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Dando continuidade ao texto do último dia 9/9 (veja aqui) e mudando o título para algo menos melancólico, analiso aqui um dos aspectos centrais dessa primeira fase de implementação da nova lei florestal (Lei Federal 12651/12): o cadastro ambiental rural (CAR).
Tido como a grande inovação positiva da lei, o CAR não é propriamente uma novidade, na medida em que já está rodando há mais de uma década no Mato Grosso (sistema temporariamente fora do ar) e há mais de cinco anos no Pará (saiba mais). A novidade é que agora deve ser implementado em todos os estados. Ele foi pensado originalmente como uma forma de diagnosticar a situação ambiental da propriedade rural – em especial avaliar se cumpre ou não a legislação florestal – e, com base nisso, obrigar os proprietários a resolverem os passivos ambientais existentes, em geral por meio da assinatura de termos de compromisso de compensação florestal ou restauração de áreas degradadas. Portanto, desde o princípio, dizer que um imóvel está inserido no CAR é o mesmo que dizer que ele está regularizado ou em vias de se regularizar do ponto de vista ambiental.
Baseado em imagens georreferenciadas do imóvel rural e das áreas de floresta existentes (ou que deveriam existir) em seu interior, o CAR sempre foi visto como um poderoso instrumento de monitoramento do cumprimento da legislação florestal, na medida em que permite identificar novos desmatamentos ou acompanhar a restauração de áreas degradadas por meio de imagens de satélite, o que diminui sobremaneira o custo da fiscalização. Mas ele pode ser mais do que isso. Desde que tenha informações fidedignas, ou seja, que correspondam à realidade de campo – como os sistemas do MT e PA sempre almejaram, apesar dos contratempos, erros e fraudes – ele pode ser um instrumento para orientar a aplicação de incentivos econômicos à restauração, desenhar políticas agrícolas mais adaptadas a cada região, entre outras possibilidades decorrentes de um cadastro que diga quem é quem e o que faz com sua terra.
Discussões e divergências
Mas é justamente a qualidade das informações inseridas no CAR que vem sendo objeto de importantes discussões – e divergências – entre o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e diversos governos estaduais. Há uma disputa de concepções para a qual a sociedade deve atentar.
Como já disse, foi criado um Grupo de Trabalho de Acompanhamento da Implementação do Código Florestal, instalado pelo MMA a pedido das organizações da sociedade civil, para monitorar e opinar sobre o processo de implementação da nova lei. Esse grupo já teve quatro reuniões – a última em 10/9 – e, até o momento, seu foco foi compreender aspectos fundamentais dos sistemas estaduais de CAR, identificando pontos comuns e divergentes.
Foram apresentados praticamente todos os sistemas em desenvolvimento ou já em funcionamento no país. Temos, grosso modo, dois grupos de sistemas: aqueles desenvolvidos autonomamente pelo órgão estadual (é o caso dos sistemas de São Paulo, Bahia, Mato Grosso, Espírito Santo, Rondônia, Acre, Tocantins e Pará, Mato Grosso do Sul, Amazonas e Minas Gerais) e os que operarão o sistema que está sendo desenvolvido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama).
Sendo o CAR a base para muitas coisas, mas principalmente para que o imóvel possa aderir ao Programa de Regularização Ambiental (link post), ele deve ter, pela nova lei, a difícil missão de indicar, para cada proprietário, o que deve ou não ser preservado e recuperado. Difícil porque, como todos já devem saber, essa definição agora depende de diversos fatores, como o tamanho do imóvel e a data em que houve o desmatamento (veja aqui). Isso significa que, mais do que nunca, as informações inseridas no sistema têm de ser precisas, pois a regularização de um produtor em cuja terra há, por exemplo, uma nascente desmatada, será significativamente distinta se for informado que esse desmatamento ocorreu antes ou depois de 2008.
Ocorre que alguns governos estaduais, acompanhados do MMA, entendem que a precisão das informações é secundária e até mesmo indesejável, se isso implicar em alguma dificuldade na inserção dos dados. O que importa, nessa visão, é ter um sistema simples que permita a todos cadastrarem-se rapidamente, mesmo com informações duvidosas, já que elas terão de ser necessariamente avaliadas por um técnico do órgão ambiental porque o cadastramento é “declaratório”. Portanto, para essa corrente, o que importa, num primeiro momento, é a quantidade de cadastros, e não sua qualidade.
