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Fachin rejeita ‘marco temporal’ em voto histórico a favor dos direitos indígenas no STF

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Ministro relator reafirma manifestação divulgada em junho, numa vitória para povos indígenas. Análise do caso será retomada na quarta (15)
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Reportagem e edição: Oswaldo Braga de Souza
Texto atualizado em 11/9/2021, às 13:00.

O relator do julgamento que pode definir o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TI) no Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, rejeitou, uma a uma, as principais teses ruralistas em debate. Rechaçou a existência de um "marco temporal" para o reconhecimento dessas áreas e de uma jurisprudência consolidada sobre o tema. Também afirmou que o direito territorial indígena é "originário", "fundamental" e cláusula pétrea da Constituição (leia mais abaixo).

Lido entre anteontem e ontem (9), o voto do ministro pode ser considerado uma vitória para os povos indígenas. Ele já havia divulgado o texto, em junho. Poderia modificá-lo, mas optou por manter o mesmo conteúdo.

Após a manifestação de Fachin, no final da tarde de ontem, o ministro Nunes Marques começou a ler seu relatório (sobre o histórico do processo) e a introdução de seu voto, com preliminares sobre legislação e precedentes jurídicos. Antes de entrar nas questões de mérito, a sessão foi suspensa. A análise do caso será retomada na próxima quarta (15), com a parte final do voto de Marques.

Ele era considerado um dos mais cotados para pedir “vistas”, o que suspenderia o julgamento até uma data incerta. Como já iniciou o voto, não deve fazer isso. Agora, as apostas são sobre se a solicitação será feita de fato e por quem.

É a quarta vez que a apreciação do caso é interrompida, desde que foi iniciada, no dia 26/8. Antes disso, só neste ano, havia sido adiada quatro vezes: em 11, 30 e 31/6 e em 25/8. As sessões do plenário do Supremo ocorrem apenas às quartas e quintas, entre às 14h e 18h.


Tensão política

O julgamento caminha para sua quarta semana em meio ao recrudescimento da tensão política. Recentemente, Jair Bolsonaro sugeriu que poderia não acatar uma eventual decisão contra os ruralistas e disse que ela poderia comprometer a produção agropecuária e o estoque de terras disponíveis no país, o que não é verdade. Na semana passada, disse esperar que “alguém peça vista” e “sente em cima do processo”, conforme informou Bernardo Mello Franco, no jornal O Globo.

No feriado da Independência (7), os bolsonaristas realizaram novas manifestações golpistas, com pedidos de “intervenção militar”, ataques ao STF e ao Congresso. O presidente participou dos protestos em Brasília e São Paulo. Em sua tática habitual, redobrou ameaças ao Supremo para tentar aumentar a temperatura da crise. O presidente da corte, Luiz Fux, respondeu com discurso duro, no início da sessão de anteontem.

Na segunda, após derrubarem bloqueios perto da rodoviária da capital federal, os manifestantes estacionaram caminhões na Esplanada dos Ministérios. Alguns tentaram furar outra barreira na altura do Congresso, instalada para impedir a entrada na Praça dos Três Poderes, mas não conseguiram. O receio era que tentassem invadir o Supremo e o parlamento.

No mesmo dia, em um vídeo, um dos organizadores do movimento chegou a ameaçar o acampamento da II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas que está há poucos quilômetros dali. Por questão de segurança, as cinco mil participantes da mobilização preferiram suspender as passeatas previstas para anteontem e ontem. A manifestação acabou acontecendo na manhã desta sexta (10).

Os bolsonaristas começaram a deixar a Esplanada só no final da tarde desta quinta, após Bolsonaro pedir a desmobilização dos apoiadores e publicar uma nota, tentando apaziguar o clima de confronto político que ele mesmo insuflou.

Marco temporal

Em seu voto, Edson Fachin rejeitou categoricamente o “marco temporal”. Para ele, admitir uma data específica para reconhecer as TIs seria impedir “o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania” dos indígenas. “A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal”, sentenciou.

