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As desinformações, distorções e mentiras de Bolsonaro na ONU

Leia checagem feita pelo ISA de trechos do discurso de Jair Bolsonaro na assembleia geral da ONU
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Reportagem: Oswaldo Braga de Souza
Edição e revisão: Antonio Oviedo, Carolina Fasolo e Oswaldo Braga de Souza
Texto atualizado em 21/9/2021, às 22:30

Jair Bolsonaro é conhecido por divulgar informações falsas. Desde o início de seu mandato presidencial, é alvo constante das agências de checagem. Em geral, não se preocupa muito com a audiência ou o espaço em que está ao dizer inverdades.

Na manhã desta terça (21), abriu a 76ª assembleia geral das Nações Unidas, realizada em Nova Iorque, e não se fez de rogado. Como ocorreu em outros eventos internacionais desde que foi eleito, promoveu um festival de desinformação, mentiras, meias-verdades e dados pinçados fora de contexto, em especial em relação ao meio ambiente e aos direitos indígenas (leia o discurso na íntegra).

A reportagem do ISA acompanhou o discurso e checou as informações sobre temas socioambientais. Leia abaixo o resultado.

Afirmação:

“O Brasil é um país com dimensões continentais, com grandes desafios ambientais. São 8,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 66% são vegetação nativa, a mesma desde o seu descobrimento, em 1500.”

Resposta: fora de contexto; falso

Obviamente, não temos a mesma cobertura vegetal nativa de 1500. Na época, praticamente 100% do país era coberto por vegetação que pode ser considerada “primária”, original.

É verdade que, hoje, cerca de 66% do Brasil está coberto com vegetação nativa, mas isso não quer dizer que tenhamos uma situação tranquila em termos de conservação. Justamente por causa das dimensões continentais, há diferentes situações regionais e números genéricos podem enganar.

Mesmo nos 66% de vegetação nativa, cerca de 9% já foram desmatados pelo menos uma vez nos últimos 35 anos e mais de 20% estão degradados por fogo ou exploração de madeira, conforme dado recolhido pelo site de checagem Fakebook.

Há outros países com percentual de vegetação nativa maior que o Brasil, a exemplo da Rússia (70%), Japão (68%) e Suécia (68%), conforme dados do Banco Mundial e do MapBiomas.

Bolsonaro omite a informação de que o Brasil é líder mundial em destruição de florestas tropicais. De acordo com a Global Forest Watch, o país concentra em torno de um terço de toda a perda de florestas tropicais primárias.

Em 2020, cerca de 30% do Pantanal foi destruído por incêndios. Parte da tragédia deveu-se à omissão do governo, que já sabia, desde o início do ano, que teríamos uma temporada intensa de queimadas. Além disso, restam apenas cerca de 12% do bioma Mata Atlântica e em torno de metade do Cerrado e da Caatinga já foram desmatados.

Hoje, não há dúvida de que a destruição da vegetação nativa tem influência na produção de extremos climáticos e nas crises hídricas que atravessamos, como a que deixou São Paulo sem água em 2014. O estado tem em torno de 20% de vegetação nativa e ela está distribuída de forma bastante desigual. Seria necessário aumentar a cobertura vegetal em muitas regiões do país para evitar problemas como esse.

Afirmação:

“Na Amazônia, tivemos uma redução de 32% do desmatamento no mês de agosto, quando comparado a agosto do ano anterior.”

Resposta: verdadeiro, mas

É verdade que, de acordo com os dados oficiais do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os alertas de desmatamento apresentaram uma redução de 32% para o mês de agosto.

O sistema de monitoramento independente do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o SAD, no entanto, identificou um aumento de 7% no desmatamento na comparação entre agosto 2020 e agosto 2021, o que mostra que as variações deste ano e do ano passado são ínfimas, menores do que 10%.

Além disso, é preciso considerar também o contexto mais geral de destruição do bioma, em período de tempo maior. Entre 2019 e 2020, o Brasil bateu recordes de desmatamento na Amazônia, com as maiores taxas oficiais da década, acima de 10 mil quilômetros quadrados, segundo o sistema Prodes, também do Inpe, que mede a taxa oficial de desflorestamento. A série de dados obtidos até agora indica que não há tendência de queda da taxa para 2021.

