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Rede Wayuri e outras vozes nacionais se unem por um jornalismo livre, diverso e plural

Repórteres Sem Fronteiras organizaram o primeiro encontro nacional do Programa de Apoio ao Jornalismo, que contou com oito veículos independentes de quatro estados do Brasil
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Uma rede formada por oito veículos de mídia independente dos estados do Amazonas, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo se reuniu virtualmente entre 21 e 23 de julho no I Encontro Nacional do Pajor (Programa de Apoio ao Jornalismo), promovido pelos Repórteres Sem Fronteiras — organização dedicada à defesa da liberdade de imprensa e de expressão em 130 países há 35 anos.



Com o objetivo de articular essas organizações em rede, o encontro debateu temas relevantes para os comunicadores, como segurança física e digital, privacidade de dados e comunicação na era das plataformas digitais, além de perspectiva de gênero e raça no jornalismo.

“Queremos pensar 'jornalismos' no plural. Reforçamos que o exercício da atividade jornalística tem uma riqueza de linguagens e de vozes. E as experiências mais interessantes na América Latina mostram essa mistura de linguagens, de ativismo em direitos humanos e da comunicação popular que valoriza essa multiplicidade”, ressaltou o jornalista Artur Romeu, dos RSF para a América Latina, na abertura do encontro.

Para a organização, o primeiro desafio dos comunicadores na América Latina hoje é enfrentar o cenário de violência política “nas suas múltiplas expressões”, um elemento “muito estruturante dentro da política no contexto” regional. “Acompanhar jornalistas, denunciar os casos de violência e mapear os diferentes tipos de violência, inclusive como forma de censura, faz parte do nosso trabalho”, disse Romeu, lembrando que o Brasil é o segundo país na região com maior número de assassinatos de jornalistas, atrás apenas do México.

Ataques à imprensa e tentativas de descredibilização da mídia aumentaram durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) apontou em seu relatório “Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil” que o ano de 2020 foi o mais violento para os jornalistas brasileiros desde o início da série histórica na década de 1990. Foram 428 casos de violência, 105,77% a mais que os 208 registrados em 2019.
Bolsonaro foi responsável por 145 casos de descredibilização da imprensa, por meio de ataques a veículos de comunicação e profissionais, e outros 26 registros de agressões verbais, sendo duas ameaças diretas a jornalistas e dois ataques à Fenaj, totalizando 175 casos, o que corresponde a 40,89% do total.
Protocolos de segurança

A espionagem contra jornalistas e a abertura de processos judiciais abusivos tendem a crescer nos próximos meses com a aproximação das eleições de 2022, segundo os RSF. Por isso, a organização vai apoiar as organizações do Pajor a criarem protocolos de segurança física e digital para a cobertura eleitoral.



Nesse contexto, as mulheres comunicadoras ainda são o alvo preferencial da violência política, que tem grande viés misógino. Lis Santos, representante da ONU Mulheres, esteve presente no encontro do Pajor para sublinhar a importância de se fortalecer as redes de e promover ações de autocuidado, entendendo que as comunicadoras são defensoras de direitos humanos e precisam ser apoiadas e protegidas.

“Queremos apoiar a criação de uma estratégia coletiva para os grupos de mulheres comunicadoras se defenderem, as aproximando de coletivos jurídicos que possam prestar apoio, assim como também garantir ajuda psicossocial”, explicou Lis, que esteve ao lado de Giulliana Bianconi, da Gênero e Número, e da comunicadora Regiany Silva, do Nós, Mulheres da Periferia, no debate sobre gênero e jornalismo no encontro do Pajor.

Pesquisa da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) denominada Mulheres no Jornalismo Brasileiro e realizada com 477 mulheres jornalistas de 271 veículos de comunicação no Brasil em 2017, revelou diferentes violações que as comunicadoras enfrentam somente pelo fato de serem mulheres. Abusos, piadas e preconceito fazem parte do cotidiano dessas profissionais. A pesquisa mostrou, por exemplo, que 86,4% das entrevistadas já passaram por pelo menos uma situação de discriminação de gênero no trabalho.

Como forma de criar mecanismos de defesa, troca de experiências e fortalecimento de suas atividades, as comunicadoras no Brasil criaram a Rede de Jornalistas e Comunicadoras com Visão de Gênero e Raça, em novembro de 2020. O jornalismo tanto pode ser um reprodutor de preconceitos sociais como um agente transformador da sociedade em que está inserido. Com esse entendimento, a Rede visa colaborar com o debate sobre a democratização da comunicação, como por exemplo incluir nos cursos de jornalismo a perspectiva de gênero nos currículos.

Outro exemplo na América Latina é o projeto Mujeres Referentes, da Venezuela, desenvolvido pela Alianza Rebelde e Chicas Poderosas Venezuela, cujo principal objetivo é incluir mais vozes de mulheres especialistas e pessoas não binárias como fontes em matérias jornalísticas na imprensa venezuelana. A ideia é ter reportagens livres de qualquer forma de discriminação contra as mulheres, dizem os veículos que compõe a Alianza Rebelde.

