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Por Victória Martins
“Eu nasci mulher, indígena, em um território que não era originalmente meu, filha de mãe solteira. Isso já me tornou ativista. [O ativismo começa] quando você percebe que faz parte de um núcleo que não está dentro do padrão estabelecido pela sociedade em que você pertence”.
A palavra ‘resistir’ nunca foi estranha à Angela Kaxuyana, que, desde os primeiros momentos de vida, ajuda a garantir a existência cultural e territorial do seu povo. Parte da primeira geração de indígenas Kahyana nascida no Parque Indígena do Tumucumaque, na fronteira entre o Brasil e o Suriname, sua trajetória pessoal e de luta estão entrelaçadas a histórias de deslocamento forçado e retomada do território.
Originários da região do Rio Cachorro e do Rio Trombetas (PA), vários povos Kaxuyana/Kahyana - incluindo os avós e a mãe de Angela - foram levados ao Parque do Tumucumaque no final da década de 1960 pela Força Aérea Brasileira e por grupos de missionários. “Transferência essa que eu considero uma violência,” ela pontua. “A violência causada a nós foi vestida de bondade, de nos ajudar [uma vez que esta foi uma tentativa de evitar o extermínio do povo após sucessivas epidemias], mas foi tão dolorida quanto, porque muitos morreram, deixaram seu território, suas roças…”.
O território originário, ela lembra, ficava em uma região de floresta densa, totalmente diferente do que seu povo encontrou na nova localidade: uma área que era, em sua maioria, de savana. Além disso, era um espaço em que outras etnias, como os Aranisso, os Pïrpyana e os Tarëno, já viviam.
“Minha infância e juventude foram totalmente aguerridas, no sentido de você sempre resistir dentro do território indígena, de você sempre manter a sua essência enquanto Yana,” conta. “Isso foi um aprendizado que meu próprio povo definiu como estratégia, de dizer ‘nós não podemos perder o sentido de ser Kahyana, de falar a nossa língua, porque nós vamos voltar [para o território original] logo’.”
Crescendo neste contexto e sentindo que precisava constantemente se autoafirmar enquanto uma menina jovem, que tinha outro território como casa e vinha de um modelo familiar ‘diferente’ - já que sua mãe não era casada - Angela sempre se posicionou em relação ao que acreditava e, desde jovem, procurou participar da vida política do seu povo. Ao passo em que tomava voz e se tornava uma protagonista, ganhou um importante aliado: seu professor de escola, Juventino Kaxuyana.
“Ele é uma referência de liderança para mim, sempre permitiu que nós mulheres tivéssemos o mesmo espaço que os homens na política interna,” lembra. Os homens, diz, estavam em um posto diferenciado, uma vez que tinham mais oportunidade de sair da aldeia para estudar e aprender português. Mas, com o acolhimento de seu professor, Angela encontrou a chance de participar da luta junto ao seu povo e se tornar uma liderança. “Eu sempre tive esse suporte para a minha fala, o meu posicionamento, a minha atuação, de dizer: ‘vai, porque você é a nossa voz’.”
E ela foi. Mais velha, mudou-se para Belém para estudar, onde se formou em Administração de Empresas e, depois, se pós-graduou em Gestão e Auditoria Ambiental. Mais ou menos no mesmo período, no fim dos anos 1990, sua mãe, suas irmãs e outros do seu povo decidiram, por conta própria, retornar para o território original. Ela estava na universidade, em 2003, quando recebeu a notícia de que os Kahyana, Katxuyana e Tunayana estavam pedindo oficialmente à Fundação Nacional do Índio (Funai) que reconhecesse seu território: a Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana (PA).
“[Começa] a se travar a luta pela demarcação, e acho que [é quando], visivelmente, começam a perceber sobre o meu papel, a minha incidência e o que eu represento dentro do povo”, explica. A Terra Indígena foi declarada em 2018, mas ainda aguarda a conclusão do processo demarcatório, travado desde a chegada de Jair Bolsonaro à presidência.
“Eu fui criada escutando histórias e visualizando mentalmente a existência desse território. E uma das promessas que eu fazia para meus avós era de que, um dia, eu ia levá-los de volta para a nossa casa”, conta. Seu avô, infelizmente, “morreu na casa dos outros”, ainda no Parque Indígena do Tumucumaque. Mas, com a retomada do território, Angela e suas irmãs puderam cumprir a promessa com a avó.
“[Nós] falamos: ‘vamos voltar para a nossa antiga aldeia [onde os avós viviam]. Mas não sabíamos qual era a nossa antiga aldeia. [Minhas irmãs] subiram o rio Kahu (Cachorro), encontraram um local, abriram a aldeia e nós fomos buscar a minha avó no Parque do Tumucumaque”, recorda. Quando chegaram à nova aldeia com a avó, não havia dúvidas: tinha sido aberta no mesmo local onde ficava a aldeia que ela precisou abandonar. “Ou seja, as minhas irmãs, sem saber, reabriram a antiga aldeia dos meus avós. E essa foi a missão cumprida”, se emociona.
