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Marco temporal fere direitos indígenas e prejudica o Brasil

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Samara Pataxó, advogada indígena e assessora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib);
Deborah Duprat, subprocuradora-geral da República aposentada;
Juliana de Paula Batista, advogada e assessora jurídica do ISA

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro nunca fez questão de preservar aparências. Eleito disparando preconceitos, tem como alvo principal os povos originários: “Se eu assumir, índio não terá mais um centímetro de terra”, disse, ainda candidato.

Acontece que vivemos numa democracia, e mesmo Jair Bolsonaro deve obediência à Constituição. Desde 5 de outubro de 1988, quando a Carta que ficou conhecida como Cidadã foi promulgada, os indígenas têm os mesmos direitos e deveres que qualquer brasileiro. Além disso, ela lhes garantiu, no papel, a posse de suas terras e que fossem respeitados seus costumes e tradições.

Essa conquista não caiu do céu, é fruto de muita luta. E a paz definitiva ainda não chegou.
Passados mais de 30 anos, não há criança indígena que cresça sem se preocupar com o futuro de sua comunidade. As mulheres são afetadas pela violência de gênero por parte de invasores, pela vulnerabilidade alimentar —que impacta seus filhos— e por empreendimentos que comprometem a qualidade da água e do solo. Todos esses problemas são estimulados e potencializados pela insegurança territorial.

Um caso importantíssimo para os povos indígenas começará a ser analisado no Supremo Tribunal Federal (STF) em 25 de agosto. O julgamento do recurso extraordinário 1.017.365, de repercussão geral, pode lhes garantir a tão sonhada paz, afastando de vez um fantasma que há anos os assombra: o marco temporal.

Essa malfadada tese pretende afirmar que só teriam direito às suas terras ancestrais os povos que as estivessem ocupando no dia da promulgação da atual Constituição, mesmo que dela tenham sido afastados pelo uso da violência. Caso prevaleça, poderá inviabilizar a demarcação de novos territórios.

O “marco temporal”, porém, não resiste minimamente a alguns questionamentos. Para começar, ele sequer foi previsto na Carta Magna —que, em seu artigo 3º, busca justamente superar um passado de dominação e privilégios, e fazer nossa sociedade avançar rumo a um futuro mais justo e igualitário.

É um absurdo supor que direitos adquiridos deixem de existir, ainda mais a partir de uma data retroativa. O que aconteceria com os indígenas que não estivessem na posse de suas terras tradicionais em 5 de outubro de 1988? Seriam condenados ao degredo? Não poderiam mais exercer seus direitos identitários?

Em 28 de novembro de 2007, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso "Saramaka versus Suriname", reconheceu que a América foi marcada pela expropriação dos territórios dos povos originários, e que estes foram reconstituindo sua vida coletiva nesse processo de diáspora. Por isso, o momento em que uma terra passa a ser ocupada de modo tradicional é absolutamente irrelevante para o fim de se afirmar direitos territoriais. O próprio STF reconhece que “não há índio sem terra”.

Quando a Constituição determina que as terras tradicionalmente indígenas assim se definem a partir dos “usos, costumes e tradições” de cada povo, certamente também colocou sob essa perspectiva as noções de ocupação e de abandono. Os povos indígenas não querem recuperar Copacabana ou Ipanema, porque elas já não são áreas tradicionais. Muitas outras, no entanto, o são e estão agonizando à falta de determinação do Executivo federal. A luta por direitos territoriais indígenas já supera 500 anos.

Eles não se perderão, pois definem a sua própria existência.

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