Nas terras públicas regularizadas, como as Terras Indígenas e Unidades de Conservação federais, por exemplo, o aumento do desmatamento durante os dois anos de governo Bolsonaro foi de 48,3% em comparação com os dois anos anteriores ao seu governo.

Depois de bons resultados obtidos pelo plano de controle do desmatamento na Amazônia, entre 2004 e 2012, os dados indicam um retrocesso de quase 12 anos. É verdade que o desmatamento voltou a crescer depois de 2012, mas isso ocorreu por causa da flexibilização do Código Florestal, entre outros motivos, e o patamar do governo Bolsonaro está acima da média da década.

Se levarmos em conta outras formas de destruição da floresta, como a exploração ilegal de madeira, o garimpo ilegal e incêndios criminosos, a situação também não é boa. Quando analisamos o período de agosto de 2020 e agosto de 2021, adotando todas as classes do Deter (desmatamento, degradação florestal, mineração e queimadas) o nível de destruição é praticamente o mesmo, com uma redução de apenas 8%.

Afirmação:

“Qual país do mundo tem uma política de preservação ambiental como a nossa?”

Resposta: falso

Não é verdade que a legislação e a política ambientais do Brasil sejam as mais restritivas do mundo. “Há muitas outras nações com leis igualmente rígidas de proteção florestal”, afirma estudo comparativo realizado pelo Imazon sobre o Código Florestal brasileiro.

Neste ponto, Bolsonaro também omite o esforço sistemático de seu próprio governo de desmontar a legislação, as políticas e os órgãos de fiscalização ambiental. Cientistas são unânimes em afirmar que iniciativas como essas estimulam a derrubada da floresta.

Durante seu mandato, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) foi engavetado, sem que outra iniciativa equivalente tenha sido colocada em prática. A política para a implementação do Código Florestal em nível nacional também está paralisada.

Mecanismos importantes de financiamento de projetos de combate ao desmatamento, conservação e uso sustentável da floresta foram paralisados, a exemplo do Fundo Clima e do Fundo Amazônia. Quase R$ 3 bilhões destinados a esses fins estão parados no Fundo Amazônia. Foi ainda no governo Bolsonaro que tentou-se extinguir a norma de fiscalização sobre a exportação de madeira nativa, por exemplo.

É bom lembrar ainda o apoio dado pelo governo para a aprovação no Congresso de projetos que enfraquecem o licenciamento ambiental, promovem a legalização da grilagem de terras e o desmonte do mesmo Código Florestal.

Afirmação:

“Somente no bioma amazônico, 84% da floresta está intacta, abrigando a maior biodiversidade do planeta.”

Resposta: falso

Dados do Inpe mostram que o desmatamento acumulado hoje corresponde a cerca de 20% do bioma amazônico, permanecendo 80% de pé, e não 84%.

Ainda que o percentual citado por Bolsonaro estivesse correto, isso não significa que toda a floresta remanescente está “conservada”. Não se sabe exatamente qual a porcentagem de áreas degradadas no bioma (com exploração seletiva de madeira e outros tipos de degradação), mas um estudo indicou que, até 2013, essa área seria de 1,2 milhão de km². Isso significa que 40% da Amazônia pode estar sob alguma pressão da destruição.

Afirmação:

“O Brasil já é um exemplo na geração de energia com 83% advinda de fontes renováveis.”

Resposta: falso

Segundo o site Our World in Data, com base nas estatísticas de energia da BP, em 2019 o Brasil tinha 45% da matriz energética em fontes renováveis. É menos que Islândia (79%) e Noruega (66%). Apesar disso, o Brasil não tem um plano para descarbonização da economia no longo prazo e ainda considera o uso de combustíveis fósseis como uma de suas principais fontes, apesar da poluição que causam e do potencial de energia limpa do país, ainda conforme o site de checagem Fakebook.

