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Com Ferrogrão, estrada dentro de terras indígenas pode virar rota de caminhões de soja

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Asfaltamento e terminal em Matupá (MT) vão aumentar fluxo dentro de áreas protegidas e podem impulsionar divisão do corredor ecológico do Xingu
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Obras ligadas à Ferrogrão (ferrovia planejada para os Estados do Mato Grosso e Pará) podem transformar uma estrada de terra no meio de duas Terras Indígenas em uma das principais rotas regionais de caminhões de soja do Mato Grosso. É o que mostra o novo estudo do Centro de Sensoriamento Remoto da UFMG que calculou as consequências de obras na região da Terra Indígena Capoto-Jarina e do Território Indígena do Xingu ligadas à ferrovia. A Ferrogrão sairá da cidade de Sinop (MT), um dos maiores polos de produção de soja do país e seguirá até o porto de Mirituba (PA). O estudo analisou as consequências de obras relacionadas à ferrovia: um terminal de grãos em Matupá (MT), onde ocorrerá o carregamento do trem com a soja, e o asfaltamento e substituição de uma balsa por uma ponte na MT-322, uma estrada de terra que cruza o Xingu (veja o mapa).



O que o novo estudo reforça é que os impactos gerados pela obra - que incluem o aumento da contaminação por agrotóxicos e do desmatamento - se estendem por uma dimensão muito maior do que os previstos pelo governo, de 10 km para cada lado do trajeto. As obras podem impulsionar, inclusive, a interrupção da conectividade do corredor ecológico do Xingu, 26 milhões de hectares de florestas protegidas cuja divisão poderia causar perdas irreparáveis para o clima global. ”Por mais que na definição do planejamento tenha 10 km de zona de influência, esse empreendimento terá impacto muito além desse limite”, afirma Ewésh Yawalapiti Waurá, Consultor Jurídico da Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX).

“Um estudo anterior mostra que a Ferrogrão vai afetar 16 terras indígenas. Por isso que é importante a consulta de todos os povos indígenas que serão afetados, é um instrumento pelo qual os povos indígenas terão uma participação efetiva. Isso tem que ser feito de boa fé”, explica ele. O direito à Consulta Livre, Prévia e Informada dos povos indígenas é previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). (Leia aqui o Protocolo de Consulta dos Povos do Território Indígena do Xingu).

A MT-322 liga as duas principais estradas federais da região (a BR-163 e a BR-158), mas hoje apresenta fluxo pequeno de veículos. Com as obras, ela pode se tornar uma das principais vias de escoamento de soja da região, um contrassenso para uma estrada que corta uma das maiores áreas de floresta preservada da Amazônia. O fluxo poderia atingir uma média de 174 caminhões de soja por dia ou 1,9 milhão de toneladas/ano. Isso aconteceria porque, além das melhorias na estrada, seria construído um terminal de transbordo em Matupá - um local onde os grãos ficam armazenados até juntar a quantidade necessária para carregar todos os vagões do trem.

Desde sua implantação, a MT-322 é motivo de conflitos e controvérsias, uma vez que corta o Rio Xingu em uma região habitada historicamente por populações indígenas. Em 1971, em decorrência da construção da estrada, uma porção de território indígena do médio Xingu foi excluída dos limites propostos para o Parque Indígena do Xingu (PIX) - hoje Território Indígena do Xingu (TIX), tendo sido aberta à ocupação de fazendas de pecuária . Somente em 1984, depois da chamada “guerra da balsa”, o território foi demarcado como a Terra Indígena (TI) Capoto-Jarina e desde então sua população faz a gestão da travessia cobrando uma tarifa a todos os não-indígenas que utilizam a balsa. Esse trecho de 80 km da rodovia, que passa no perímetro do TIX e dentro da TI Capoto-Jarina, apesar de se encontrar em operação, não possui licenciamento ambiental nem teve estudos de impacto ambiental sobre as populações indígenas desses territórios.



“A MT- 322 já trouxe muito desmatamento no entorno do Xingu. Se não fossem os indígenas do Xingu eles iam acabar com todas as florestas até na beira do rio.
O desmatamento chega no limite do Parque e da Terra Indígena Capoto-Jarina”, afirma Megaron Txucarramae, liderança da Terra Indígena Capoto Jarina.

O tráfego intenso de veículos decorrente da construção da ponte sobre o rio Xingu na MT-322 aumentará a pressão pela derrubada de florestas para agricultura e vai acelerar a invasão e o desmatamento nas terras indígenas da região. Estima-se que em um cenário de fraca governança ambiental como o atual, mais de 230 mil hectares sejam desmatados até 2035 apenas dentro das terras indígenas do leste do Mato Grosso. Mais da metade desse desmatamento ocorreria somente no Território Indígena do Xingu. A perda de floresta dentro da bacia logística da Ferrogrão no Mato Grosso atingiria 65% até 2035. Nos últimos 10 anos, o desmatamento no Corredor Xingu foi de 0,48% enquanto no entorno os números chegaram a 7,79% (Rede Xingu+).

