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Márcio Santilli, sócio fundador do ISA
A eleição de Joe Biden e o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris suscitaram a expectativa de avanços importantes nas negociações internacionais sobre a crise climática e, em particular, na COP-26, conferência da ONU que se realizará em Glasgow, Escócia, nas duas primeiras semanas de novembro.
Essa expectativa positiva foi reforçada com a reunião de chefes de Estado convocada por Biden, em abril, assim como a realizada em setembro passado, entre as maiores economias do mundo. A despeito das disputas comerciais, havia a impressão de que a China e os EUA, maiores emissores globais de gases do efeito estufa, chegariam a um acordo, com o apoio da maior parte da comunidade internacional, para acelerar a redução de emissões.
Porém, as relações bilaterais entre os dois países deterioraram-se nas últimas semanas. De sanções comerciais, a discussão avançou para acusações de violações de direitos humanos e, na semana passada, o líder norte-americano cometeu a imprudência retórica de aventar uma intervenção militar dos EUA em Taiwan, no caso de um ataque da China. Embora os chineses tenham intensificado manobras militares na região, não há essa demanda do governo de Taiwan no momento.
Ainda na semana passada, a China confirmou a ausência do primeiro-ministro Xi Jinping na COP-26. Os diplomatas chineses devem reafirmar a posição de que o pico das suas emissões ocorrerá em 2030 e de que a sua neutralização se dará até 2060. Nem avanço, nem recuo.
Além disso, a China criou na COP sobre biodiversidade, que ocorreu há alguns dias, um fundo de US$ 230 milhões para proteção da biodiversidade, sinalizando que quer sair na frente da economia verde e vai apostar suas fichas em novas tecnologias, o que provoca ainda mais um desequilíbrio nas relações com os EUA.
Como se já não bastasse, a crise do modo de produção mundial e de escassez de determinados bens, insumos e componentes industriais ‒ decorrente da pandemia e da crise econômica ‒, está obrigando a indústria global e os países a repensarem suas bases de produção, ou seja, o alicerce sobre o qual incidem as políticas de adaptação e combate às mudanças do clima. Esse processo também dificulta as negociações internacionais.
Enquanto a política anda de lado, a crise do clima agrava-se de forma evidente. Em 2021, secas e enchentes causaram tragédias muito graves em todos os lugares. Ondas de calor afetaram o Canadá e os EUA. O derretimento do permafrost, aquela camada de solo congelado por milênios, impacta a Sibéria. Chuvas torrenciais inundam a Europa central e o sul da China. O problema já começa a influenciar as levas de refugiados que se dirigem à Europa e à América do Norte.
O relatório divulgado esse ano pelo IPCC ‒ o painel da ONU sobre mudanças climáticas que reúne cientistas do mundo todo ‒ é acachapante. Não há mais dúvida científica sobre as causas humanas do aquecimento global. Seus impactos estão ocorrendo num ritmo bem mais rápido do que se previa. Estamos muito próximos do ponto de não retorno em relação à destruição de biomas estratégicos, como a Amazônia.
Não há perda econômica que se equipare aos danos das mudanças climáticas. Não há conflito regional que possa provocar mais mortes, miséria e migrações em massa.
Joe Biden não parece ter suficiente clareza sobre qual é a prioridade e como buscar formas de enfrentar as demais contradições em foros específicos e com estratégias apropriadas. Seu confronto retórico com a China parece refletir mais uma fragilidade política interna do que uma emergência planetária.
A crise climática e o colapso dos ecossistemas naturais a ela associado são as maiores ameaças que pesam sobre a humanidade neste século. Para vencê-la, será preciso que cada país faça a sua parte. Não há nada que possa substituir as negociações internacionais para se avançar num processo efetivo de redução de emissões. Cada ano sem resultados implica mais danos irreversíveis para o clima.
Mesmo que os maiores emissores não se entendam sobre um regime mais ambicioso de metas para frear o aquecimento global, pode ser que a COP-26 proporcione avanços pontuais. Por exemplo, a regulamentação do artigo sexto do Acordo de Paris, relativo ao polêmico mercado de carbono. Espera-se uma solução para esse ponto que não estimule transações lenientes em relação às metas de redução de emissões. O Brasil tem particular interesse na inserção do carbono florestal nesse mercado, por meio de projetos chamados de REDD+.
Porém, o país está na contramão da história. Jair Bolsonaro é um pária consolidado. Suas políticas (anti)socioambientais são pautadas por boiadas predatórias. O desmatamento continua em alta e contribui para agravar a crise hídrica que, por sua vez, demanda mais usinas termelétricas poluentes. A agenda internacional quer reduzir emissões, mas a gestão Bolsonaro quer fomentar a economia predatória.
Sem governo, sem credibilidade e sem resultados positivos para apresentar, o Brasil está mal situado para aproveitar eventuais oportunidades, inclusive as do mercado de carbono, apesar de ser uma potência florestal. Ainda assim, a delegação brasileira vai apresentar em Glasgow o “Plano de Crescimento Verde”, que é um slogan para embrulhar ações marqueteiras desvinculadas de metas climáticas verificáveis.
Ao contrário, a posição oficial brasileira sustenta um enorme retrocesso em relação a metas assumidas em COPs anteriores e Bolsonaro oferece um salto para trás, acompanhado de um pedido de dinheiro; Biden quer tirar o atraso dos EUA nas negociações em curso; Xi Jinping faz cara de paisagem e fica onde já estava.
É improvável que alguém ponha dinheiro nessa conversa, até porque o Brasil tem alguns bilhões parados no Fundo Amazônia, por força das idiossincrasias ideológicas do governo atual. Mas não faz mal. O que importa é ganhar tempo. Enquanto todo mundo critica o tal plano, que é cortina de fumaça, Bolsonaro livra-se de maiores pressões, no momento mais crítico do seu mandato. A próxima COP acontecerá logo após as eleições de 2022.