Além disso, vivemos uma crise hídrica histórica, sem saber se teremos água e energia a partir do fim do ano, com risco de apagões, por causa da ausência de gestão no setor. Igualmente, havia informações de que o ano seria de seca histórica, mas não houve nenhuma ação preventiva. O governo insiste em não adotar o horário de verão, por exemplo.

Afirmação:

"14% do território nacional, ou seja, mais de 110 milhões de hectares, uma área equivalente a Alemanha e França juntas, é destinada às reservas indígenas."

Resposta: fora de contexto

É verdade que quase 14% do país é ocupado por Terras Indígenas, considerando processos de demarcação já abertos na Fundação Nacional do Índio (Funai), mas, novamente, pinçar um número geral abre brecha para distorções. Mais de 98% da extensão delas fica na Amazônia Legal. Fora da região, onde está a principal demanda por demarcações, apenas 0,6% do território brasileiro é ocupado por essas áreas protegidas.

Na maioria dos estados, o percentual do território ocupado pelas Terras Indígenas é mínimo. Onde há mais conflitos com TIs, o percentual do território ocupado por elas também é ínfimo, considerando procedimentos demarcatórios já iniciados. No Rio Grande do Sul, é de 0,4%, enquanto as propriedades rurais ocupam 77%; e assim por diante: BA (0,5% e 49%, respectivamente); PR (0,6% e 74%); SC (0,8% e 67%); MS (2,4% e 85%). A situação não é diferente em GO (0,1% e 77%), MG (0,2% e 65%) e SP (0,3% e 66%).

No Brasil, as áreas privadas somam 41% do território nacional, três vezes mais que a extensão ocupada pelas Terras Indígenas, segundo o Censo Agropecuário 2017 do IBGE. Cerca de 20% do país está hoje em 51,2 mil propriedades ou 1% dos estabelecimentos rurais, de acordo com a mesma fonte. Na verdade, o número de grandes latifundiários é menor, porque muitas áreas estão em nome de parentes ou prepostos.

Além disso, a média mundial de território ocupado por áreas indígenas é maior: 15%, segundo estudo publicado por 20 pesquisadores de várias nacionalidades, em 2018, na revista Nature Sustainability.

Afirmação:

"Nessas regiões, 600.000 índios vivem em liberdade e cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades."

Resposta: fora de contexto

Aqui, o presidente oculta ainda que milhares de indígenas têm se manifestado reiteradamente em defesa de seus direitos territoriais, para que possam viver em suas terras desenvolvendo suas atividades econômicas baseadas em seu modo de vida. A proposta do governo por trás dessa frase é de que as Terras Indígenas sejam áreas de expansão do agronegócio.

Em relação à “liberdade” citada pelo presidente, os dados oficiais do Inpe mostram o contrário: no Brasil, não há garantia de liberdade aos povos indígenas, e sim violações de direitos. O desmatamento no interior das Terras Indígenas durante o governo Bolsonaro aumentou 100%, em comparação com a média dos últimos 10 anos anteriores ao seu governo. O garimpo ilegal no interior dessas áreas, durante os dois anos do governo Bolsonaro, aumentou 126%, em comparação com os dois anos anteriores. Nas Terras Indígenas com presença de povos isolados, esse aumento foi de 1.450%.

Os dados do Código Florestal mencionados em sua fala revelam crimes ambientais e violações de direitos. Os registros irregulares do Cadastro Ambiental Rural (CAR) no interior das Terras Indígenas aumentaram 31% em comparação com o ano de 2018. E grande parte do desmatamento que ocorre nos territórios indígenas está localizado exatamente naquelas onde constam registros irregulares do CAR - atualmente 323 áreas.

Afirmação:

“Nossa moderna e sustentável agricultura de baixo carbono alimenta mais de 1 bilhão de pessoas no mundo e utiliza apenas 8% do território nacional.”

Resposta: impreciso

Essa é a área de agricultura, sem considerar a pecuária, que ocupa em torno de 22% do território nacional (e metade disso tem algum grau de degradação). Além disso, não é possível considerar que toda agricultura no País seja de baixo carbono. O governo mantém um programa de agricultura de baixo carbono que financia apenas 2% do crédito agrícola nacional.

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