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No julgamento que o Supremo Tribunal Federal (STF) realizará, nesta quarta (23/10), dos embargos à decisão da própria corte, de 2009, sobre a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, os ministros deverão se posicionar sobre os termos e o alcance das 19 “condicionantes” que foram acrescidas ao reconhecimento da constitucionalidade daquela demarcação em área contínua. O novo julgamento tem grande importância, não apenas pela relevância específica do caso em questão, mas também pelas implicações que poderá ter para o processo de demarcação das terras indígenas em geral.
O sentido geral da decisão de 2009 foi de que esse reconhecimento não deveria impedir ou restringir eventuais providências de interesse público, previstas na Constituição, que devessem ser implementadas naquela área. Não houve uma discussão textual detalhada sobre cada uma das 19 condicionantes. O plenário acolheu as sugestões por esse sentido geral, a partir de uma formulação do então ministro Menezes Direito, já falecido, que dispôs de menos de uma semana para apresentar o seu voto complementar ao do relator. O texto das condicionantes também não foi submetido a qualquer instância de redação e edição final, de modo que recomenda aperfeiçoamentos e pode ensejar correções.
É o caso da necessidade de consulta prévia às comunidades indígenas afetadas por projetos de aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, pesquisa e lavra de minérios que eventualmente ocorram nas suas terras. Essas hipóteses estão previstas no parágrafo 3º do artigo 231 da Constituição, que diz o seguinte:
“§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei” (grifo nosso).
A exigência constitucional da oitiva às comunidades afetadas por essas atividades também está prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os direitos de populações indígenas ou tribais. O artigo sexto da Convenção diz o seguinte:
“1. Na aplicação das disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
(...)
2. As consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado.”
A Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Congresso Nacional por decreto legislativo, tendo, portanto, força de lei. A exigência constitucional ampara a referência legal que, por sua vez, constitui-se em direito internacionalmente reconhecido. Porém, a redação da condicionante de número 5 desrespeita aquela exigência:
“5 — O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai” (grifo nosso).
Essa formulação (em grifo) parece também inconsistente com a que consta do texto da condicionante de número 3:
“3 — O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando aos índios participação nos resultados da lavra, na forma da lei” (grifo nosso).
Como se poderia assegurar a participação dos índios sem consultá-los? Por subordinação, ou obrigação? Atribuindo-se valores de forma discricionária, sem acordo? Qual seria o resultado prático disso?
O que se ouve da parte de representantes das próprias empresas de mineração que participam de discussões sobre a regulamentação dessas atividades em terras indígenas é que, considerando que estas implicam em permanência direta na área por longo prazo, a inexistência de consentimento das comunidades indígenas representaria um insuportável fator de insegurança jurídica e operacional.
Condicionantes foram novidade
Ao aprovar as condicionantes em 2009, o STF não teve uma preocupação com redação técnica legislativa, mas, por isso mesmo, tendo incorporado a novidade das condicionantes à sua decisão, suscitou os pedidos de esclarecimento que agora serão julgados. O caso da consulta prévia às comunidades indígenas é um bom exemplo do que ainda merece ser aperfeiçoado.
O novo julgamento será realizado no contexto das maiores mobilizações da história recente em defesa dos direitos constitucionais dos índios, que se encontram sob forte ameaça por parte de interesses representados pela bancada ruralista no Congresso.
A decisão do STF deve primar pelo intento do aperfeiçoamento, pois a sua formulação deverá influir para atenuar ou agravar os embates em curso. Dela se espera um resgate positivo da tutela, pela União, dos direitos coletivos dos índios.