto, nos exige cautela. Por mais importante que seja a aprovação de um novo marco legal que proteja a democracia brasileira, isso não pode ocorrer de forma açodada, sem o adequado debate e reflexão, sob pena de reproduzir ou incluir conceitos e dispositivos incompatíveis com os pilares da Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, causa-nos extrema preocupação a possibilidade de votação, em regime de urgência, desse projeto, sem que seu conteúdo possa ser conhecido e debatido pelos diversos setores da sociedade brasileira, incluindo não só organizações e movimentos sociais, mas também juristas com expertise no tema. Ademais, estamos em meio a um contexto de emergência e calamidade, em que todas as energias do Estado e da sociedade deveriam estar voltadas ao enfrentamento da maior tragédia da história recente do país.
Considerando que a discussão de uma nova legislação para substituir a Lei de Segurança Nacional avança mesmo assim no Colégio de Líderes da Câmara dos Deputados, entendemos que o novo marco não pode servir de ameaça à ação de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e ao pluralismo político, que são base da democracia brasileira. Uma Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito não pode ameaçar o bem que visa justamente a tutelar e fortalecer.
Com esse espírito, apresentamos a seguir alertas e ponderações que reputamos relevantes na tramitação de um Projeto de Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, ainda mais considerando o grave contexto de recrudescimento autoritário em que vivemos no Brasil:
1. Uma nova legislação deve superar incontestavelmente o espírito e doutrina de segurança nacional: a lógica do “inimigo interno” autoriza ações estatais que dão lugar à perseguição de opositores políticos ou outros atores sociais e habilita a securitização de agendas sociais. Assim, implica a expansão da capacidade dos Estados para realizar tarefas de inteligência e de criminalização da ação social e foi historicamente o pano de fundo de normativas que enfraquecem o devido processo legal e o direito de defesa, pilares do Estado Democrático de Direito. Ainda, coloca em risco as liberdades de expressão e associação, assim como o direito de protesto e o direito à privacidade. Essa lógica não só segue vigente no Brasil em normativas que não foram substituídas pela democracia – como a LSN –, como também vem sendo reeditada nos debates legislativos. A revogação da LSN e a adoção de uma legislação que defenda o Estado Democrático de Direito devem rejeitar a relação entre democracia e a lógica do “inimigo interno”.
2. Deve ser buscado um texto conciso e enxuto, as condutas puníveis previstas em uma nova legislação devem ser aquelas motivadas pela intenção inequívoca de lesar ou expor a perigo concreto de grave lesão a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito: apesar de se entender como plenamente já passível de responsabilização criminal os bens tutelados e as condutas típicas previstas na LSN com o que se tem na legislação penal contemporânea, um eventual vazio legislativo resultante de uma revogação total da Lei nº 7.170/1983 deve ser sanado por nova legislação que preveja única e exclusivamente a proteção frente a ações gravosas para destituir a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito. Entende-se por ações gravosas aquelas de natureza bélica e de grupos armados, por exemplo.
3. Termos genéricos e imprecisos devem ser afastados de uma nova legislação: deve prevalecer o princípio da taxatividade no direito penal, segundo o qual a norma penal incriminadora deve ser elaborada de forma clara e precisa, com vistas a evitar interpretações que possam prejudicar a própria finalidade de defesa da ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito. O emprego da legislação penal historicamente tende ao arbítrio e a punição de grupos socialmente vulneráveis, por isso, sua construção deve ser cautelosa e taxativa. Termos como “incitação”, “apologia” e “atos preparatórios”, por exemplo, já suscitaram contundentes críticas em discussões sobre outras matérias legislativas penais dada sua imprecisão e amplitude. Assim, a legislação deve ser clara e específica tanto quanto for necessário para evitar que, a fim de proteger a democracia, se possa utilizar de tipos penais com expressões vagas justamente para ameaçá-la.
4. A substituição da atual legislação não pode servir como espaço para criação de tipos penais abertos, amplos e imprecisos que venham a ser utilizados para perseguição de movimentos sociais que atuam em prol do reconhecimento e expansão de direitos. Tipos penais que já estejam contemplados na legislação também precisam ser eliminados caso não estejam em necessária consonância com o objetivo de versar exclusivamente sobre condutas que visem à destituição da ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito: Cada dispositivo deve ser amplamente debatido e revisado visando à eliminação de lacunas ou termos vagos com margem para que, no futuro, a aplicação de uma nova legislação possa resultar na criminalização de condutas individuais ou coletivas de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais.
5. A tramitação de uma legislação de tamanha envergadura para a democracia não pode avançar sem amplo debate e participação de qualidade de diferentes setores da sociedade brasileira: um compromisso para que a nova legislação não incorra no risco de respaldar ataques à democracia e perseguições contra movimentos e entidades sociais que atuam em defesa de direitos no Brasil pressupõe que diferentes momentos de escuta qualificada sejam promovidos nas duas Casas Legislativas com juristas e acadêmicos, centrais sindicais, sociedade civil organizada, movimentos populares e outros segmentos sociais relevantes. Amplo e plural debate prévio e consulta qualificada são necessários para que direitos fundamentais como a liberdade de expressão, liberdade de associação e direito de protesto sejam reforçados - e não ameaçados - pela nova legislação no tema em tela.
12 de abril de 2021
Assinam esta nota conjunta:
ABI (Associação Brasileira de Imprensa)
Ação Educativa
Agenda Pública
Aliança Nacional LGBTI+
Amigos da Terra - Amazônia Brasileira
AMNB
ARTIGO 19
Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida - Apremavi
Associação Juízes para Democracia - AJD
Associação Nacional da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais - Andeps
Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos - ANADEP
Associação para a Gestão Socioambiental do Triângulo Mineiro
Católicas pelo Direito de Decidir
Centro de Convivência É de Lei
Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada
Conectas Direitos Humanos
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
Delibera Brasil
Engajamundo
Engenheiros Sem Fronteiras - Brasil
FAOR Fórum da Amazônia Oriental
Fórum LGBTI+ da Serra ES
Fórum Permanente de Igualdade Racial - FOPIR
Fundação Avina
Fundação Tide Setubal
GESTOS – Soropositividade, Comunicação e Gênero
Greenpeace Brasil
INESC Instituto de estudos socioeconômicos
Iniciativa Verde
Instituto Climainfo
Instituto Diplomacia para Democracia
Instituto Ecologica
Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social
Instituto Hori - Educação e Cultura
Instituto Igarapé
Instituto Internacional de Educação do Brasil
Instituto Nossa Ilhéus
Instituto Physis de Cultura e Ambiente
Instituto Socioambiental - ISA
Instituto Talanoa
Instituto Update
Instituto Vladimir Herzog
Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social
IPAD - Instituto Pensamentos e Ações para Defesa da Democracia
IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas
Laboratório Brasileiro de Cultura Digital - LabHacker
Mater Natura - Instituto de Estudos Ambientais
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Observatório do Clima
ODARA Instituto da Mulher Negra
Open Knowledge Brasil
Oxfam Brasil
Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político
Plataforma MROSC
ponteAponte
Projeto Saúde e Alegria
Rede Brasileira de Conselhos- RBdC
Rede Conhecimento Social
Rede Feminista de Juristas - deFEMde
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC
Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental - SPVS
Transparência Capixaba
Turma do Bem
WWF Brasil
350.org Brasil