O "marco temporal" é uma interpretação ruralista que restringe os direitos dessas populações ao estipular que só poderiam ser demarcados territórios sob a sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, elas precisariam comprovar que haviam sido expulsas à força de suas terras, o chamado “renitente esbulho”, por meio de disputa judicial ou em campo.

Para o movimento social, ambientalistas e defensores dos direitos humanos, a tese é injusta porque desconsidera as remoções forçadas e outras violências sofridas por esses grupos até 1988. Também ignora que, até essa época, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente. Na época, nenhuma comunidade estava preocupada em produzir provas sobre sua ocupação ou o conflito por uma área.


Direito originário

Fachin também reforçou que o direito indígena à terra é "originário", ou seja, anterior à formação do próprio Estado brasileiro e independe das demarcações. Nessa visão, elas são apenas um ato administrativo declaratório, destinado a dar segurança jurídica aos direitos pré-existentes dos indígenas. “O procedimento demarcatório não constitui terra indígena em nenhuma de suas fases, mas apenas reconhece a existência da posse tradicional preexistente”, continuou.

O entendimento é um dos mais importantes do voto porque a ideia de que a oficialização das TIs só teria efeito jurídico definitivo após sua conclusão tem sido usada pela administração federal para deslegitimar territórios indígenas cujo reconhecimento não foi finalizado e negar assistência aos seus moradores, inclusive no combate à pandemia. A justificativa vem sendo igualmente usada nas ações judiciais propostas contra as demarcações. A manifestação de Fachin reforça que o argumento não tem fundamentação legal.

O magistrado também rechaçou a tese do “renitente esbulho”, concordando com argumento de que nem sempre foi possível às populações indígenas manter conflito judicial ou físico por suas terras - o que não significa que haviam desistido de suas reivindicações sobre elas.

“O voto de Fachin foi muito importante e favorável aos direitos constitucionais dos povos indígenas”, comenta Samara Pataxó, uma das coordenadoras jurídicas da Articulação dos povos indígenas do Brasil (Apib). “Na próxima semana, o ministro Nunes Marques vai entrar no mérito do seu voto, no qual pode concordar com o voto do relator, o que seria muito positivo para os direitos territoriais dos povos indígenas, mas pode também divergir, no todo ou em parte”, explica a advogada.

Cláusula pétrea

Fachin defendeu ainda que o direito indígena à terra é “cláusula pétrea” e “fundamental”. No primeiro caso, trata-se de um dispositivo constitucional que não pode ser alterado. No segundo, uma prerrogativa que não pode ser restringida.

“Por se tratar de direito fundamental, aplica-se aos direitos indígenas a vedação ao retrocesso e a proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que atrelados à própria condição de existência e sobrevivência das comunidades [indígenas] e de seu modo de viver”, asseverou.

O entendimento pode colocar na berlinda o Projeto de Lei (PL) 490/2007. A proposta institucionaliza o “marco temporal” e, se aprovada, na prática vai inviabilizar as demarcações e até permitir a anulação de TIs. Se a posição do magistrado prevalecer, a tramitação ou a aprovação do projeto não estaria proibida, mas as pressões por sua rejeição aumentariam, uma vez que uma eventual lei baseada no PL seria questionada no STF e estaria fadada à declaração de inconstitucionalidade. Em seu voto, o ministro ressaltou que os direitos indígenas “estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais”.

Caso Raposa Serra do Sol

Outra tese ruralista central condenada por Fachin é a de que já há jurisprudência sobre as demarcações e ela baseia-se na decisão sobre caso da TI Raposa Serra do Sol (RR), julgado pelo Supremo em 2009. O ministro decidiu que esse precedente foi formulado para resolver uma situação particular e não pode ser aplicado sem critério às outras TIs do país.

“Embora [a] decisão [de 2009] tenha a eficácia de coisa julgada material em relação à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ela não incide automaticamente às demais demarcações de áreas de ocupação tradicional indígena no País”, argumentou.

