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É a primeira morte pela doença entre indígenas no Médio Xingu. Leia o texto da antropóloga Thais Mantovanelli em homenagem ao cacique Onça, que faleceu no dia 31/07 em Altamira
Vivemos uma situação de desamparo. Desamparo por todas as mortes causadas pela pandemia da Covid-19. Como viver esse e nesse mundo desamparado? A morte de Beptok Xikrin da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no dia 31/08, é mais uma dessas que não deveriam acontecer. Apesar dos esforços de equipes inter-institucionais de enfrentamento da pandemia, do Dsei-Altamira e do atendimento no Hospital Regional de Altamira, Beptok foi a primeira vítima indígena do novo coronavírus na região do Médio Xingu.
Beptok Xikrin, conhecido como cacique Onça, tinha uma dupla convicção política correlacionada. Uma convicção fundamentada no fato de que os Mebengokre-Xikrin não podem deixar de existir. Sempre se esforçou por sentar com as novas gerações, falar para elas sobre a força dos antigos, e ressaltar a força da cultura de seu povo: os cantos, as artes narrativas e materiais, as caçadas, as danças. Ao mesmo tempo, sua convicção era também considerar ser possível ensinar e mostrar para os kuben, como são chamados os não índios em sua língua, a beleza e a força da cultura de seu povo, os Mebengokre-Xikrin.
Empenhou-se nessa tarefa com afinco, sendo considerado como uma das mais importantes lideranças da região do Médio Xingu. Ele não se cansava, lutou muito pelos direitos de seu povo.
“Em meio a situações trágicas de adoecimentos na história recente do povo Mebengokre-Xikrin, Onça perdeu de forma prematura seu pai Meretty, o primeiro grande chefe da aldeia Bacajá, por causa de malária. Desde muito novo, assumiu a liderança de seu pai junto com o seu irmão. Junto com outros caciques, Onça lutou para a demarcação do território de seu povo e pela defesa desse território em diversas frentes de invasão desde a homologação da terra indígena em 1996”, conta o antropólogo Duvan Escobar, amigo que Onça soube também cativar.
Ele foi o responsável pela formação cotidiana de muitas pesquisadoras e pesquisadores, sejam da área de antropologia ou demais disciplinas. Ao lado de Onça, muitas dessas pessoas viveram a primeira vez de alguma experiência: expedições na mata, pescarias, execuções rituais, práticas de comensalidade, repetição de palavras na língua Mebengokre, inserção em relações de parentesco e amizade. Clarice Cohn, antropóloga que também foi criada pelas mãos desse chefe guerreiro, disse em suas redes sociais: “A tristeza corre pelas aldeias, pelo Médio Xingu, chega aqui em São Carlos, deixa meu coração apertado. Onça viveu uma vida linda e difícil. Os desafios a ele e aos Xikrin sempre foram muitos. Às vezes ficava abatido, mas sua alegria, seu riso, sua força sempre o acompanharam”.
A primeira vez que eu entrei dentro de uma casa Mebengokre foi na casa dele e sua companheira Irengri. Feita de barro com telhado de palha, a casa era absolutamente confortável seja em temperatura ou em iluminação. Sentamos na parte do fundo e enquanto tomávamos café, ele apontou para crianças que brincavam a poucos metros de nós e disse algumas palavras que são dos conceitos mais importantes para a cultura de seu povo: Ómuhn, meprire meitere (Veja como são bonitas as crianças!). Não entendi na época, mas ele estava me ensinando os princípios fundantes e o modo de funcionamento de sua cultura: a beleza e as crianças.
Por beleza é preciso entendermos tratar-se de uma série de procedimentos éticos, técnicos e comportamentais considerados adequados, corretos ou verdadeiros. Beleza é comportar-se com e como parentes, conforme cálculos de aproximação e distância; operar circulação de nomes, mercadorias, alimentos; botar roça; não agir egoisticamente. Beleza são os corpos pintados com jenipapo e urucum pelas mãos pintoras das mulheres; são as crianças brincando nas águas do rio Bacajá; é a floresta e seu pensamento; é o rio Bacajá antes de Belo Monte. Beleza é ação prática. As crianças são a razão principal no empenho das pessoas Mebengokre-Xikrin em praticar a beleza de seu conhecimento para a garantia de boas condições para a vida, em termos de sua manutenção, continuação e proliferação. Uma cultura voltada para o futuro, se me permitem expressar dessa maneira. A dinâmica da continuidade da beleza da cultura Mebêngôkre é talvez a maior função de um mebenget [categoria de pessoas mais velhas].
