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Reportagem: Oswaldo Braga de Souza e Ester Cezar
Edição: Oswaldo Braga de Souza
Texto atualizado às 9:10 de 23/6/2021
Está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, desta quarta (26), a partir das 9h, o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que permite que o governo, unilateralmente, retire da posse de povos indígenas áreas oficializadas há décadas e escancara as Terras Indígenas (TIs) a empreendimentos predatórios, como o garimpo. Na prática, a proposta pode inviabilizar as demarcações, de acordo com a avaliação do movimento indígena, de pesquisadores e de setores da sociedade civil.
O PL já passou pelas comissões de Agricultura e Direitos Humanos. Nesta última, recebeu parecer contrário. Caso seja aprovado na CCJ, segue ao plenário e, se também for aprovado, vai ao Senado. O relator é o deputado Arthur Maia (DEM-BA) e o autor, o deputado Homero Pereira (PR-MT), já falecido.
O projeto vai contra direitos dos indígenas garantidos na Constituição, entre eles a posse permanente de suas terras e o direito exclusivo sobre seus recursos naturais. A proposta altera o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) e atualiza o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, uma das maiores ameaças aos direitos indígenas que já tramitou no Congresso.
“O principal ponto é que se está passando um projeto totalmente inconstitucional, que quer mudar a nossa Constituição através de um PL”, critica a deputada Joênia Wapichana (Rede-RR). “Como sabemos, os povos indígenas dependem da sua terra demarcada, protegida, assegurada. A própria Constituição fala isso. O objetivo é manter os povos indígenas, a sua sobrevivência física e cultural. Ameaçar esse direito, essa possibilidade de retrocesso é colocar em risco a vida dos povos indígenas”, completa.
Contando com apoio de ruralistas e bolsonaristas, se aprovado o PL abre caminho para que a administração federal anule parcial ou integralmente TIs “Reservadas”, caso julgue que uma área não esteja sendo ocupada e usada adequadamente para a subsistência de seus moradores.
A “Reserva Indígena” é um tipo de TI estabelecida para assegurar a sobrevivência física e cultural de um povo indígena, mas onde não foi reconhecida, necessariamente, a ocupação tradicional, conforme os conhecimentos técnicos antropológicos atuais. Isso acontece porque grande parte dessas áreas foi oficializada com base no Estatuto do Índio, de 1973. Portanto, muitas delas têm décadas de existência.
De acordo com o ISA, há hoje no país 60 áreas nessa categoria, com população de quase 68 mil pessoas e uma extensão total de 396,3 mil hectares, o equivalente a 2,6 vezes o município de São Paulo. Esses territórios e comunidades estariam em risco com a aprovação do PL 490.
O projeto também aplica às demarcações o chamado “marco temporal”, pelo qual só teriam direito à terra os povos indígenas que estivessem em sua posse, no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese desconsidera o histórico de expulsões, remoções forçadas e violências cometidas contra essas populações, em especial durante a Ditadura Militar.
Os ruralistas argumentam que a tese deve ser aplicada a todas as demarcações e que faz parte da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), o que não é verdade. Pelo menos cinco ministros da Corte - Edson Fachin, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski - já se pronunciaram em sentido contrário. Além disso, o STF prepara-se para votar um recurso extraordinário contra a reintegração de posse da TI Ibirama-Laklanõ (SC), caso alçado à condição de “repercussão geral”, que deverá definir a aplicabilidade ou não do marco temporal e servir como diretriz para orientar os procedimentos demarcatórios nacionalmente.
Outro entrave às demarcações previsto no PL é a possibilidade de apresentação de contestações em todas as fases do complexo e demorado procedimento demarcatório. Contralaudos e questionamentos poderiam ser apresentados por representantes de municípios, estados e associações de fazendeiros. Hoje, a contestação pode ser feita por qualquer pessoa, mas apenas em até 90 dias após a publicação do relatório de identificação elaborado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Depois disso, o processo segue para a declaração de limites do território pelo ministro da Justiça. Conforme as regras atuais, há demarcações que arrastam-se por 20 ou 30 anos.