Essa visão se reflete nos sistemas em construção. O que está sendo desenvolvido pelo Ibama, e que já entrou em testes em Goiás e Rio de Janeiro, conta com uma parte descritiva, onde o usuário declara alguns dados (endereço, tamanho da área, se tem área rural consolidada, se tem Reserva Legal-RL averbada etc.), e uma parte de georreferenciamento. Esta última tem uma ferramenta pela qual o usuário poderá desenhar, de próprio punho e diretamente na tela do computador, todos os elementos de seu imóvel, desde os limites da propriedade até a existência ou não de rios, nascentes, montanhas, vegetação nativa, entre outros. Em resumo, o sistema não reconhece automaticamente um rio ou uma área com vegetação nativa, embora esses elementos possam ser visíveis na tela. Tudo será declarado e desenhado pelo usuário.
A questão do responsável técnico
O sistema do Ibama, assim como o de São Paulo, não exigirá responsável técnico, podendo o próprio produtor, tanto o grande como o pequeno, aportar os dados na ferramenta de desenho. Nisso, esse sistema diferencia-se muito dos sistemas já existentes, que sempre exigiram um responsável habilitado para identificar – a partir de dados de campo ou por imagens de satélite, com softwares específicos de geoprocessamento – quais as áreas protegidas pela legislação e qual a ação a ser adotada.
Alguns estados estão seguindo nessa linha, como é o caso da Bahia, cujo sistema não só exige responsável técnico e informações aportadas a partir de softwares especiais, como prevê também a integração do CAR ao sistema de licenciamento ambiental, outorga de uso da água etc. Ou seja, um verdadeiro cadastro único do imóvel rural.
O problema desse sistema, que exige responsável técnico mesmo para o cadastramento dos pequenos proprietários, que poderiam, segundo a lei, apresentar um mero croqui em papel, é que ele encarecerá o processo e gerará uma demanda por técnicos que, nesse momento, não estão disponíveis no mercado. Isso significa que muito provavelmente não será possível a todos os proprietários cadastrarem-se no prazo de dois anos previsto na lei.
Importante entender que não se trata apenas de ter ou não um responsável técnico, mas, associado a isso, a possibilidade de se incluir dados no sistema a partir de um desenho “à mão livre”, no fundo um croqui. Esse é o ponto mais sério. Assim como pode ser um exagero exigir responsável técnico para pequenos produtores, que poderiam se regularizar com um mero croqui, permitir que médios e grandes proprietários possam apresentar apenas um croqui é altamente temerário. Por quê? Por três razões:
a) o sistema aceitará todo e qualquer tipo de informação “declarada”, de forma que será possível desenhar um rio onde não existe ou sumir com ele mesmo sendo visível, o que alterará de forma substancial o tamanho das áreas protegidas existentes a serem restauradas com ocupação consolidada. Na grande maioria dos sistemas, pelo menos na primeira fase, não haverá atributos físicos (rios, morros, nascentes, vegetação nativa existente etc.) já atribuídos que possam evitar a inclusão de informações inverídicas (por exemplo, desenhar vegetação nativa onde ela não existe), de forma que o sistema será totalmente declaratório, sem controle prévio ou automático.
b) o sistema induzirá muitos ao erro, seja pela dificuldade de compreensão dos conceitos básicos da lei (área rural consolidada, pousio, módulo fiscal, topo de morro, Área de Preservação Permanente-APP, RL etc.), pela falta de conhecimento das novas regras (APP variável para cada tamanho de imóvel e pela data de desmatamento, por exemplo), ou mesmo pela dificuldade de desenhar numa tela usando o mouse, o que pode gerar erros graves, dada a escala das obrigações da nova lei (APP ciliar de 15 ou 20 metros, por exemplo).
c) toda informação declarada por milhões de proprietários e posseiros terá de ser analisada, em algum momento, por alguns poucos milhares de técnicos dos órgãos ambientais, o que evidentemente gerará um enorme congestionamento e jogará essa “etapa” de análise, na prática, para daqui muitos anos. Quanto mais problemas nos cadastramentos realizados, mais tempo demorará a análise de cada um e mais tempo levará para se analisar o conjunto. Enquanto isso, o proprietário terá um certificado de cadastramento que, na prática, não atesta nada. Ou pior: a depender de como virá a regulamentação, o certificado poderá ser usado para diversas finalidades como uma “certidão de regularidade ambiental”, dando a impressão (ao proprietário e a terceiros) de que sua situação está adequada, quando na verdade pode não estar.