Quem controla o menu controla as escolhas

Os pesquisadores Helena Martins, da Universidade Federal do Ceará, e Jonas Valente do Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), fizeram o debate “A nova hegemonia da comunicação é digital?”, no qual trouxeram provocações, inquietações e desafios da comunicação na era das plataformas digitais e da grande concentração de poder e capital na mão de corporações gigantes, como Google e Facebook.

Para os coletivos de mídia independente, os principais desafios são usar as plataformas, conhecer e segmentar a audiência, ampliar o impacto do trabalho jornalístico que está sendo feito e, ao mesmo tempo, não se tornar refém dessa forma de circulação e distribuição de conteúdo. Partindo do pressuposto que a tecnologia não é neutra e as plataformas tampouco: como utilizar as ferramentas para promover outros arranjos sociais mais democráticos e inclusivos e não se tornar parte da engrenagem desse sistema de desigualdades?



Também: quais audiências devemos disputar? “Likes” e métricas podem ser ilusórias e não fazerem diferença no reconhecimento do trabalho dos veículos de comunicação. Entre as inquietações dos grupos estava a questão da ‘tiktokização’ da produção de conteúdos para viralizar nas redes, fazendo referência ao TikTok, aplicativo de mídia para criar e compartilhar vídeos curtos, de preferência engraçados.

Helena e Jonas ressaltaram a importância dos veículos de mídia observarem que as novas tecnologias podem ajudar a criar formas de expressão, assim como também servirem de instrumento de luta por direitos. Ao mesmo tempo, porém, são uma ferramenta poderosa de reprodução das opressões, de dominação e vigilância. Muitas dessas plataformas vêm usando a regulação tecnológica para desmobilizar o debate político. Também, se tornaram grandes plataformas de comercialização — agentes intermediários que mercantilizam a capacidade de conectar indivíduos, coletar e processar dados para uma publicidade cada vez mais assertiva e segmentada.

Além disso, trabalhando na lógica da recompensa a partir de estudos e análises de comportamentos, as plataformas ditam cada vez mais a forma como as pessoas consomem, se relacionam e fazem suas escolhas. Jonas Valente citou os estudos do cientista do comportamento BJ Fogg, da Universidade de Stanford, denominado captologia, cujo prefixo Capt é acrônimo de “Computers as Persuasive Technologies” (Computadores como tecnologias persuasivas). O estudo aplica princípios da Psicologia às áreas de Tecnologia e Design. O objetivo é estimular a criação de hábitos dos usuários de tecnologias digitais interativas, como celulares, computadores e videogames.

Intercâmbio

Os oito veículos de mídia apoiados pelo Pajor são: Ação Comunitária Caranguejo Uçá (localizado na Ilha de Deus, território pesqueiro do Recife), Alma Preta (agência de notícias pautada nas questões raciais criada por jovens da Universidade Estadual Paulista), Amazônia Real (principal agência independente de notícias sobre a Amazônia, com sede em Manaus), Data_Labe (laboratório de dados e narrativas na favela da Maré, no Rio de Janeiro), Fala Roça (jornal feito por e para moradores da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro), Marco Zero Conteúdo (agência de notícias de Recife focada em pautas de direitos humanos), Nós, Mulheres da Periferia (coletivo formado por mulheres de bairros periféricos de São Paulo) e a Rede Wayuri de comunicadores Indígenas do Rio Negro, localizada em São Gabriel da Cachoeira, que conta com a parceria do Instituto Socioambiental (ISA).

“Nós, da Rede Wayuri, apresentamos o trabalho do Data Labe, que atua na favela da Maré no Rio de Janeiro, e eles nos apresentaram durante o encontro. Foi uma partilha muito rica porque cada um tem uma bandeira de luta para trabalhar com a comunicação e direitos. Surge assim o interesse ainda maior da gente querer fazer intercâmbio, conhecer o dia a dia e as comunidades onde essas organizações atuam. O Data Labe também faz podcasts como nós da Rede Wayuri e assim a gente vai se identificando um com o outro. Também vimos coletivos que lutam pelos direitos das mulheres e isso ainda nos estimulou mais a dar voz para as nossas mulheres indígenas”, comentou Claudia Ferraz, comunicadora do povo Wanano, que participou do encontro representando a Rede Wayuri.



A ideia é que nos próximos meses os oito coletivos possam produzir reportagens colaborativas e realizar intercâmbios. O Pajor faz parte da iniciativa internacional Defending Voices, desenvolvida em parceria com a Repórteres sem Fronteiras Alemanha (Reporter ohne Grenzen) e financiada pelo Ministério da Cooperação e Desenvolvimento alemão (Bundesministerium für wirtschaftliche Zusammenarbeit und Entwicklung - BMZ).

A iniciativa também inclui um braço de atuação no México organizado pela ONG Propuesta Cívica, cujo objetivo é implementar uma série de ações destinadas a reverter práticas e marcos regulatórios que minam a liberdade de imprensa no país, buscando ainda justiça e reparação de danos para jornalistas, e seus familiares, que tenham sido vítimas de violações dos direitos humanos.

*Juliana Radler - jornalista do ISA em São Gabriel da Cachoeira e assessora da Rede Wayuri - foi uma das participantes do I Encontro Nacional do Pajor dos Repórteres Sem Fronteiras

Juliana Radler*
ISA
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