“Hoje, todos os interessados se manifestam, mas apenas em uma fase. Eles não podem se manifestar em qualquer fase. Se isso acontecer, o processo administrativo não vai acabar nunca”, avalia a advogada do ISA Juliana de Paula Batista. Ela acredita que a multiplicação de possibilidades de contestação e atores que podem participar do procedimento vai abrir caminho a pressões de toda a ordem sobre os técnicos responsáveis e a Funai.
O projeto de lei também permite a implantação de hidrelétricas, mineração, estradas e grandes empreendimentos agropecuários, entre outros, sem a consulta livre prévia e informada às comunidades afetadas, conforme determina a Constituição e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), referendada pelo país e incorporada à legislação nacional. O PL abre caminho para isso ao retirar do “usufruto exclusivo” dos indígenas de qualquer área “cuja ocupação atenda a relevante interesse público da União”.
A proposta vai viabilizar ainda a legalização automática de centenas de garimpos nas TIs, atualmente responsáveis pela disseminação da Covid-19 e da malária, entre outras doenças, a contaminação por mercúrio, a destruição de nascentes e rios inteiros e a explosão do desmatamento.
Na semana passada, ataques de garimpeiros ilegais na TI Yanomami (RR) foram responsáveis pela morte de duas crianças. A violência seria uma represália à implantação de barreiras sanitárias para impedir a circulação dos invasores e de insumos para o garimpo.
Um dos aspectos mais graves do PL 490 é que ele abre brecha para o fim da política de “não contato” com os indígenas isolados. O PL prevê a hipótese de contato por “interesse público”, que poderia ser intermediado por “empresas públicas ou privadas” contratadas pelo Estado, inclusive missões religiosas, prática que deixou de ser adotada pelo Brasil desde a Redemocratização.
Desde o final dos anos 1980, a Funai estabeleceu que os grupos sem contato oficial com o Estado devem ter a opção de fazê-lo, no momento e na forma que acharem conveniente. Em contrapartida, o governo deve proteger seus territórios de invasores e da degradação ambiental.
Essas populações são extremamente vulneráveis a contatos imprevistos e conflitos por não terem resistência imunológica a doenças contagiosas comuns entre os não indígenas, como gripe. Além disso, em geral estão em regiões remotas e de difícil acesso, o que pode inviabilizar atendimento médico emergencial. Por isso, podem ser dizimadas em curto espaço de tempo.
A reportagem do ISA entrou em contato com o relator do PL 490, deputado Arthur Maia (DEM-BA), e o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Sérgio Souza (MDB-PR), mas não obteve resposta.
- Permite a retomada de "reservas indígenas" pela União a partir de critérios subjetivos, colocando em risco, pelo menos, 60 territórios, habitados por cera de 70 mil pessoas e com uma área total de 396,3 mil hectares
- Aplica o “marco temporal” a todas as demarcações de Terras Indígenas, praticamente inviabilizando um processo que já é complexo e demorado
- Estabelece que a demarcação poderá ser contestada em todas as fases do processo, obrigando a manifestação de representantes de Estados e municípios e permitindo a manifestação de associações de fazendeiros, também inviabilizando o procedimento
- Permite a implantação de hidrelétricas, mineração, estradas, arrendamentos e grandes empreendimentos agropecuários nas TIs, entre outros, sem a consulta livre prévia e informada às comunidades afetadas, conforme determina a Constituição e a legislação internacional
- Viabiliza a legalização automática de garimpos ilegais nas TIs. Hoje, a atividade é um dos principais responsáveis por conflitos, disseminação de doenças, destruição de nascentes e rios e a explosão do desmatamento
- Abre brecha para o fim da política de “não contato” com indígenas isolados. De acordo com o PL, o contato poderia ser feito com a finalidade de “interesse público”, por empresas públicas ou privadas, inclusive associações de missionários.
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