Caso seja também implantado o terminal de transbordo de Matupá, perdas econômicas advindas de emissões de CO2 pelo desmatamento ficariam no patamar de US$ 1 bilhão somente para as Terras Indígenas. Soma-se a isso a redução do volume anual de chuvas que em algumas regiões já atingiu uma diminuição de 48%,mais uma perda incalculável de serviços ambientais e da rica sociobiodiversidade da região.

Megaron lembra de outro impacto da Ferrogrão: o aumento do plantio de soja e milho no entorno e, com isso, o despejo de veneno na bacia do Xingu. “Quando chove na plantação, o veneno cai no rio, envenena os peixes e os animais que moram no Rio”, diz ele. “É a nossa comida. A gente come peixe e tracajá enveneado”, diz ele. “Eles não querem saber que o veneno faz mal para outras pessoas. Eles querem ter o dinheiro, comprar avião, carro, barco, comprar mais terra. É assim que os grandes plantadores pensam, não pensam no meio ambiente, nos outros, nos indígenas, nos ribeirinhos. Só neles. Eles querem ser ricos”, diz.

Outro ponto é o atropelamento de animais. Hoje, a balsa fecha durante a noite, impedindo o fluxo de caminhões nesse período, quando os animais ficam cegos com a luz dos carros. Com a ponte e um tráfego contínuo, é possível que aumente o número de animais silvestres atropelados. “A ponte vai prejudicar muito quem vive ali na aldeia Piaraçu (que fica na beira da rodovia). Vai ter muito acidente, muito atropelamento. A gente vê muito animal morrendo na cidade e não quer ver isso no nosso território”, afirma Beptuk Metuktire, jovem liderança Kayapó. “A gente tem muita crença na natureza, nosso Deus é a natureza. Quando um animal morre, a gente fica fraco, fica triste”, diz ele. “É ela que dá chuva, que dá água”. Ele afirma que, caso os não indígenas não consultem os indígenas, eles se farão ser escutados. “Se eles não ouvirem a gente, a gente vai ser escutado. A gente vai trancar a rodovia, bloquear a MT 322”, diz ele.

Ferrogrão e terras indígenas

Com quase mil quilômetros de extensão, partindo de Sinop, em Mato Grosso, até o distrito de Miritituba,no Pará, margem direita do rio Tapajós, o projeto de ferrovia é considerado prioritário pelo Governo Federal e tem por objetivo exclusivo atender ao escoamento de grãos produzidos em Mato Grosso pelos portos do Arco Norte.

Desde o anúncio do projeto, povos indígenas do Xingu e do Tapajós requerem o cumprimento de seu direito de Consulta Livre, Prévia e Informada sobre o empreendimento, ainda na etapa de planejamento. Os estudos de viabilidade econômica, técnica e ambiental identificaram impactos potenciais a 16 Terras Indígenas dos povos Munduruku, Panará, Kayapó e no Território Indígena do Xingu. No entanto, o poder público reconhece apenas as terras indígenas Praia do Índio e Praia do Mangue, ambas em Itaituba/PA, enquanto impactadas e afirma que apenas essas deverão ser consultadas sobre o projeto, já durante a etapa de licenciamento ambiental.

Em outubro de 2020, o Ministério Público Federal e associações indígenas de povos do Xingu ingressaram com uma Representação ao Tribunal de Contas da União (TCU) requerendo a devolução do projeto para a ANTT até que essa cumpra a Consulta a todos os povos potencialmente impactados. A Representação foi considerada procedente pelo MPTCU e ainda será levada à votação pelo relator ministro Aroldo Cedraz.

Ewesh explica a importância de a consulta ser feita tanto no processo de licenciamento quanto no de planejamento da ferrovia. Além disso, ressalta que as audiências públicas promovidas pelo governo não são a mesma coisa que consulta. “O Governo tem alegado que fez audiências públicas, mas isso é diferente de consulta prévia”, explica. “O direito de consulta é um instrumento onde os povos indígenas tomam decisão direta, participam no processo de decisão e a audiência é aberta para a sociedade mas não tem poder de decisão. Não pode confundir os dois institutos”, explica ele.

Desde março deste ano, os processos relacionados ao projeto encontram-se suspensos pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, que acatou pedido liminar da ADI-6553 sobre ilegalidade da Lei 13.452/2017 que resultou da conversão da Medida Provisória (MP) 758/2016 para desafetação de 832 hectares do Parque Nacional do Jamanxim para viabilizar o traçado da Ferrogrão.

Clara Roman
ISA
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