Informações imprecisas
Com tudo isso, se for possível a todos fazerem diretamente um croqui eletrônico, teremos provavelmente um cadastro inicial com informações bastante imprecisas, incluídas num contexto no qual será muito difícil diferenciar quem simplesmente errou ou quem incluiu deliberadamente informações falsas para esconder eventuais passivos, de forma que será impraticável (e indesejável) usar penalidades (que não estão ainda claramente definidas se existirão, sobretudo porque a lei não as definiu) para desestimular a fraude. Se a mensagem passada à sociedade for de que esse é um cadastro “de faz-de-conta”, no qual o Estado não tem como controlar as informações aportadas, será a ruína do sistema, pois promoverá uma indesejável seleção adversa.
Ademais, todas as políticas de incentivo econômico que estão sendo formuladas nas mais diversas esferas da sociedade (leia aqui), estão lastreadas na possibilidade de diferenciar quem está ou não regular, ou, dito de outra forma, quem conserva ou não os recursos naturais em suas terras. Colocar no ar um sistema que induz ao erro, o qual só virá a ser corrigido após uma análise oficial que poderá demorar vários anos, significa impedir que possamos colocar tais políticas já em funcionamento, pois elas dependem, sobretudo, de dados confiáveis. Aqueles que conservaram as florestas de suas terras ou que pretendem fazê-lo, e que teriam direito a acessar benefícios, terão de esperar anos até que sua situação de regularidade ambiental seja atestada.
Por tudo isso, nossa opinião é de que não deve ser permitido, para os médios ou grandes produtores, incluir dados no sistema sem algum tipo de assessoria técnica, mesmo que não seja necessariamente alguém com Anotação de Responsabilidade Técnica-ART (profissional filiado ao CREA). É fundamental que as informações aportadas passem pelo crivo de alguém que não só entende da operação do sistema, como, sobretudo, dos conceitos e regras definidos na nova legislação, de forma que erros involuntários sejam, na maior parte dos casos, eliminados. Dados mais precisos facilitarão também o tempo de análise e retificação dos dados pelos órgãos ambientais, assim como darão maior confiança ao sistema como um todo, permitindo que seja utilizado imediatamente como base, por exemplo, para a estruturação de sistemas de incentivo econômico.
Tanto o Ibama como os Órgãos Estaduais de Meio Ambiente (OEMAs), ou organizações por elas credenciadas (sindicatos, associações de produtores, ONGs, prefeituras, cooperativas etc.), poderiam ministrar cursos de formação para esses profissionais. Eles podem ter qualquer formação acadêmica, desde que compreendam os conceitos da nova lei e sejam aptos a usar ferramentas simples de análise de dados georreferenciados. Esses profissionais seriam os responsáveis legais pelos dados incluídos no sistema, como já ocorre no Mato Grosso ou Pará, resguardando inclusive os proprietários de boa fé.
Para os pequenos proprietários, mesmo não sendo obrigatório, deveria haver também algum estímulo para que busquem (diretamente ou por meio de seus sindicatos e organizações representativas) essa assessoria técnica, sobretudo porque para eles a acurácia dos dados deve ser maior. Uma forma simples seria, por exemplo, garantir prioridade na análise de cadastros feitos com a assessoria de um responsável técnico. Se houver prêmios direcionados aos já regularizados ou em regularização (com termo de compromisso assinado e restauro em implantação), diversos optarão por essa possibilidade. De qualquer forma, como eles poderiam se regularizar com um simples croqui, o sistema oferecido, mesmo que operado diretamente por eles, já está bastante bom.
Um bom encaminhamento a esse ponto é crucial para o desenvolvimento da gestão ambiental rural do país nos próximos anos. Melhor, eventualmente, adiar o prazo para cadastramento para mais dois ou três anos, mas garantir que o cadastro tenha consistência do que ter um grande número de cadastros realizados, mas não poder confiar nas informações aportadas.