A decisão sobre o território indígena de Roraima estabeleceu uma série de restrições aos direitos indígenas, inclusive o “marco temporal”, e abriu caminho a uma onda de ações judiciais contra os procedimentos demarcatórios.


Em 2017, a Advocacia-Geral da União (AGU) publicou um parecer, de número 001, orientando as procuradorias especializadas dos órgãos federais envolvidos no tema a aplicar essas restrições. Em determinação de maio de 2020, que também está sendo analisada agora, Fachin suspendeu a norma. Agora, defendeu sua anulação.

Na mesma decisão do ano passado, o ministro ordenou ainda a suspensão dos processos judiciais sobre os procedimentos demarcatórios em função da pandemia da Covid-19. O magistrado argumentou que sentenças contra as comunidades indígenas poderiam inviabilizar sua subsistência num momento de extrema vulnerabilidade. No voto lido nesta semana, reafirmou a mesma coisa, levando em consideração a manutenção da crise sanitária.

“O voto do ministro Fachin reforça, em vários pontos, a jurisprudência histórica do STF. É importantíssimo que o tribunal reafirme os direitos indígenas previstos na Constituição e rechace qualquer marco temporal objetivo ou formas de comprovação do renitente esbulho”, analisa Juliana de Paula Batista, advogada do ISA, que é um dos amici curiae (“amigos da causa”) do caso - pessoas ou organizações que auxiliam as partes e oferecem subsídios ao processo.

“Como já destacou o ministro Ricardo Lewandowski, quando julgou o caso sobre a titulação das terras dos quilombolas, comprovar as expulsões por conflitos de fato que tenham perdurado até 1988 ou por ações ajuizadas nesta data é verdadeira ‘prova diabólica’, ou seja, prova impossível de ser feita. Essas teorias têm o objetivo de transformar as demarcações em um debate administrativo e judicial infindável, transferindo para os violentados o ônus de provar as violências. É muito arbitrário”, destaca.

Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ

Fachin também deu provimento ao recurso da Funai que questiona a reintegração de posse movida, em 2009, pelo governo de Santa Catarina sobre um trecho da TI Ibirama-La Klãnõ (SC), do povo Xokleng, ação que originou o processo em análise no STF. Se mantida a decisão do ministro, o caso deverá ser devolvido ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) para que seja proferida nova decisão com base nas teses que serão fixadas agora no Supremo.


A ação chegou à corte, em 2016, e foi elevada à categoria de “repercussão geral” em 2019. Isso significa que a decisão sobre ela servirá de diretriz para a gestão federal e o Judiciário no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios. Essa mesma determinação também foi usada por Fachin para argumentar que, até agora, não havia uma jurisprudência consolidada sobre o assunto no STF, ao contrário do que repetem os ruralistas.

Outro entendimento de Fachin comemorado pelo movimento indígena foi o de que são, sim, legais os estudos para ampliação dos territórios indígenas. Previsão contrária também constava da decisão final sobre o caso Raposa Serra do Sol.

Se prevalecer, o posicionamento do ministro deve impactar outra ação contrária à TI Ibirama-La Klãnõ. Nesse caso, o governo de Santa Catarina questiona o que considera a “ampliação” do território, de cerca de 14 mil hectares para 37 mil hectares.

A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaigang e Guarani. Está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste de Florianópolis. Foi identificada pela Funai, em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, em 2003.

Tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrastou por todo o século XX, quando foi reduzida drasticamente. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.

Os Xokleng habitavam grandes extensões em toda a Região Sul. Em Santa Catarina, com a chegada dos colonizadores, seu território foi reduzido gradualmente à porção hoje existente, no leste do estado. Em 1914, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) reservou 40 mil hectares para a comunidade. Em 1956, a demarcação foi oficializada, mas com apenas 14 mil hectares.

Em 1975, os indígenas habitavam em apenas 15% desses 14 mil hectares. O resto era mata preservada. Um decreto federal declarou como de utilidade pública parte da terra, para a construção de uma barragem no Rio Itajaí do Norte. A represa foi construída, em 1992, na única área agricultável do território e a comunidade foi obrigada a se retirar de lá.

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