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Cartografia sociopolítica ajuda a fortalecer agricultura tradicional dos povos do Xingu

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Letícia Leite

O chão coberto de flores lilás da árvore Karemuyp anunciava a chegada das chuvas e começava o preparo para as queimadas de roça na aldeia Samaúma. As chuvas iriam garantir a umidade da terra e o fogo estaria sob controle. Quando as flores amarelas da Siãkagyp apareciam, o Kutap, um sapo serelepe de cor marrom começaria a cantar, e então era hora de ir para a roça. Esses eram os sinais da floresta anunciando a boa época para o plantio nas aldeias Kawaiweté do Parque Indígena do Xingu (MT). “Hoje tudo mudou”, explica Tariaiup Kaiabi, autor da pesquisa “Fazendo roças com os Kawaiweté”, resultado dos três anos de sua participação na I Formação em Gestão Territorial do Xingu. Iniciado em 2011, o curso que está na etapa final está sendo realizado no Polo Diauarum, no PIX e se encerra no próximo dia 20.

Tariaiup mapeou as roças tradicionais do povo Kawaiweté, ou Kaiabi como também são chamados. Entrevistou o pai, Tuim Kaiabi, com quem aprendeu a fazer roça e se apaixonar pelo mato, o tio, o cunhado e outras 50 famílias nas aldeias Samaúma, onde vive, e na aldeia vizinha, a Tuiararé, ambas Kaiabi. Ouvindo a família e os parentes descobriu que os sinais da natureza já não estavam tão claros, os sapos Kutap estavam cantando fora de época e as árvores já não floresciam no tempo ideal para o plantio. Pragas de insetos se tornaram frequentes nas lavouras de milho, mandioca e batata e alguns tipos de plantio já desapareceram das roças de seu povo.

Aos 34 anos, Tariaiup se dedicou a entender e registrar as espécies que alimentam o povo Kawaiweté e as dificuldades de quem encara a roça diariamente. Ele explica que a pesquisa não está finalizada. “Eu quero ir em outras aldeias, conversar com outros anciões para identificar espécies que não temos mais”. Nesta semana Tari, como é chamado, participa do último módulo da Formação e está organizando seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) colocando os impactos e possíveis soluções para preservar a cultura e a segurança alimentar das aldeias em mapas.

Cartografia social e política

Há dois anos os alunos iniciaram as práticas em cartografia sociopolítica. Foram quatro módulos coordenados por Juan Doblas, do Programa Xingu, com apoio da equipe de especialistas em Geoprocessamento do ISA em Canarana e São Paulo. Cada aluno recebeu seu próprio GPS e computador.

“A gente apresenta o GPS e a cartografia como instrumentos que não substituem, mas complementam o conhecimento tradicional indígena, e que podem ser poderosas armas na defesa e gestão do território xinguano”, explica Doblas.

Todos usam o sistema operacional Ubuntu e o QGIS, um aplicativo livre que permite a construção de mapas a partir de pontos registrados no GPS. Ambos são softwares livres e de código aberto. O que, na prática, significa que os indígenas não irão precisar pagar por novas atualizações ou licenças de programas.

Os alunos já dominam o uso do GPS, batem pontos, registram trilhas e constroem os mapas a partir dessas informações. Na formatura, que acontece no próximo dia 20, cada um irá apresentar um mapa da aldeia em que vive, refletindo a organização social de cada aldeia, utilizando os pontos que mapearam (áreas de roça e caça, localização das casas, posto de saúde, e os pontos de impactos como abertura de estradas e focos de queimadas). Se antes a dificuldade era ligar o GPS, hoje as barreiras são definir as prioridades e sintetizar os problemas em uma única imagem na construção de mapas sociopolíticos das aldeias.

“Eles têm um conhecimento amplo sobre as referências espaciais de cada região. O grande desafio está em utilizar as tecnologias para organizar o conhecimento tradicional e usá-lo como instrumento político”, explica Cristina Velasquez, coordenadora técnica da I Formação em Gestão Territorial do Xingu.

Tecnologias ajudam a construir documentos e intervir em políticas públicas

Nos últimos quatro dias, durante as aulas finais de cartografia sociopolítica, os alunos realizaram diversas análises de mapas do território xinguano e de outras Terras Indígenas. Discutiram temáticas de interesse comum e exercitaram o uso de tecnologias que ajudam a construir documentos capazes de intervir nas políticas públicas relacionadas aos povos indígenas e à conservação das florestas onde vivem.

“Fazer um mapa é uma forma de demonstrar para os outros um problema e ao mesmo tempo mostrar sua solução”, explica Tari. Ao lado dos colegas do curso eles exercitam o diálogo e refletem sobre os problemas comuns aos 2,8 milhões de hectares deste território que é o Parque Indígena do Xingu, compartilhado por 16 etnias.

Presidente da Associação Indígena Tapaiuá, Tari tem na construção dos mapas mais um instrumento para fortalecer as roças tradicionais nas aldeias Samaúma e Tuiararé, dos Kaiabi. Depois de três anos de Formação ele escreveu e aprovou dois projetos junto a financiadores para construir o primeiro Centro de Agrobiodiversidade Kawaiweté. O projeto vai ajudar a estruturar uma casa de sementes que deve melhorar o armazenamento e manejo das sementes crioulas, promover intercâmbios em outras Terras Indígenas e Unidades de Conservação para levar a culinária do povo Kaiabi até outros povos e viabilizar um Encontro de Produtores e Trocas de Sementes.

Tari convidou seus irmãos para sua formatura. Ele conta que sua pesquisa incentivou os dois irmãos a voltar a fazer roças. “Eles estavam parados com as roças, viram eu pesquisando e agora já tem roça de novo”. O filho de Tari, de 11 anos, olhou a apostila sobre o uso do GPS e do software utilizado no curso e viu o nome do pai na capa. Um mapa feito por Tari durante o curso ilustra a primeira página da apostila. “Agora eu vou ensinar meu povo a fazer seus mapas começando pelo meu filho que já pediu pra aprender”.

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