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No segundo artigo da série sobre a nova legislação do patrimônio genético, a especialista Nurit Bensusan analisa a forma como está prevista autorização das comunidades indígenas e tradicionais para o uso de exploração de seus conhecimentos
Em 2002, o ISA organizou um seminário para discutir diversos aspectos da proteção ao conhecimento tradicional. Naquele tempo, a Medida Provisória 2.186-16/2001 regulava esse assunto e a reunião debateu principalmente os temas ligados ao chamado consentimento prévio informado. Esse instrumento, consagrado em vários instrumentos internacionais, como a própria Convenção sobre Diversidade Biológica, na MP foi transmutado em “anuência prévia”.
O novo marco legal de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional (Lei 13.123/2015 e Decreto 8.772/2016) trouxe de volta o consentimento prévio informado. As razões para comemorar, porém, acabam aqui: trata-se apenas do nome, pois as características fundamentais do consentimento prévio informado não estão asseguradas pelo novo marco legal.
O seminário, realizado pelo ISA há 14 anos, virou um livro intitulado “Quem cala consente?” Esse nome é fruto da perplexidade manifestada por um índio quando soube que existe um ditado entre nós que diz que “quem cala, consente”. Imediatamente, ele reagiu dizendo que quem cala está pensando, refletindo e ainda decidindo se concorda ou não. Ou seja, o calar não é sinônimo de consentir. Essa perplexidade, agora, está cristalizada na figura chamada de consentimento prévio informado, presente na Lei 13.123/2015.
Poderíamos usar a popular expressão “só que não” para tratar desse consentimento prévio informado. Deveria ser um processo onde o momento em que o conhecimento tradicional é compartilhado com o usuário interessado é precedido de um procedimento de consentimento. Só que não... No novo marco legal, acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional significa pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Assim, o momento da coleta do componente do patrimônio genético, uma planta ou um fungo, por exemplo, não é caraterizado como acesso. Isso, infelizmente, vale também para o conhecimento tradicional, ou seja, o momento onde o interessado coleta uma informação, entrando em contato com o conhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais, não é considerado acesso. Mas é justamente o acesso, segundo a Lei 13.123/2015, que é condicionado pelo consentimento prévio informado. Resultado: é possível coletar informações em um primeiro momento e só levar a cabo o processo de consentimento prévio depois.
Se essa situação já não fosse grave o suficiente, o controle do acesso, na nova legislação, é feito mediante apenas um cadastro declaratório. Ou seja, o usuário preenche um cadastro dizendo que acessou o conhecimento tradicional e nesse momento deve apresentar uma comprovação do processo de consentimento prévio informado. Como mencionado, isso pode acontecer anos depois do momento onde a coleta das informações foi feita – principalmente porque o cadastramento só é obrigatório antes do usuário remeter componente do patrimônio genético para o exterior, ou requerer algum direito de propriedade intelectual, ou comercializar algum produto, ou ainda divulgar algum resultado de suas pesquisas.
Para piorar, a lei não faz menção a nenhum procedimento de análise e de validação do processo de consentimento prévio informado. O decreto criou um processo de verificação do cadastro, mas tal processo não condiciona nenhuma das atividades que os usuários podem fazer após o cadastramento. A questão é que, depois que o conhecimento já foi transmitido, não adianta mais analisar o cadastro e o consentimento prévio informado e dizer que foram mal feitos. O conhecimento já está nas mãos e nas cabeças dos usuários.
Soma-se a isso a forma que a lei tenta resolver a questão do conhecimento tradicional compartilhado. Não há dúvidas de que a maior parte do conhecimento tradicional é partilhada por mais de um povo ou comunidade tradicional. Exigir um processo de consentimento prévio informado para todos os que detêm um determinado conhecimento é complexo e vem se revelando um entrave para o uso do conhecimento tradicional. A alternativa aventada é que basta uma anuência de um detentor do conhecimento para que o processo seja considerado adequado. Mas a questão é que a repartição dos benefícios derivados do uso do conhecimento tradicional se dará diretamente apenas com quem consentiu. Os outros serão “remunerados” de forma indireta com o depósito de uma parte do valor da repartição de benefícios no Fundo Nacional de Repartição de Benefícios, cujos recursos poderão, em tese, ser acessados por todos os detentores de conhecimentos tradicionais. Apesar de parecer uma boa solução, esse mecanismo pode criar uma disputa entre detentores de conhecimento tradicional, pois apenas aquele que consente receberá diretamente a repartição de benefícios. Além disso, há algo ainda mais grave: dessa forma, a possibilidade de não consentir, de recusar a transmissão do conhecimento, não existe, pois, se um não concordar, certamente se encontrará alguém que o faça.
O resultado é que o processo de consentimento é uma farsa, pois, além de não ter nada de prévio, nem de informado, a possibilidade de não consentir de fato não existe. Enfim, consentimento, só que não, prévio, só que não, informado, só que não...
Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. Esses são os chamados conhecimentos tradicionais. Na nova legislação, aqueles grupos sociais são designados de “detentores” desses conhecimentos.
Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões, bilhões em investimentos. Na nova legislação, pesquisadores e desenvolvedores desses produtos são chamados de “usuários” dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.
O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.
“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.