Foi um dos momentos mais marcantes de sua trajetória. “Durante esses anos todos de movimento, de luta, viagem, fala, perseguição, encontros com lideranças, eu pensei em desistir muitas vezes. Eu pensei em parar tudo e voltar para a aldeia,” explica. “[Mas] quando você se depara com algo assim, você não tem ideia do quanto vale a pena”, diz.
Foi em Belém, ainda, que Angela deu novos passos em direção à participação no movimento indígena local. Ela, que já integrava a AIKATUK (Associação Indígena Kaxuyana, Kahyana e Tunayana), se aproximou do movimento indígena estadual e, junto a outras lideranças, ajudou a fundar a FEPIPA - Federação dos Povos Indígenas do Pará.
Sua atuação a nível local lhe rendeu um convite de Nara Baré para compor a coordenação executiva da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), maior organização indígena da Amazônia brasileira. Eleita, passou a integrar a organização no mesmo momento em que, pela primeira vez, uma mulher - Nara - assumia a liderança da coordenação.
“Esse foi o primeiro desafio: entrar na coordenação executiva de uma das maiores organizações indígenas e acreditar, somar, fazer efetivamente com que a Coiab seja a Coiab que queremos a partir do comando de uma mulher indígena,” comenta. Outro desafio foi o de ajudar a gerir a organização durante uma pandemia que afetou fortemente os povos indígenas.
Atualmente, Angela ajuda a defender os povos isolados, como uma das porta-vozes da Coiab para a campanha #IsoladosOuDizimados, que procura pressionar a Funai para que renove as portarias de restrição de uso de quatro terras indígenas com presença de indígenas em isolamento. A campanha está sendo construída pela Coiab e pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), com apoio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), do Instituto Socioambiental (ISA) e da Survival International.
“Os povos isolados são os que mais estão na mira, em situação de vulnerabilidade e de ataque, porque muitos não estão com os territórios garantidos, demarcados. [Trata-se de] uma barreira mínima contra as invasões, tanto dos garimpeiros quanto dos madeireiros”, explica.
Recentemente, a Funai renovou a portaria de restrição de uso da Terra Indígena Piripkura, mas somente por seis meses, tempo insuficiente para criar ações concretas de proteção aos dois últimos indígenas da etnia que ainda vivem no território.
Para Angela, a campanha é uma ferramenta potente não só de pressão, mas também, de sensibilização da sociedade. “A sociedade brasileira tem o dever e o compromisso de assumir a sua responsabilidade para com o próximo, que são os povos indígenas isolados,” disse, durante o evento Indigenous Perspectives on Decolonial Futures: Global South Reflections. “O sentido dessa campanha é chocar e dizer: ‘você também é co-responsável e, se não assumir essa cobrança ao Estado brasileiro, você está sendo tão omisso quanto a Funai e quanto este governo anti-indígena’.”
Ainda que seja, hoje, uma liderança reconhecida a nível local e nacional, Angela sabe que as trajetórias das lideranças indígenas femininas frequentemente vêm acompanhadas de uma série de dificuldades e barreiras. “Por mais que você tenha a mesma potência, a mesma capacidade, a mesma força, você precisa provar três vezes mais do que os homens que você também lidera, também está num processo de luta, de participação, de decisão”, reflete.
Apesar disso, ela sabe que as mulheres indígenas somam muito ao movimento indígena e devem ter seu papel reconhecido. Afinal, sendo mães, esposas e filhas, enquanto cuidadoras das suas famílias e territórios, elas são as primeiras a sentirem os impactos das violências e ameaças pelas quais os povos indígenas têm passado e a sofrerem com suas consequências. “A gente fala muito com o coração, com a emoção”, pontua. “Felizmente, as lideranças têm enxergado a importância de as mulheres potencializarem a luta do movimento indígena”.
Por isso, continua em movimento, sempre atenta, pela vida dos seus e pela garantia dos territórios demarcados e protegidos. “A nossa primeira luta enquanto povo originário desse país é resistir. Resistir e garantir as nossas vidas dentro dos nossos territórios, onde está todo o nosso modo de ser, toda a nossa existência, toda a nossa essência enquanto povo indígena,” afirmou à Revista Sur 30. “Lutar pelo meu território tem me motivado a permanecer ainda mais resistente. Ser líder, ser mulher e ser indígena - são três desafios e três barreiras. Mas nós temos mostrado o quanto o nosso papel na luta pelos nossos territórios tem sido fundamental”, finaliza.