Nosso querido Onça acordava todos os dias para colocar essa função em prática. Tudo era um constante aprendizado com ele: ver ele na roça de manhã, acompanhá-lo nas tardes enquanto procurava caititus e pacas, sentar-se junto a ele no quintal da sua casa à noite, ou escutar as falas formais no meio de uma festa. Seu empenho em evidenciar a força e a beleza de sua cultura eram dignos de exemplo. Era comum que ele chamasse as crianças e os jovens quando realizava comunicações em defesa da existência de seu povo.
Como conta Duvan, em um dos últimos metoro [festas rituais] que Onça participou em sua aldeia Pytako, ele manifestou:
“Os novos tem que andar junto com mebenget [as pessoas mais velhas], escutar. Depois, cada um tem que cantar sozinho para poder aprender, porque tem que ensaiar primeiro, ver se aprendeu mesmo. Por isso que o pessoal gosta de andar com o velho. As pessoas tem que ficar aqui, tem que ficar no ngobe [casa do guerreiro], no meio, para eu ensinar a cantar e ver se eles estão aprendendo. Para cantar tem que ter o padjê [bracelete] no braço, tem que ter o bó [enfeite] na cabeça, assim todos cantam. Vocês (jovens) tem que ficar aqui para nós lhes explicarmos como é que vão fazer, mostrar como antigamente eu aprendi de outros mebenget. Desde muito tempo atrás os Mebêngôkre gostam de dançar e cantar, todos os tempos, todos os anos a festa aconteceu”.
Certa vez, em uma das reuniões sobre o problema dos impactos da UHE Belo Monte subdimensionados pelos relatórios oficiais do empreendimento, Onça falou:
“Meu nome é Beptok Xikrin, sou chefe antigo da aldeia Bacajá e moro na aldeia Pytako. Meu filho hoje é chefe da aldeia Pytako. Estamos com medo do que vai acontecer com a gente depois da barragem. Porque, nosso rio vai secar depois que barraram o Xingu e até agora não existe nenhuma garantia para nós. Vocês não estão acreditando no que estamos dizendo e mostrando. O que iremos comer? Os peixes vão morrer, as caças vão embora para longe. Como iremos fazer? Vamos deixar nossos filhos e nossos netos morrerem? Se continuar assim, nós povo Mẽbengôkre iremos acabar. Muitos povos indígenas já acabaram. Mas nós vamos lutar. Vamos lutar pelos nossos direitos e nossas vidas, vamos lutar pela vida dos filhos e dos netos e dos netos deles. É isso que eu queria falar”.
O empenho de Onça em mostrar e ensinar a beleza e a força da cultura do seu povo foi marcado por uma insistente diplomacia da gestualidade democrática, para usar uma expressão de Darcy Ribeiro dos anos cinquenta sobre como os governos deveriam tratar a sociodiversidade dos povos indígenas. Uma lição que ainda não fomos capazes de aprender e que essa pandemia somada às ações irresponsáveis do atual governo escancara de modo vergonhoso e brutal. Como temos precisado de gestos democráticos! Que falta você fará, querido Onça!
Onça foi a primeira morte em decorrência da pandemia na região do Médio Xingu. A morte do cacique Onça, como tantas outras que não precisavam acontecer, incluindo a de tantos homens e mulheres indígenas, deveria ser um chamado de atenção e um alerta. Até quando vamos manter os ouvidos tapados para os chamados dessas gentes que insistem em se dedicar a mostrar que outros regimes de existência, não predadores ou confiscatórios, são possíveis e precisam ser cultivados?
Três frentes de invasão ameaçam a Terra Indígena Trincheira Bacajá. No mês de julho, 265 hectares foram desmatados, um aumento de 729% em relação ao mês de junho, quando foram detectados 32 hectares. [Saiba mais]
O acirramento dos conflitos coloca em risco integridade dos indígenas e potencializa avanço do novo coronavírus no território. Na região sul, onde as invasões estão cada vez mais próximas das aldeias, as taxas de contágio são as mais elevadas: “Os primeiros casos da doença apareceram em uma das aldeias próximas da região da invasão: foram notificados três casos positivos no final do mês de abril. No mês de agosto, a mesma aldeia contava com mais de 50 casos”, de acordo com carta da ABEX (Associação Bebo Xikrin). A TI Trincheira-Bacajá já soma 152 casos, segundo o Dsei Altamira.