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Confiança traída

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Márcio Santilli

Artigo publicado originalmente na seção de opinião do jornal Correio Braziliense de 6/6/2013

Há no Brasil parques e reservas de vários tipos, que se destinam a usos mais diretos e específicos, como o extrativismo florestal, ou a usos mais restritos, de preservação, realização de pesquisas, passando pela promoção da educação ambiental e a visitação, todas contribuindo para a proteção da floresta, da biodiversidade, dos solos, das nascentes de água e das condições do clima. Essas áreas podem ser criadas e geridas pela União, estados ou municípios.

Os parques nacionais são os mais conhecidos entre as unidades de conservação de uso restrito, também chamadas de “proteção integral”, categoria que inclui as estações ecológicas e as reservas biológicas. São figuras jurídicas incompatíveis com populações residentes, mas o Poder Público, em muitos casos, aplicou-as, formalizando novas áreas, em terras ocupadas por índios, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos, gerando conflitos quanto ao uso dos recursos naturais.

Por exemplo, a roça de coivara é parte da cultura tradicional de subsistência dessas comunidades, mas o corte e a queima não são admitidos nessas unidades de conservação. Agentes públicos chegam a dificultar e punir a abertura dessas roças, embora ela ocorra há séculos sem prejuízo às condições naturais dessas áreas, porque restritas a pequenas extensões, e com o desenvolvimento de novas espécies de valor cultural.

Existem 45 parques e outras unidades federais de proteção integral com comunidades tradicionais vivendo em seu interior. Sobreposições com terras indígenas e quilombos devem ser suprimidas com correções de limites, ou haverá convivência de funções, mantida a dupla afetação. Nos casos que envolvem outras populações tradicionais, pode-se resolver a situação por meio da reclassificação ou desafetação de parte da área, mas também há situações em que é inevitável retirar os ocupantes e reassentá-los em outro local.

Nos últimos anos, negociações entre gestores públicos e comunidades permitiram a construção de sete planos de solução definitiva dos conflitos por alterações de limites ou a reclassificação de parte dessas áreas em figuras jurídicas compatíveis. Essas alternativas estão à disposição do Ministério do Meio Ambiente (MMA) há vários meses, mas não houve providência.

Nos casos de sobreposição com quilombos, uma câmara de conciliação constituída na Advocacia-geral da União (AGU) tem recomendado a formalização de termos de compromisso entre as partes. O MMA determinou, porém, a suspensão do acordo para resolver a sobreposição entre o Parque Nacional de Aparados da Serra (RS/SC) e o Quilombo São Roque, que já havia sido assinado pelo presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pela gestão das unidades de conservação federais (veja carta da comunidade denunciando a quebra de acordo e documento do Incra sobre o assunto).

O MMA também suspendeu negociações com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para solucionar conflitos similares com os quilombos de Mata Escura (MG), Trombetas (PA), Jaú (AM) e Cabo Orange (AP).

Mesmo em casos de reassentamento, a norma do ICMBio é estabelecer termos de compromisso com os ocupantes até que eles sejam reassentados, para que possam realizar atividades essenciais à sua subsistência de forma adequada. Quatro acordos do tipo, assinados e publicados no Diário Oficial, e vários outros procedimentos administrativos que estavam em curso também foram suspensos por determinação superior.

Pendências históricas entre comunidades tradicionais e autoridades ambientais já deram espaço para muitos conflitos no passado. Foi preciso muito esforço político e desprendimento de lideranças comunitárias e gestores para que essas propostas de superação de conflitos fossem construídas e pactuadas nos últimos anos. Ao abandoná-las de forma unilateral e injustificada, o governo traiu a confiança daqueles que se dispuseram ao diálogo e à construção de soluções justas.

É previsível que a suspensão de pactos legítimos provoque um maior acirramento de conflitos que haviam sido virtualmente superados, num momento político tumultuado por crises e incidentes graves envolvendo populações tradicionais. Fica difícil entender como um governo tido e havido como popular e democrático assume a responsabilidade histórica de romper acordos e infernizar a vida de comunidades historicamente excluídas que vivem nos parques.