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Artigo originalmente publicado na Mídia Ninja
“Hoje, temos um problema a 10 mil km daqui. A nossa responsabilidade, em primeiro lugar, é com o bem-estar do nosso povo”. Com essa frase, o presidente Jair Bolsonaro procurou justificar a sua postura de “isenção” diante da invasão da Ucrânia pela Rússia. Só que a distância geográfica não nos protege dos efeitos do “problema” que ele mesmo cuidou de agravar. Quando se tem invasor e invadido, isenção significa omissão diante da invasão.
Diante dos primeiros impactos daquela guerra distante sobre a economia brasileira, em 1º de março, com a maior cara de pau, Bolsonaro declarou que a autonomia do Brasil em fertilizantes depende da exploração de potássio em terras indígenas situadas na região do baixo Rio Madeira (AM). No dia seguinte, Ricardo Barros, seu líder na Câmara dos Deputados, anunciou a coleta de assinaturas para votar, em regime de urgência, o Projeto de Lei 191/20, que atropela a Constituição para autorizar o garimpo predatório e a mineração em terras indígenas.
Nesta quarta-feira (9/3), durante o “Ato Pela Terra”, que reuniu artistas e milhares de pessoas na Esplanada dos Ministérios num ato histórico em defesa do meio ambiente, a Câmara dos Deputados votou e aprovou o regime de urgência para votação do PL 191, que deve ir para Plenário em abril.
Com a ameaça de votação de projetos de lei que atentam contra os direitos indígenas e com a próxima retomada do julgamento pelo STF da tese do “marco temporal”, que restringe as demarcações de terras, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) convocou o Abril Indígena, com a mobilização de milhares de lideranças de todo Brasil para expressarem as suas posições às autoridades e à opinião pública, inclusive sobre a manipulação da situação de guerra para promover o esbulho das terras indígenas.
O Brasil importa da Rússia 23% dos adubos e fertilizantes químicos utilizados na agricultura. Esses produtos representam 62% de tudo o que importamos de lá. Com a invasão da Ucrânia e a adoção de retaliações comerciais contra a Rússia, o fornecimento futuro de fertilizantes está ameaçado. O Brasil já dispõe de estoques suficientes para a safra de inverno, mas eles não devem durar além de outubro.
A absurda dependência de fertilizantes não é um acaso, vem de antes e se conforma ao interesse do cartel que domina o comércio internacional de produtos derivados do potássio e do nitrogênio. Bolsonaro privatizou a subsidiária da Petrobrás responsável pela produção de fosfato e similares. Em 4 de fevereiro passado, o grupo empresarial russo Acron comprou a fábrica de fertilizantes que a Petrobrás estava construindo em Três Lagoas (MS), com 80% das obras concluídas. Quando estiver operando, vai produzir, por dia, 3,6 mil toneladas de uréia e 2,2 mil de amônia.
Em 18 de fevereiro, Bolsonaro visitou o presidente da Rússia, Vladimir Putin, num momento inoportuno, quando já havia se instalado o clima de guerra contra a Ucrânia. Ele justificou a visita dizendo que foi tratar com Putin do fornecimento de fertilizantes. Após a visita, ele espalhou a falsa notícia de que teria convencido Putin a não invadir a Ucrânia. Mas, logo depois, a Ucrânia foi invadida, retaliações comerciais foram impostas à Rússia, o preço dos fertilizantes acompanhou a alta do petróleo, deixando claro que a visita inoportuna não resolveu nada.
A falsa manipulação da urgência por Bolsonaro desconsidera, ainda, as demais opções técnicas para a fertilização dos solos, através da sua remineralização e do uso de biofertilizantes. Também seria possível recorrer, se necessário, à importação de fosfato da África e do Canadá. O que choca é a desfaçatez do presidente em mentir descaradamente sobre questões tão graves, num momento tão grave, para esconder a própria omissão.
No caso de Bolsonaro, a mentira tem braços e pernas longas. Sem dizer nada sobre o que fez para agravar a dependência em relação à Rússia e, muito menos, sobre o seu fracasso em garantir o fornecimento de fertilizantes, ele partiu para explorar o sentimento difuso de insegurança causado pela situação de guerra para tentar justificar o seu objetivo de sempre: favorecer a exploração dos recursos naturais das terras indígenas por terceiros.
Um levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) revela que os requerimentos para extração de sais de potássio no interior das terras indígenas representam apenas 1,6% das jazidas requeridas na Agência Nacional de Mineração (ANM) para exploração. Para a substância fosfato, os pedidos que incidem sobre as TIs representam ínfimos 0,4% do total de jazidas requeridas. As informações hoje disponíveis desmentem o presidente e demonstram que quase todos os depósitos conhecidos, ou a serem pesquisados, estão fora delas.
Se a questão fosse de urgência, de prover insumos imediatamente, é óbvio que priorizar a exploração em outras áreas faria muito mais sentido do que fomentar uma lei polêmica que, se aprovada nos termos do PL 191, seria fatalmente contestada no STF. Fica evidente que Bolsonaro usa uma guerra para declarar outra, contra os que deram origem ao “nosso povo”. E,como em geral acontece, a mentira é o fundamento da sua guerra.
Bolsonaro sabe que o seu projeto de lei, mesmo aprovado, não teria como viabilizar, no curto prazo, projetos de mineração industrial nessas terras. Seriam necessárias outras normas e nenhuma empresa séria investiria com base numa lei sob judice, ou em área invadida. Mesmo que sejam superadas essas pendências, há que se fazer a consulta às comunidades afetadas, a pesquisa mineral e o licenciamento ambiental. O que ele quer é estender um manto de falsa legalidade sobre o garimpo ilegal, que triplicou a extensão devastada nesses três anos em relação ao acumulado histórico anterior.
Bolsonaro não cansa de pressionar o STF para aprovar a tal tese do marco temporal, adotada pela bancada ruralista para restringir a demarcação de terras indígenas às áreas ocupadas em 5 de outubro de 1988, extinguindo os direitos dos povos que haviam sido removidos delas durante a ditadura militar. Também aqui ele mente, ao dizer que “o Brasil vai acabar” se o STF reafirmar o caráter originário dos direitos indígenas, expresso na Constituição. Mas é ele quem quer acabar com os direitos indígenas, com o STF e com a Constituição.
É bom lembrar que os presidentes da Câmara e do Senado, assim como o coordenador da bancada ruralista, estiveram em Glasgow em novembro passado, na conferência da ONU sobre mudanças climáticas, dizendo-se comprometidos com a redução do desmatamento. Mas a “boiada” legislativa continua contratando desmatamentos futuros e violentando os direitos dos povos da floresta. Bolsonaro é um pária planetário. Vamos ver se o Congresso vai por esse mesmo caminho da auto-desmoralização.
Teremos eleições gerais em seis meses e o Congresso terá a sua atuação reduzida a partir de julho, em função da campanha eleitoral. O clima na base governista, em especial entre os deputados, é de “agora ou nunca”, já que é pouco provável que o Bolsonaro sobreviva às urnas. Com essa postura oportunista, centrada em vantagens inconfessáveis de curto prazo, eles não se importam com os danos duradouros que causam a todos.
É por tudo isso que o Acampamento Terra Livre, no início de abril, será o mais importante dos últimos anos. O que todos devem entender é que a presença dos povos indígenas em Brasília será um grito de resistência contra essa estrutura decadente de poder, que lesa os direitos de todos.