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Artigo originalmente publicado no JOTA.info
Por Juliana De Paula Batista e Márcio Santilli*
Nas últimas semanas as discussões sobre mineração em terras indígenas voltaram ao debate público em razão da publicação da Portaria nº 667/2022, da Casa Civil, que incluiu o PL nº 191/2020, de autoria do atual presidente da República, na agenda legislativa prioritária do governo federal para o ano de 2022.
O PL nº 191/2020 pretende regulamentar o § 1º do artigo 176 e o § 3º do artigo 231 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), para estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas.
Diversas iniciativas legislativas já foram propostas com esses objetivos. O tema é complexo e carece de consenso entre os setores envolvidos com a produção mineral, os indígenas, ambientalistas e a sociedade de modo geral.
Sob o ponto de vista constitucional, diversos aspectos que devem reger a lei vêm sendo vilipendiados, tanto no debate público como nas proposições que tramitam no Legislativo, notadamente no PL nº 191/2020. Tendo em vista que o espaço diminuto não nos permite mencioná-los de modo exauriente, comentaremos apenas alguns desses aspectos.
A Constituição estabeleceu regras gerais para as atividades minerárias ou o aproveitamento de potenciais energéticos em todo o território nacional. Entretanto, criou regras específicas e mais restritivas para a possibilidade de sua prática em terras indígenas.
De acordo com o artigo 231, § 7º, “não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º”. O citado § 3º do artigo 174, estabelece que “o Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros”. Já o § 4º estatui que “as cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei”.
O artigo 174, § 4º, faz referência, ainda, ao artigo 21, XXV, o qual confere à União a competência para estabelecer as áreas (ou zonas de garimpagem) e as condições para as atividades de garimpagem.
Infere-se da leitura do artigo 231, § 7º, portanto, que, em razão da inaplicabilidade dos artigos 174, §§ 3º e 4º e do artigo 21, XXV, às terras indígenas inexiste possibilidade de “favorecer a atividade garimpeira” ou conferir prioridade às cooperativas garimpeiras nestas terras. Além disso, falece competência à União ou qualquer outro Poder da República para estabelecer ou definir áreas (zonas de garimpagem) e condições para o exercício da atividade de garimpagem em terras indígenas. O garimpo em terras indígenas, portanto, não está sujeito à regulamentação prevista no artigo 231, § 3º da Constituição, seja na forma da lei ou de outros atos normativos.
O PL nº 191/2020 ignora a questão e pretende regulamentar não apenas a mineração como também o garimpo.
Outro ponto ignorado pela proposição se refere à necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e para a pesquisa e lavra de riquezas minerais, prevista no artigo 49, XVI e artigo 231, § 3º da Constituição. De acordo com o PL, a autorização só seria necessária para terras cujo processo de demarcação já contasse com decreto de homologação do presidente da República.
Para se ter uma ideia, existem hoje 237 processos de demarcação de terras indígenas pendentes de homologação por decreto, a penúltima fase de um complexo processo administrativo, que passa por estudos técnicos elaborados por equipe multidisciplinar, aprovação do presidente da Funai, contestação administrativa, análise e aprovação dos estudos pelo ministro da Justiça. Superadas todas estas etapas, o processo segue para a homologação presidencial e, então, para registro em cartório e na Secretaria de Patrimônio da União (SPU). Esse trâmite é longo e demorado. Há processos iniciados na década de 80 que ainda não foram finalizados e casos em que o processo de demarcação até hoje não foi aberto.
De acordo com o PL nº 191, nas terras não homologadas as atividades poderiam ser liberadas por intermédio de uma “autorização provisória”, sem qualquer manifestação do Congresso, tal como a Constituição exige. Após a homologação por decreto, o Congresso teria quatro anos para autorizar a atividade.
Nas terras que já contam com o decreto de homologação, o Congresso também teria que autorizar a pesquisa e lavra mineral, assim como o aproveitamento de recursos hídricos, em quatro anos. Caso não autorize a atividade nesse prazo, considerar-se-ia que houve aprovação tácita ou por decurso de prazo. Neste ponto, o PL afronta o pacto federativo e retira competência exclusiva do Congresso Nacional, exercitável mediante decreto legislativo.
Importante deixar bem vincado que a inexistência de deliberação do Congresso Nacional, em todos os âmbitos de sua competência, é tida como ausência de prioridade ou recusa, jamais como autorização tácita ou ficta. Vide o que acontece com as medidas provisórias quando não são apreciadas no prazo constitucional.
Enfatize-se, ainda, que a Constituição não tergiversou sobre o estágio do processo de demarcação das terras indígenas para a necessária autorização do Congresso e a oitiva das comunidades afetadas. Tampouco criou regimes jurídicos diferentes entre terras indígenas homologadas ou não homologadas.
A valer a possibilidade de autorização provisória, até mesmo terras com a presença de indígenas isolados, que são aqueles que não possuem contato com a sociedade envolvente, poderiam ser afetadas, já que muitas delas têm apenas uma portaria de interdição de área, sem a conclusão formal do processo de demarcação e o decreto de homologação.
O Brasil é o país com o maior número de indígenas isolados no mundo. São povos extremante vulneráveis socioepidemiologicamente, já que a ausência de convívio com outros povos e com a sociedade de modo geral, faz com que não tenham memória imunológica para doenças comuns, como a gripe. Também são indígenas totalmente dependentes do meio ambiente que os circunda, de modo que qualquer alteração ambiental poderia ameaçar a sobrevivência do grupo. O PL, no entanto, não se preocupou com essas questões.
Sob o argumento de “criar a lei prevista na Constituição”, O PL pretende instituir verdadeira desregulamentação de empreendimentos altamente impactantes, a promover um “libera geral” de inúmeras atividades que hoje são vedadas.
Além de pretender legalizar garimpos e conceder direitos minerários atropelando os direitos constitucionais dos povos indígenas, o PL nº 191 também promoverá a instalação de hidrelétricas, a abertura de estradas e o plantio de espécies transgênicas nas terras indígenas. Um esbulho múltiplo!
É importante relembrar que as terras indígenas são a base material onde os indígenas vivenciam sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Nelas, exercem suas atividades produtivas e encontram os recursos ambientais necessários para o seu bem-estar. Tais garantias constitucionais devem compor o núcleo essencial de qualquer lei que vise “regulamentar” o tema, sob pena de esfacelamento do próprio conceito de “terra indígena”.
Como está, o PL reduzirá drasticamente o grau de proteção institucional aos direitos fundamentais dos povos indígenas, atingindo o núcleo essencial de seus direitos fundamentais à vida, organização social, usos e costumes, bem como o usufruto exclusivo das riquezas dos solos, rios e lagos, direitos assegurados de forma permanente nos artigos 231, caput e parágrafos da Constituição.
* Juliana De Paula Batista – Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Assessora Jurídica do Instituto Socioambiental (ISA).
Márcio Santilli – Deputado Federal (1983/1986), Presidente da Funai (1995/1996), sócio-fundador e assessor político do Instituto Socioambiental (ISA).