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Leia o artigo da assessora do ISA Nurit Bensusan sobre o resultado do julgamento do Código Florestal no STF. Texto publicado originalmente no jornal Correio Braziliense, em 7/3/2018
Você, que não é ambientalista de carteirinha, acha que é aceitável fazer um lixão na beira de um rio? Imagine a contaminação do solo e da água e responda. Você, que não se considera ambientalista, acha que é uma boa ideia conceder proteção apenas para as nascentes e olhos d’água que têm água o ano todo? Pense na intermitência das fontes de água da Caatinga e do Cerrado, agregue a crise hídrica de algumas cidades e a seca do semi-árido e responda.
Esses dispositivos estavam no já-não-tão-novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), festejado e exaltado pelos ruralistas. São pontos que causam estranheza e assim não foi uma grande surpresa que tenham sido considerados inconstitucionais pelos ministros do STF, no julgamento das ações de inconstitucionalidades apresentadas pelo Ministério Público, que foi concluído nesse último dia 28 de fevereiro.
Você, que está convencido que o agro é pop, acha que está certo que alguém que desmatou no estado do Mato Grosso possa compensar comprando terras no Amapá, a 3 mil km de distância? Imagine algumas bacias com pouquíssima vegetação, falta d’água e perda de fertilidade do solo e responda. Você, que pensa que o agronegócio alimenta o país, acha que é aceitável que aqueles que desmataram ilegalmente sejam perdoados, enquanto aqueles que conservaram suas florestas sejam prejudicados, com menos área para produzir e com a propriedade desvalorizada?
Considere que os estudos apontam para o fim da Amazônia ainda nesse século e responda. Esses dispositivos estavam no Código Florestal e lá ficaram, pois os ministros do STF não acolheram o pedido de sua inconstitucionalidade feito pelo Ministério Público.
Qual é a diferença dos dispositivos do primeiro parágrafo e desses acima? Lixões na beira de rios e nascentes intermitentes desprotegidas são facilmente identificados por qualquer pessoa como absurdos monumentais. Já os dispositivos do segundo parágrafo possuem um componente mais técnico e suas consequências são mais difíceis de serem vislumbradas.
Surpreendentemente, essa preocupação é vista por muitos setores como um exagero, como um radicalismo, como se os ambientalistas fossem uns amalucados que quisessem acabar com a produção agropecuária do país, como se eles não comessem, igual a todo mundo, e sim fizessem fotossíntese. Não, nós comemos, não somos loucos amalucados e nem queremos acabar com a agropecuária brasileira. Então por que existe uma diferença tão grande de opinião sobre o Código Florestal entre ambientalistas e ruralistas?
A diferença deriva essencialmente, a meu ver, da visão de futuro e de quão longínquo é esse futuro. Por que os ambientalistas estão preocupados em manter reservas legais, que são as áreas de vegetação natural que os proprietários devem conservar dentro de suas propriedades, nas proximidades das terras que são cultivadas? Por que os ambientalistas se afligem quando áreas desmatadas deixam de ser recuperadas? Por que insistem na importância de proteger parcelas relevantes da vegetação natural do país?
A vegetação natural tem importância biológica, não há dúvida. Fauna e flora ali subsistem, é onde os processos ecológicos essenciais se dão e a diversidade da vida é mantida. Mas a manutenção de porções de vegetação natural entremeadas às áreas agrícolas é o que assegura a sustentabilidade da agricultura. Não no mês que vem, nem em 2020, mas a médio e longo prazo.
O que garante qualidade e disponibilidade de água, fertilidade dos solos, polinização, controle de pragas e doenças e diversos outros serviços que a natureza oferece para a agricultura gratuitamente é a manutenção de áreas de vegetação natural, como as reservas legais.
Essas parcelas de vegetação natural não têm a mesma função que as unidades de conservação da natureza. Essas últimas visam manter os processos geradores e mantenedores de diversidade biológica. Trata-se de preservar espécies, ecossistemas, genes e paisagens. As reservas legais, por sua vez, colaboram nesse objetivo mas, justamente por se localizarem em áreas adjacentes àquelas da agropecuária, dão outro tipo de contribuição, mais dirigida à sustentabilidade da produção.
Quando os ambientalistas se preocupam com a integridade da vegetação na beira dos rios estão pensando na manutenção da qualidade e da disponibilidade de água a longo prazo. Quando insistem em que haja licenciamento ambiental estão pensando na qualidade de vida das pessoas hoje, amanhã e sempre. Quando protestam contra a quantidade de agrotóxicos usada na nossa agricultura estão pensando no bem-estar e na saúde dos brasileiros.
Assim, o cerne da diferença entre ambientalistas e ruralistas está em quão longe cada um enxerga: ou um futuro imediato ou um horizonte um pouco mais distante e, com sorte, melhor.